Tolstói – mestre da Literatura Russa

TOLSTÓI (1828 — 1910)

NASCEU TOLSTÓI (Leão Nikolaievitch Tolstói) em Iasnaia Poliana, distrito de Tula, no ano de 1828. Sua família gozava de excelente situação economico-financeira. Fêz seus estudos na Universidade de Kazan. Pouco se dedicou aos estudos, ocupando-se mais numa vida livre de campo, em que exercitava suas qualidades físicas. Serviço militar no Cáucaso em 1851. Sua estada caucasiana lhe forneceu material para muitos dos seus trabalhos literários. Fêz a guerra da Criméia. Viaja pela França e pela Suécia. Experiências de fundo pedagógico o entusiasmaram em Iasnaia Poliana.

"Guerra e Paz", seu famoso romance, foi publicado entre 1865 e 1869, representando sua maior contribuição literária além dos diversos contos publicados antes dessa época. Entre 1875-78 sái o seu romance "Ana Karênina", que não foi tão trabalhado como o primeiro. Ambos refletem a crise espiritual que sempre ator-mentou o escritor, tendo muito de autobiográfico. "A sonata de Kreutzer" aparece em 1889 e, finalmente, publica "Ressurreição". A esta altura, Tolstôi estava mais interessado na sua atividade pedagógica em detrimento da artística. Nesse sentido publicou vários livros.

O drama íntimo de Tolstôi, que refletia o antagonismo entre a sua pregação e a sua vida particular, agravou-se, repercutindo mesmo sobre sua vida familiar. Abandonou o lar, num movimento de protesto e de renúncia, detendo-se no mosteiro de Charmadina. Prosseguindo viagem, a morte o surpreendeu em Astapovo a 20 de novembro de 1910.

Tolstôi é uma das vozes mais eloqüentes da literatura russa e uma das personalidades mais marcantes da vida pedagógica e artística do país, pelas idéias avançadas que defendeu e pelo brilho da sua dedicação às letras. (Homero Silveira)

ALEXIS — O "POTE" – Conto de Tolstói

Aléxis éra o caçula. Puseram-lhe a alcunha de "Pote", porque uma vez, quando sua mãe o mandou levar leite à mulher do diácono, êle tropeçou e quebrou o pote. A mãe deu-lhe uma surra e os garotos passaram a importuná-lo com a caçoada: "Aléxis, o Pote"! E a alcunha pegou. Aléxis era um menino mirrado, magro, com orelhas de abano e um nariz muito comprido. A garotada caía-lhe na pele: "O Aléxis tem nariz de cachorro de pilastra"!

Havia uma escola na aldeia, mas Aléxis muito pouco proveito tirava disto, porque não tinha tempo para aprender. Seu irmão mais velho trabalhava na cidade, no armazém de um comerciante e Aléxis, ainda menino, começou a ajudar o pai. Com seis anos apenas, em companhia das irmãzinhas, êle tomava conta dos carneiros e das vacas, no pátio, e um pouco mais tarde passou a tratar dos cavalos, dia e noite. Com doze anos de idade, já lavrava a terra e até guiava carroças. Não tinha muita força, mas era muito hábil. Estava sempre alegre. Quando os outros garotos caçoavam dele, apenas ria ou se calava. Quando o pai ralhava com êle, ouvia tudo calado. E logo que o pai acabava de ralhar, êle sorria e continuava o trabalho.

Aléxis tinha dezenove anos quando seu irmão partiu para fazer o serviço militar e o pai mandou-o como caixeiro para a casa do comerciante. Deram-lhe as botinas velhas do irmão, o boné do pai, uma poddiovka (1) e o levaram para a cidade. O pobre rapaz ficou maravilhado com os trajos ridículos em que o meteram, mas o comerciante não se mostrou muito satisfeito com a sua cara.

(1) Espécie de agasalho sem manga.

— Pensei que me mandasses um homem para substituir o Semion — disse o comerciante, examinando Aléxis — e eis aí o fedelho que me trazes! Para que serve "isto"?

— Êle sabe fazer de tudo: recados, atrelar cavalos, enfim, trabalha muito bem. O rapaz é assim, nanico, mas tem capacidade para muita coisa. Além disso é muito modesto.

— Está bem. Que se há de fazer. Vejamos. Deixe-o ficar aí. E Aléxis começou vida nova no armazém. A família do comerciante não era grande: sua mulher, sua velha mãe, o filho mais velho, casado, muito pouco instruído, que trabalhava com o pai; um outro filho, sabichão, que depois de haver terminado os estudos no liceu, entrara na Universidade, de onde fora expulso, e que agora vivia em casa; e ainda uma filha, que cursava o liceu.

