Resenha de A formação das almas de José Murilo de Carvalho

UFPR
– HISTÓRIA, MEMÓRIA E IMAGEM
Introdução
ao Estudo da História
Docente: Antônio
Cesar.
Discente: Miguel L. Duclós

RESUMO DE


CARVALHO,
José M. A formação das almas: O imaginário
da República no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.






O
fato de o Brasil ter tido um ex-presidente sociólogo e a
inegável atuação ideológica de vários
intelectuais da área de humanidades junto à política
real contemporânea, em várias instâncias, não
obstante a emancipação e autonomia que são hoje
uma conquista indissociável da pesquisa acadêmica, não
foram suficientes para justificar a sociologia perante o imaginário
popular. Filosofia e sociologia são disciplinas que ainda
padecem de questionamentos relativos à sua necessidade junto
ao currículo escolar. Estão a ele voltando, uma vez que
foram dele retiradas, por conta justamente do seu poder político
e da desconfiança quanto às suas possibilidades
subversivas, durante a ditadura militar, colocando-se em seu lugar os
infames "OSPB" e "EMC".
(1)
Quem já precisou de
um serviço de um sociólogo? – questionam alguns,
pensando que qualquer padeiro seria mais presente na vida que um
profissional dessas áreas.
(2)


Uma pessoa assim pode andar pelas ruas e praças do centro das
capitais brasileiras, como o Rio de Janeiro ou Curitiba, e observar
os monumentos sem saber muito acerca do contexto histórico de
vários republicanos homenageados, tais como Marechal Deodoro,
Marechal Floriano, Benjamin Constant, Silva Jardim ou Rui Barbosa.
Exemplos não faltariam uma vez que foi feito um esforço
consistente e proposital por parte dos instauradores do novo regime
no sentido de fixar símbolos e personagens, em detrimento,
inclusive, da memória do regime monarquista. Para entender
melhor como ocorreu este processo e destrinchar esse período
complexo de transformações a leitura do livro "A
Formação das Almas – O imaginário da República
no Brasil" de José Murilo de Carvalho, publicado em 1990,
em comemoração ao centenário da República
brasileira, pode nos fornecer importantes subsídios.

José
Murilo de Carvalho é um intelectual mineiro (Andrelândia,
1939) com brilhante trajetória acadêmica no Brasil e
exterior e extenso currículo universitário e
bibliográfico. Tendo se formado em Sociologia e Ciência
Política pela UFMG em 1965, fez pós-graduação
nos EUA (Stanford e Michigan) e Inglaterra (Universidade de Londres).
Atuou como docente na UFMG, IUPERJ e UFRJ, notadamente. Também
foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2004, sucedendo
Rachel de Queiroz.
(3)
Murilo de Carvalho ganhou
notoriedade junto ao público a partir do seu estudo "Os
Bestializados – o Rio de Janeiro e a República que não
foi", de 1987. O título do livro refere-se à pouca
participação popular na proclamação da
República, com seus agentes e atores políticos
principais vindos da elite militar, civil e cultural. Além da
força e da violência oligárquica, José
Murilo pretendeu investigar nesse livro como foi elaborada a
ideologia do regime republicano, como foi passada ao povo, com a
criação e utilização de utopias, mitos,
símbolos, alegorias e rituais, e se isso foi bem sucedido ou
não. Escreve José Murilo no capítulo II:


