Tico-Tico – conto folclórico sobre crueldade e vingança

TICO-TICO

Chovesse ou fizesse sol, a pé ou cavalgando a sua egui-nha mansarrona, êle cruzava a restinga em direção à vila, conduzindo o leite.

Encontrando alguém na estrada, tocava de leve o chapéu com a mão cerrada e deixava partir um cumprimento respeitoso.

Por isso todos o queriam e não faziam uma festa na redondeza sem que o convidassem.

À beira do leito de um enfermo êle era, por sua bondade e meiguice, o bálsamo que aliviava, que reerguia as forças e curava.. .

Assim, Tico-Tico, o humilde leiteiro do Cel. Janjão, vivia no coração de todos.

Porque êle era excessivamente franzino e tinha uns bamboleios saltitantes no andar e era irrequieto, deram-lhe esse nome: Tico-Tico.

Tinha no olhar parado qualquer coisa que denotava tristeza e sofrimento. Mas como as gentes de Boqueirão o adoravam! Todos sabiam que dentro daquela mirrada caixa óssea pulsava um grande coração.

Onde um angustiante gemido de dor se ouvia, fosse no mais longínquo recanto do Distrito, êle ali estava, ora trotando pelo avançado da noite em busca de remédio, ora abando na cozinha o arroz da safra socado no monjolo.

— Tico-Tico, me passe o tição pra mode cendê o pito; Tico-Tico, peia a Saracura e tire uma jarra de leite prus guris!…

E rápido como um corisco êle atendia a todos. Era, em verdade, um misto de bondade e solicitude.

Em geladas manhãs de inverno, cavalgando a sua tor-dilha tranqueadeira metido num velho e surrado poncho–pala, batendo o queixo e arfando o peito, êle cortava a campina em direção ao povoado.

— Leiteiro… Recebia os deztão, ajeitava o litro vazio na mala de mescla azul e prosseguia na jornada.

Batia delicadamente em outra porta.

— Leiteiro, dona… o frio cortava e êle tinha quase embaraçada a voz.

Apeie um pouco para tomar um cafezinho quente que é bom!…

Vou agradecer, dona… tenho de soltar ainda as vacas no pasto…

Fustigava a eguinha e logo desaparecia dentre a poeira branca da cerração que ia envolvendo tudo.

E assim, Tico-Tico, o humilde leiteiro do Cel. Janjão, ia arrastando a vida.

Aparecera um dia ali com uma comitiva de boiadeiros, gostara do lugar e resolvera ficar. Foi trabalhar no engenho do coronel, homem por todos temido por suas conhecidas violências e crueldades.

E como o apelido pegara, ninguém procurou saber qual o seu verdadeiro nome. Só quando aquele tenente sisudo passou por Boqueirão, alistando a rapaziada, é que ficaram sabendo. Bonito nome! Edgardo Guimarães Palhares!

Um nome de alta linhagem e que bem serviria para um grande diplomata.

Mas não era feliz o Edgardo Guimarães Palhares. No seu peito existia há muitos anos um vulcão em chamas.

Os maus tratos do padrinho, um dia ainda o levariam a um desatino.

Já estava homem feito e aqueles açoites injustos iam–lhe calando fundo no íntimo.

Pensou fugir um dia mas veio-lhe à mente o fim trágico que teve o Anto, aquele preto velho cortador de cana. Vivo, com os pés e mãos atadas, foi jogado a um poço do Ribeirão.

Veio duas vezes à tona e depois, num círculo de bur-bulhas, desapareceu… isto é, surgiu mais abaixo um pouco, com a ossada a mostra, devorado pelas piranhas…

E resolveu ficar.

Com o trabalho diário de 15 horas, os lucros do padrinho aumentaram e os maus tratos também.

Das bibocas mais longínquas vinha chegando gente. Uns a pé outros a cavalo ou mesmo escarranchados nas pontas dos fueiros dos pesados carretões de cana. Iam-se abrigando em qualquer parte: à sombra do mirrado laranjal, no escuro casario do engenho ou mesmo rente ao longo paredão de pau-a-pique que margeava o silencioso rêgo d’água.

E a fazenda do Cel Janjão nesse dia dava a impressão de um desorganizado acampamento de soldado, após a refrega de violenta batalha.

A confusão era enorme. Por todos os lados ia infernal barulheira.

Era dia de São João. O coronel aniversariava.

Ia dar nesse ano a maior festa cabocla da redondeza.

E tinha razões para isso. Desejava anunciar a todos a grande nova: o seu matrimônio com a Cacilda, a filha mais moça do Juiz.

Todos estavam ali submissos.

A ordem era comparecer. E quem de Boqueirão ousaria desrespeitar aquele que era senhor absoluto daquelas paragens?

E com as altas botas amarelas lustradas, lenção colorido no pescoço, tinindo as cantadeiras chilenas, ele, o idoso Gel. Janjão, sisudo e grave, passeava pelo varandão.

