VENCESLAU DE MORAES

Oliveira Lima

VENCESLAU DE MORAES

Vimo-nos três horas apenas, em Kobe, na escala de um transatlântico, e ficamos amigos. Um conhecido comum, sabendo que nos causaria a ambos prazer o encontro, aproximou-nos num almoço, c foi o bastante para que entre nós se estabelecessem relações de cordialidade que perduram numa seguida correspondência epistolar. Não sei mais o quç^ é feito do conhecido, mas continuo a escrever e a receber cartas de Venceslau de Moraes com perfeita regularidade.

A congenialidade (relevem-me o anglicismo) baseou-se decerto nos motivos de identidade de raça, de língua e de gostos intelectuais, mas sem dúvida a fortaleceu a simultaneidade nos nossos dois espíritos de uma forte simpatia pelo Japão, tanto o Japão artístico como o Japão político. Foi isto seguramente o que nos fêz gravitar moralmente um para o outro.

Os estrangeiros no Extremo Oriente podem dividir-se em duas classes, os que estimam a terra e os que a detestam. Não há meio termo entre estes dois sentimentos: ou se é dominado pela fascinação daquela cultura para nós exótica, ou se concebe por ela uma violenta antipatia. Não busco elogiar-me, se acrescento que os inteligentes quase todos — a não ser quando prevalecem causas especiais, no geral razões pessoais — se agrupam na primeira categoria, e que compõem em grande parte a segunda os que não conseguiram explorar os asiáticos como ou tanto quanto o desejariam. A compreensão é meio caminho andado para a estima, e assim acontece com os inteligentes, que sabem adaptar-se às sociedades estranhas ou traçar-lhes a estranheza.

Mais raros são, contudo, os que, desligando-se da sugestão do passado, tão poderosa nos espíritos educados, especialmente nos que receberam uma educação clássica, sentem indulgência pelas tendências políticas do presente, mesmo quando nos são contrárias. Tal indulgência pode e deve, portanto, ser considerada a pedra de toque da afeição que nos merece mundo tão oposto ao nosso na aparência e na realidade. Eu experimentei aquela indulgência quando ali andei c vi preparar-se no horizonte o desencadear da tormenta de que o prestígio da Rússia sofreu os estragos. Pareceu-me justo o que uma vez me declarou um homem de Estado japonês — que a Ásia devia ser para os asiáticos, da mesma forma que a América para os americanos. Não lhe perguntei, verdade é, a esse Monroe amarelo, se a Ásia devia ser para os asiáticos japoneses, como a América para os americanos dos Estados Unidos.

Contentei-me com a justiça superficial e o apelo íntimo do lema.

Venceslau de Moraes conservou, porém, íntegra toda a sua indulgência, depois mesmo das vitórias estupendas que tão alto elevaram o nome e também o orgulho do Japão. Na última carta, de 10 de dezembro, êle me escrevia:

Do Japão nada há que não saiba. Agora o Japão esconde-se por detrás de biombos, moureja às escondidas. O problema não é mais o do Japão, é o da China, ou antes da Ásia inteira. É a Ásia que acorda, ao som do estampido dos canhões gloriosos do Japão. E sabe? por mais estranho que possa parecer-lhe, eu simpatizo com este acordar da Ásia que tão terríveis convulsões pode imprimir ao mundo inteiro. Será mais uma vitória, e tremenda, contra a hipocrisia e a cobiça das gentes…

Esta espécie de simpatia é contudo difícil de conservar quando uma vez se mediu — e para isto é preciso lá ter estado — a profundidade e a veemência da repulsão asiática pela Europa.

A propósito da desavença que ainda lavra entre o Japão e os Estados Unidos, sobre a admissão das crianças japonesas nas escolas americanas da Califórnia e a projetada exclusão dos imigrantes japoneses da União Americana, por exigências dos Estados da costa do Pacífico, ameaçados nos seus interesses vitais com semelhante invasão do senhorio econômico, escrevia com graça a um jornal de Nova York um antigo amigo negociante em Yokohama que o Japão, para justificar suas reclamações, devia começar por não dar o exemplo do tratamento diferencial de que são objeto os europeus lá domiciliados: proibidos de possuírem bens de raiz e de explorarem minas, julgados nos tribunais japoneses com manifesta ojeriza, sujeitos a pagarem as coisas por muito mais do que elas custam aos nacionais, sobrecarregados com taxas oficiais maiores — numa palavra, em tudo considerados desfavoravelmente distintos dos nacionais.

Poder-se-ia observar que a resposta nesse caso acompanhou o tom da pergunta, e que os japoneses apenas dão o merecido troco aos europeus, que lá não foram no século XVI, nem no século XIX os americanos, sem segunda intenção; reconhecê-lo, porém, quando se é a vítima, é mui pouco vulgar e é mais custoso.