"A
afirmação do papel dos históricos era importante
para garantir aposição dos civis na proclamação
e a perspectiva liberal da República. Mas era impossível
negar o aspecto militar do evento e o caráter inesperado de
sua eclosão. Todos os jornais do Rio registraram esses dois
elementos. Um compilador das notícias publicadas nos primeiros
dias da República reconhece o sentimento de surpresa unânime,
produzido pelo estabelecimento da forma republicana no Brasil".
Arthur Azevedo, republicano insuspeito, diz que a expressão de
Aristides Lobo – bestificado (sic) _ era de uma propriedade cruel,
pois "os cariocas olhavam uns para os outros, pasmados,
interrogando-se com os olhos sem dizer palavra". Ao voltar para
casa, às duas da madrugada, tudo era calmo e deserto no Rocio
(praça Tiradentes). Cantando, quatro garis varriam a Rua do
Espírito Santo. Ao vê-los, o teatrólogo pensou:
"Esses homens não sabiam, talvez, que naquele dia houvera
uma revolução".
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Esse
episódio aconteceu no Rio de Janeiro, a capital, onde a
política era sintetizada e os acontecimentos serviam como
caixa de ressonância para o restante da nação.
Depois do longo reinado de Dom Pedro II – que ajudou a consolidar o
continental território unificado, o que ironicamente teve como
consequência o fortalecimento das forças armadas e sua
aspiração política revolucionária, era
preciso alcançar os rincões distantes do país,
além de lidar com os interesses dos republicanos de outros
estados geograficamente importantes, Rio Grande do Sul, Minas e São
Paulo, principalmente, e combater os resquícios da monarquia
junto ao povo e através de seus defensores. O novo regime
republicano precisava ser legitimado e os personagens de ideologias
diversas atuarem na consolidação dos conceitos da
pátria, seguindo ou não o modelo de repúblicas
estrangeiras – a americana, com seus "Founding Fathers" e a
francesa, e adaptando-os à realidade nacional. A disputa
envolvia uma ideologia liberal-democrática contra a aspiração
de uma ditadura republicana positivista utópica para uma
humanidade mitificada.

Em "utopias republicanas", o
capítulo I da obra, o autor delineia as principais correntes
envolvidas na disputa: os liberais à moda americana, jacobinos
à moda francesa, e positivistas ortodoxos, estes influenciados
pela doutrina do filósofo e sociológo francês
Auguste Comte (1798 – 1857). Apesar dessa tensão entre os
grupos, sabidamente, a marca positivista acabou gravada de forma
indelével através do mote inscrito na bandeira
nacional, o que é tratado em detalhes no capítulo V,
além de serem sempre associados ao período. O modelo de
bandeira de inspiração norte-americana proposto por Ruy
Barbosa acabou por ser rejeitado, adotando-se a antiga bandeira do
Império, representando-se a força da tradição,
com a substuição do escudo pelo globo estrelado, além
do lema de Comte, retirado de um livro da religião
positivista. Este recebeu, já na época, muitas
críticas. A Revolução aconteceu sem bandeira e
sem hino, como mostra o trecho abaixo:


"O
inesperado do 15 de novembro fez com que os participantes não
dispusessem de um símbolo próprio para desfilar nas
ruas. As tropas insurretas não tinham bandeira. Um sargento do
2º Regimento de Artilharia de São Cristóvão
jogou fora a bandeira imperial quando as tropas marchavam para o
campo de Santana, não tendo com que a substituir. O movimento
republicano, como um todo, não adotara bandeira própria.
Como fino, usavam simplesmente a Marselhesa. Poder-se-ia perguntar:
se a Marselhesa, por que não também a tricolor, a
bandeira da revolução e das repúblicas
francesas? É que a Marselhesa era símbolo que
extrapolava as fronteiras nacionais, era símbolo universal da
revolução, ao passo que a tricolor mantinha as
características nacionais. A Marselhesa era a revolução,
a república, radical; a tricolor era a França".
(pg 110)


Os
republicanos tomavam a Marselhesa como um hino revolucionário
libertário que ultrapassa os limites nacionais e históricos
da Revolução Francesa. No entanto, devido à
barreira da língua, chegaram mesmo a propor e instigar a
elaboração de uma letra para a versão em
português.

Ainda acerca da bandeira, ocorria já
um debate sobre o estado laico, uma vez que a presença do
Cruzeiro do Sul seria uma homenagem ao legado dos católicos,
indesejada por alguns. Os positivistas também propuseram a
substituição do calendário gregoriano por um
calendário puramente científico, na esperança de
desvincular o estado da religião. Todavia, tiveram de admitir
que o cenário celeste da bandeira nacional fosse apenas
representação simbólica, depois do escrutínio
científico em torno da sua precisão astronômica,
uma vez que representaria o céu do Rio de Janeiro no dia 15 de
novembro de 1889.