Humilde o trêmulo, amarrotando o chapéu de palha entre os calosos dedos, o empaludado caboclo dele se acercava:

— Boa tarde, coronel…

E a resposta vinha furiosa e seca:

— Isto é hora de chegar? caiçara ruim; solte a besta no pasto e prepare a lenha para a fogueira.

Em baixo de uma figueira, sentado sobre o apeiro, o Marcus puxava a chorona acordeona.

A roda formou-se logo e a alegria invadiu os corações daqueles caboclos rudes…

Todos os anos era assim.

O coronel fechava os xucros no porteiro de capim forte durante meses, para os festejos desse dia.

Êle mesmo, maníaíco e vaidoso, inventava a doma dos cinco pulos; se o ginête suportasse os cinco primeiros corcovos, seria abraçado durante o baile pelas mais formosas donzelas do Distrito.

E qual cabra que não arriscaria o pêlo para gozar esse instante sublime

Nessa tarde, quando as últimas codornas piavam na várzea próxima, o coronel reuniu o povaréu e, sentados todos nos lances do mangueirão, mandou que pussessem o lombilho no Tigre, um potro meio aço, patudo, que parecia ter mesmo no olhar a ferocidade do terrível felino.

Bem acochada a xincha grossa e seguro o impaciente bucéfalo pelas peludas orelhas, veio a ordem de montar.

Curiango, bugre carreiro, valente com as armas, cavalgou-o de um salto.

O coronel arrancou da cabeça o vistoso panamá e gritou com desusado entusiasmo:

— Largue…

Mil gritos reboaram pelo ar. Ouviu-se um bufo surdo e um desesperado relincho. E o potro bravio, de cabeça erguida ganhou o centro do mangueirão.

A expectativa era enorme.

O coronel pôs-se a contar:

— Um… dois três…

O potro ergueu as possantes patas para o ar, saltou de través e cuspiu o Curiango na cerca. O bugre soltou um grito lancinante e a custo ergueu-se do chão enterroado.

Um filete de sangue descia-lhe pela fronte…

O coronel explodiu:

— Eta caiçara ruim…

Veio um tordingo crinudo. Escoiceando e bufando, recebeu os arreios.

— Outro, gritou o fazendeiro.

Surgiu o Saci, um pretinho espoleta, filho de Maria da Fé, a negra perdida que morava na tafona.

— Largue…

Nem deu tempo para contar.

No primeiro pulo, o moleque saltou dos arreios, cam-balhotou no ar, e qual boneco de engonço, veio esborra-char-se de encontro às varas da porteira.

E diziam depois, a boca larga, os que já haviam sido vitimas da língua felina do negrinho futrica: êle teve que sair dali direitinho prá cacimba, prá se lavar.. .

0 Coronel Janjão, cerrando os punhos, mais uma vez usou daquele seu costumeiro xingamento:

— Eta caiçara ruim…

Veio depois já com os arreios no lombo cosquento, o Piranha, um potrinho gavião, ligeiro como o pensamento.

Ia escurecendo e o vento de mansinho agitava a copa das cabriuveiras. Vinha da baixada um cheirinho gostoso de capim queimado…

O coronel desceu da tranqueira.

Segurava, nervosamente, na mão direita, o seu inseparável relho trançado.

Caminhou para o apartador de bezerros. Seus passos eram lentos e sua fisionomia denotava ódio e revolta.

Olhou para todos os lados.

— Tico-Tico…

Uma voz nervosa, gaguejante, veio de um canto:

— Senhor, padrinho…

— Tire a faca da cintura e monte o Piranha, grude firme no carajá, segure curtas as rédeas e dê uma lição nesses porqueiras…

Foi como se uma bomba tivesse estourado ali.

Todos, homens e mulheres e até mesmo as crianças, ficaram estarrecidos. Estaria louco o Coronel Janjão? Onde se viu?

Êle, o Tico-Tico, que só encilhava as éguas mansas para levar o leite à freguesia, a montar aquele potrinho selvagem de cangote grosso como tronco de bananeira.

E um protesto surdo vinha de todos os olhares. O coronel compreendeu tudo, mas não era homem que recuasse, assim à toa. Viu que lívido e medroso o afilhado vacilava.

— Está com medo? caiçara dos diabos…

E fê-lo cavalgar o Piranha que, de cabeça rente ao chão, bufava continuadamente, levantando para o ar a poeira fina…

Parecia mesmo que uma desgraça estava prestes a acontecer, tal era o silêncio que caira sobre o ambiente.

— Largue…

O potrinho, sentindo-se livre, abaixou a cabeça e começou a dança. Corcoveou duas vezes somente e pinchou o improvisado peão de encontro a cerca.

Tico-Tico, girandolando no ar, caiu sobre o mourão.

Instintivamente tentou agarrar-se as lascas de aroeira.