Venceslau de Moraes, no entanto, que com muitos anos de residência na China e no Japão continua a ser o mesmo forasteiro sem afeições e sem carinhos dos que o hospedam, confinado aos amigos europeus que deixou longe e aos que se fêz naqueles círculos locais de estrangeiros, onde há muito que escolher e pouco que respigar, conservou viva toda a sua benquerença pelos que o acolhem com sorrisos e mesuras mas lhe fecham os corações e as almas.

Não se pode, a meu juízo, revelar maior superioridade na inteligência e no caráter. Ser amigo em circunstâncias tais é dar prova de que o espírito se não deixa governar por impressões passageiras, nem por preconceitos superficiais, nem, sobretudo, por despeitos mesquinhos; é colocar a imparcialidade afetiva, não só a intelectual que mais facilmente se mantém, num pé quase super-humano de que poucos me parecem capazes.

O alheamento moral do escritor do seu meio — do meio que o cerca, o seduz e o inspira — nota-se, todavia, nas páginas dos seus livros dedicadas ao Japão, nas quais suas sensações, por mais objetivas que se mostrem, carecem sempre de correspondência. O artista vibra num penoso isolamento, de onde talvez lhe provêm a nervosidade e a acuidade.

Pelo contrário, nas páginas sobre Macau ou a China em redor do Macau transparece sempre mais geral a emoção porque invariavelmente surge uma correlação de sentimentos que indica que a pulsação daquela inteligência já se produziu em condições diversas, já se não operou numa atmosfera de indiferença senão de hostilidade, já se regulou pela simpatia humana.

Agora mesmo é palpável este contraste no último livro que do autor foi publicado e cuja remessa acompanhava a sua citada carta. Paisagens da China e do Japão se intitula a coleção deliciosa que tem cinco anos de composta e onde se encontram, narrados no estilo despretensioso e todavia inexcedivelmente literário desse português da família de Garrett, alguns dos contos e algumas das lendas mais interessantes do tesouro popular sino-japones, de mistura com muitas notações subjetivas, surpreendentes de exatidão,

da natureza das terras asiáticas e da psicologia das gentes asiáticas, que Venceslau de Moraes viu, observou, descreveu e adivinhou como em nossos dias nenhum outro escritor o conseguiu a não ser Lafcadio Hearn, o qual por isso se criou uma reputação universal.

A razão está em que ambos estudaram o temperamento e contemplaram o caráter japonês com uma luz amiga no olhar e um gesto amigo no devassar-lhe as dobras, porque nenhum dos dois pretendeu dissecar essa alma como um vil composto, sim como uma alma que, tal qual a nossa, possui preferências, ódios, aspirações, ilusões, se bem que a proporção possa variar como varia a índole desses elementos, de uma para a outra.

Ambos os escritores são aliás servidos por um admirável instrumento de transmissão dos seus pensamentos.

De propósito escrevi há pouco de Venceslau de Moraes — "o português", para logo insinuar que se trata do escritor de uma língua feita, que conta séculos de bela literatura e se vai insensivelmente adquirindo, língua que só trata hoje, ainda que não seja pequeno o esforço, de manter sua correção, eliminando o que na sua economia se introduziu de mau e assimilando o pouco vantajoso que se lhe oferece de novo.

Os nossos escritores ressentem-se, muitos deles, deste que se não pode bem chamar defeito, mas que certamente não é um predicado; são cultores de uma língua que se forma, que se transforma, que busca integralizar-se depois de se haver diferenciado. Por isso a alguns é mister lê-los com paciência, e às vezes que caminhar um tanto às cegas no dédalo do seu vocabulário e no labirinto da sua sintaxe.

Venceslau de Moraes lê-se, Deus seja louvado, sem dicionário e sem dificuldade. Não direi que lhe conceda o apreço devido um inculto, mas qualquer que tenha instrução, mesmo mediana, gozará dessa qualidade primordial e excelente do seu estilo. Se a frase não fosse tão usada, diria que deleita sem esforço, pela simplicidade da sua forma, que a êle, entretanto, custou trabalho, porque é a singeleza artística que nela existe, não a vulgaridade ou a sem-cerimônia familiar. Há graça na construção das frases, justeza na aplicação dos termos, encanto no conjunto, leve e fresco como um quimono de verão, azul e branco, dos que o autor machuca com tanto gosto entre os seus dedos que dos japoneses não invejam a habilidade.

Com o mesmo relevo e esmero com que estes bordam o vôo de um corvo ou o salto de uma rã, os seus, manejando a pena, evocam diante de nós esses países que foram da legenda e são hoje do pesadelo, em livros que, ainda bem para nós, se sucedem ao Dai Nippon, mercê daquilo que na sua carta êle me apontava como esta mania que tenho de escrivinhar e que está constituindo quase que a minha única distração.

Pernambuco, março de 1907

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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