Porém,
no capítulo III da obra vemos como a figura de Tiradentes foi
apropriada como um mártir da República e trabalhada
para funcionar em sintonia com a vocação messiânica
e heroica, tanto no tratamento iconográfico, com as feições
de Cristo padecendo da cruz, sofredor de injustiça, quanto a
sua história de percursos da independência, com os
signos clássicos, como o de ter sido traído pelo
companheiro, ser oriundo de um meio pobre, a humildade sem vaidade
diante da tirania. Essa preocupação com a posteridade
aparece também no capítulo II, "As proclamações
da República", onde se discute a criação de
uma versão oficial dos fatos, como aconteceu à
revolução e como atuaram os personagens, na tentativa
de criar um mito de origem. Aqui, é particularmente
interessante a análise de quadros, com a figura do Marechal
Deodoro aparecendo sempre na primeira fileira, a cavalo.

Um
dos quadros mais famosos no tema da Revolução Francesa,
o de Delacroix, está hoje no Museu do Louvre, e mostra a
figura feminina da liberdade guiando os revolucionários. A
associação da figura da República com uma mulher
era comum, no caso, a Marianne com seu barrete frígio, na
França. Os republicanos brasileiros tentaram seguir este
modelo, mas encontraram dificuldades, devido às discrepâncias
culturais entre a sociedade dos dois países, de forma que a
República acabou sendo mais facilmente associada à
imagem da mulher corrompida, a prostituta. Esta saborosa discussão
encontra-se no capítulo IV.

A análise de vários
quadros e monumentos (estátuas, bustos) erigidos país
afora são algumas das muitas fontes que Murilo de Carvalho
utilizou para a discussão do tema e a apresentação
da problemática. A extensa bibliografia da pesquisa alcança
o fôlego de erudição. Além das referências
no corpo do texto e nas notas de rodapé, a seção
final elenca as fontes, dividas em jornais e revistas (como o
Cruzeiro, O Paiz e a Revista do IHGB), livros (autores como Hanna
Arendt, Comte, Coelho Neto, Tobias de Monteiro, Eduardo Prado, Silvio
Romero e Visconde de Taunay), artigos, teses e folhetos (Castro
Alves, Hobsbawm, J. Stuart Mill sobre Comte), e ilustrações
com quadros e imagens que fazem parte da rica edição em
papel couchet, sendo algumas coloridas.

José Murilo
conclui seu estudo julgando que os positivistas não obtiveram
sucesso em sua tentativa de fixar no imaginário popular os
elementos simbólicos e ideológicos da República.
O sucesso que obtiveram, para ele, derivou na herança da
autoridade do Imperador ou com os elementos religiosos, como é
o caso do Tiradentes "cristo". Os liberais instruídos
dos quais fala Miguel Lemos no capítulo VI (pg 136), cujas
ações tornavam-se a ordem do dia, julgavam que a
situação do Brasil era muito precária e um
intenso processo de transformação deveria despontar. O
país ainda campestre não contava com um proletariado
nos moldes da doutrina bolchevique. Já a emancipação
feminina e católica era vista com otimismo para a recepção
das ideias de vanguarda.

____
(1)
Cf. por exemplo MELO, Francisco Egberto de. "O ensino de estudos
sociais, EMC e OSPB e a resignificação da cultura
cívica nacional nas práticas escolares em escolas de
Fortaleza durante o regime militar".
http://anpuh.org/anais/?p=14403
(2)
Observamos um comentário desse tipo na notícia em
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/07/20/sociologo-relata-sequestro-e-ameaca-apos-declaracoes-a-jornal-sobre-acao-da-pm-do-rio.htm
(3)
Dados retirados da biografia no site da ABL:
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=755&sid=116













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