Não teve, porém, forças. Perdera os sentidos com os golpes.

Voltou a si com os cruéis açoites do padrinho sobre o corpo dolorido.

— Toma, porqueira, isto é prá você aprender a montar melhor.

E o grosso relho trançado cortou-lhe impiedosamente a carne magra.

A cena foi rápida e chocante.

Nem uma voz se ergueu em defesa do mísero leiteiro. Quem se atreveria a tanto: Não era por acaso o Coronel Janjão, o homem que, tantas vezes criminoso, nunca vira diante de si o espantalho negro de uma grade de prisão? Não matara êle de emboscada o comandante do destacamento policial da vila e não estava ali vivo e são, festejando?

Só depois que êle se retirou, é que carregaram Tico–Tico para o galpão.

Foi medicado carinhosamente por Nhô Bento, bondoso preto velho raizeiro.

A festa continuou, porém, noite a dentro, pois teria de continuar, acontecesse o que acontecesse.

Mas pelos cantos, receiosos, como sombras espectuvais, os grupinhos desancavam o monstro.

— Eta disgranhado ruim… até é capaz de nem queimar com fogo… Um outro, ainda mais encolerizado, ajudava:

— Aposto que nem onça parida de novo come esse corpo, pois de tão ruim que é já anda fedendo em vida.. .

A indignação era geral.

O centro do terreiro uma rubra fogueira de angico afugentava para longe as trevas da noite.

Havia no bulício do próprio vento intraduzível tristeza. ..

No galpão, deitado numa rede de fibra de Caraguatá, feita, por hábeis mãos de íncola, colocando compressas de salmora nos ferimentos, ouvindo lá fora as vozes de revoltas, Tico-Tico matutava.

Raios de luar, atravessando as frinchas da paredes, batiam-lhe no rosto macilento.

Alguém parecia, maquiavelicamente, segredar-lhe aos ouvidos: "Vamos, está na hora de desforra! Não te dói ainda, por acaso, no corpo castigado, as duras vergastadas? Sê forte, levanta-te e ergue o braço e empunhe a arma que está atrás da porta, à tua espera! Assim ninguém poderá ver em ti um lorpa, um impotente, um covarde. Vamos Tico-Tico!"

Virou-se para o outro lado.

Teve a impressão de ouvir a mesma voz ainda mais autoritária: "Vamos, covarde! Que não dirão os teus companheiros com esse silêncio e essa dúvida? Logo os festantes estarão em marcha pela estrada orvalhada e a quietude e as sombras propiciarão a vingança reabilitadora. Vamos!"

Tico-Tico levou as mãos à cabeça.

Tinha ouvidos aturdidos, um calor esquisito afogueava o seu rosto. Erguendo-se da rede. Soltou uma blasfêmia.

Pisou cauteloso o chão batido e sentiu que o corpo maltratado tinha arrepios de febre.

Vinha clareando o dia. Um ventinho sul soprava frien-to, agitando de leve as grandes touceiras de bambu. Galos cantavam aqui e ali. No velho casarão todos ressonavam.

E quando já dia claro a Maricá acendeu o fogo, e esquentou a água e serviu o primeiro mate ao coronel, um tiro de garrucha ecoou sinistramente pela casa.

Correram todos. Houve uma tropelia dos diabos. Gritos de desespero partiam de todos os lados. Crianças berravam. Cães enraivecidos ladravam rente às paredes.

Alguém gritou assomando à janela:

— É aqui… E era mesmo. O silêncio imperou de novo. Os cães pararam de ganir.

Com a garrucha ainda fumegante, Tico-Tico transpôs a porteira do piquete e ganhou a estrada velha de Boqueirão rumo ao povoado.

Era um homicida, bem o sabia.

Não desejava, porém viver como fugitivo. Tinha certeza de que teria muitas testemunhas a seu favor. Era amigo de todos. Nunca praticara na vida um ato que o desabonasse. Sempre foi servo humilde e obediente.

Procurou o delegado.

Apresentou-se à prisão.

Um ano depois passei por Boqueirão.

Encontrei Nhô Bento, o negro velho raizeiro, e perguntei por Tico-Tico.

Êle ergueu o braço descarnado e apontou para a pracinha.

Vi, acompanhando o seu indicador, dentro de um cercado de arame, uma cruz feita de ferro ornada de fitas.

— Morreu? perguntei grandemente acabrunhado.

— Não, êle veve por ai com a ajuda de Deus Nosso Senhor.

E contou-me a história.

Quando Tico-Tico respondeu Juri naquela tarde e foi condenado e ia ser conduzido para a capital, o povo não se conteve, rebelou-se, atacou a contingente policial, depredou o fórum, deu soltura ao réu e num assomo de loucura e violência linchou o Juiz, ali mesmo, onde está aquela cruz que você está vendo…

 

Helio Serejo: Diário de São Paulo. São Paulo, 16 de outubro de 1952.

Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962

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