No princípio Alexis não agradou. Era muito caipira, desajeitado, mal-educado, tratava todo o mundo por tu. Mas logo se habituaram com êle. Trabalhava melhor que seu irmão e, além disso, não conversava. Meteram-no em todos os trabalhos e êle fazia tudo de boa vontade e muito depressa, passando sem descanso de um serviço para outro. No armazém, como na casa, não havia serviço que não pusessem nas suas costas. Quanto mais trabalhava, mais lhe davam que fazer. A mulher do patrão, a mãe, a filha, o filho, o empregado, a cozinheira, todos o mandavam, ao mesmo tempo, para aqui, para lá, para acolá, obrigando-o a fazer ora uma coisa, ora outra. Só se ouvia isto: "Corre lá embaixo! Aliocha, conserta isto aqui! Como, Aliocha, ainda não fizeste isso?! Aliocha, presta atenção, não te esqueças…" E Aliocha corria, arrumava, prestava atenção, não esquecia nada e sempre sorrindo fazia tudo!

As botinas do irmão já estavam dando as últimas, e o patrão reclamou contra aquelas bocas de jacaré, por onde se viam os dedos nus e deu-lhe ordens terminantes para comprar botinas novas, no mercado. Aliocha gostou das botinas novas, mas é que seus pés eram velhos e, à noite, depois das caminhadas para aqui e para ali, sofriam tanto que não teve outro remédio senão detestar as botinas.

Mesmo no inverno, Alexis se levantava antes do amanhecer. Rachava a lenha, varria o pátio, dava ração à vaca, ao cavalo e ainda os lavava. Depois, acendia o fogão, engraxava as botinas, polia ,e preparava os samovares. Então é que o empregado o chamava para ajudá-lo a arrumar as mercadorias, ou a cozinheira o mandava amassar a pasta da sopa e arear as caçarolas. Em seguida, teria que ir ao centro, tanto para levar um bilhete, como para conduzir a menina ao liceu, ou comprar óleo de lamparina para a velha.

— Onde te meteste, maldito? — gritava um, ou berrava outro. — Não é mais preciso fazer isso! Aliocha, vem cá! Aliocha, Aliocha!

E Aliocha corria. Almoçava "correndo" e era raro jantar com os outros. A cozinheira reclamava. Entretanto, tinha pena dele, e guardava sempre qualquer coisa bem quentinha para o jantar e a ceia. Nas vésperas e nos dias de festa havia sempre muito que fazer. Mas Aliocha gostava das festas, porque lhe davam gorjetas, pequenas, é verdade. Costumava fazer, mais ou menos, sessenta copeques. Mas já era dinheiro para êle. Quanto aos ordenados, nunca os tinha visto. O pai vinha receber o dinheiro e ainda por cima o censurara por haver estragado as botinas tão depressa.

Quando conseguiu juntar dois rublos com as gorjetas, comprou, a conselho da cozinheira, uma blusa vermelha de tricô e ao enfiar-se nela ficou boquiaberto de prazer. Aléxis conversava pouco, e quando falava era muito breve e não olhava para o interlocutor. Se alguém o mandava fazer qualquer coisa, ou se lhe perguntavam se poderia executar tal ou qual trabalho, sempre, sem a menor hesitação, êle respondia que sim e metia logo mãos à obra.

Não conhecia nenhuma reza. Esquecera todas as que a mãe ensinara. Entretanto, rezava de manhã à noite. Mas as suas preces consistiam em gestos com as mãos. j

Venceu assim um ano e meio. Durante a segunda metade do segundo ano adveio o acontecimento mais extraordinário de toda a sua vida. Foi o seguinte: com grande surpresa, êle constatou que, além das relações baseadas na necessidade que cada um tem dos seus semelhantes, há ainda entre as pessoas relações muito particulares. Essas relações não consistem nem em ajudar os outros, nem em engraxar as botinas alheias, nem em carregar uma compra, nem mesmo em atrelar um cavalo. Não é para nada disso que um ser humano tem necessidade de um outro. Cada ser humano deseja somente servir-se a si mesmo, acariciar-se e Aliocha havia de ser assim também. A cozinheira, Ustínia, é que o despertara. Ustínia era uma moça órfã, tão amiga do trabalho quanto Aliocha. E Aliocha sentiu, pela primeira vez, que, não os serviços, mas êle mesmo é que era necessário a uma outra pessoa. Quando a própria mãe o acariciava, êle nem dava por isso. Parecia-lhe uma coisa muito natural, como se tivesse pena de si mesmo. Mas eis que aqui, repentinamente, reparou que Ustínia, uma pessoa absolutamente estranha, tinha pena dele. Ela costumava guardar um pouco de mingau feito com manteiga e, enquanto êle comia, mirava-o, com o queixo apoiado no pulso. Olhava para ela, ela ria, e êle ria também.

Isso era tão novo e tão estranho que Aléxis teve medo. Temia que isso o impedisse de executar os seus serviços como o fizera até ali. Contudo, sentia-se feliz; sacudia a cabeça e sorria. De repente, trabalhando, ou durante uma caminhada a serviço, pensava nela e murmurava: "Ah! Ustínia!" Ustínia o ajudava tanto quanto podia e êle, por sua vez, fazia o mesmo. Ustínia já lhe contara a sua vida: que tinha sido agasalhada pela tia e depois empregada na cidade; que o filho do patrão já lhe havia dirigido galanteios e que ela o havia repelido. Ela gostava de conversar e êle gostava de ficar escutando. Êle havia ouvido dizer que quase sempre os camponeses que trabalham na cidade se casam com as cozinheiras. Uma vez, ela perguntou se pensava em casar cedo. Êle respondeu que não sabia e que não tinha vontade de se casar com uma das moças de sua aldeia.

— Como ?! Já tens alguma em vista ? — perguntou Ustínia.

— Tenho … Eu te agarraria com unhas e dentes … Gostarias disso ?…

— Olhe só o Pote! E como êle diz isso bem! — acrescentou ela, dando-lhe um tapa nas costas. — Por que não havia eu de gostar?!

Durante a quaresma, o velho veio à cidade para receber o dinheiro. A mulher do comerciante soubera que Aléxis tinha a intenção de casar com a cozinheira e isto não lhe agradava. "Ela ficará grávida e não prestará para nada, com um filho" — é o que já havia dito ao marido.

O comerciante entregou ao pai o dinheiro de Aléxis.

— Então ? , Como vai êle no trabalho ? — perguntou o camponês. — Eu já lhe disse que êle não conversa nunca.

— Sim . .. Mas é que está com vontade de fazer uma tolice. .. Quer casar com a cozinheira e eu não tolero empregados casados; não tolero…

— Que imbecil! Veja o que êle foi inventar! — disse o pai. — Mas isso não tem importância. Vou já obrigá-lo a desistir dessa tolice …

Entrou na cozinha e sentou-se à mesa, para esperar o filho Aliocha, que havia saído a correr para um serviço qualquer e voltou esfalfado.

— Eu a pensar que eras um rapaz sério, e eis aí o que fôste capaz de imaginar! — disse o pai.

— Eu?!. .. Não imaginei nada…

— Como assim? Queres casar! Eu te casarei, quando chegar a ocasião e com quem deves casar, mas nunca com uma vagabunda da cidade!

O pai falou durante muito tempo. Aliocha, de pé, suspirava. Quando o pai terminou, Aliocha sorriu.

— Está bem… Desistirei disso…

— É bom.

Depois que o pai foi embora, Aléxis, logo que se viu sozinho com Ustínia, contou-lhe o que se passara. (Ela estivera escondida atrás de uma porta e ouvira tudo).

— Nossas combinações foram por água abaixo… Ouviste? Êle se zangou comigo e me proibiu…

Ustínia chorou, silenciosamente, enxugando as lágrimas no avental. Aliocha estalou a língua.

— Por que não obedecer? Por que, se não há nenhuma razão para isso? É preciso desistir…

À noite, quando a mulher do comerciante o chamou para fechar os postigos das janelas, perguntou:

— Então, depois de ouvir seu pai, resolveu desistir da asneira?

— Desisti … Desistimos … — respondeu Aliocha, rindo e chorando, ao mesmo tempo.

A partir desse dia, Aliocha não falou mais em casamento com Ustínia e passou a viver como antes. O empregado mandou que êle fosse tirar a neve do telhado. Aliocha subiu ao telhado, varreu tudo e pôs-Se depois a quebrar a neve gelada que entupia as calhas. Escorregou e caiu, com a pá na mão. Infelizmente para êle, não caiu em cima do monte de neve, mas sobre as barras de um alçapão de ferro.

Ustínia acorreu logo e, com ela, a filha do patrão.

— Machucaste, Aliocha?

— Oh! Nem tanto! Não é nada.

Quis levantar-se, mas não pôde e sorriu. Transpor-taram-nò para o quarto. Um enfermeiro veio examiná-lo e perguntou-lhe onde é que estava doendo.

— Tudo me dói, mas isto não é nada… Apenas o patrão é que vai ficar zangado … É preciso mandar dizer a meu pai.

Aléxis estava deitado há dois dias. No terceiro dia mandaram chamar um padre.

— Como?! Tu vais morrer?! — perguntou Ustínia.

— Que é que tem’ isso? Não se pode viver sempre. É bem preciso que um dia … — disse Aliocha, rapidamente, como de hábito. — Obrigado, Ustínia, por teres sido tão boa para mim … Vês como foi melhor que não nos tivessem deixado casar? Do contrário, como seria isso ?… Assim está tudo muito bem…

Rezou com o padre, mas, como sempre, com as mãos e com o coração. E no fundo do coração êle sentia que, assim como se pode estar bem, aqui embaixo, obedecendo sempre e nunca praticando o mal, assim também se poderá estar lá em cima…

Falava pouco, apenas pedia que lhe dessem de beber e se admirava de alguma coisa.

E, assim, admirou-se de alguma coisa, estirou-se e morreu …

(Tradução de Joracy Camargo)


Fonte: Obras-Primas do Conto Russo.

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