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XVI

Subiu, fazendo diminuir
os balanços, graças à indicação das estrelas. O seu ímã pálido atraía-o. Sofrera tanto em busca duma luz, que já não largaria
mesmo a mais confusa. Sentindo-se afortunado com aquele pobre clarão, seria
capaz de dar voltas, até cair morto, em torno daquele sinal de que andava
faminto. E ei-lo subindo até os campos de luz.

Elevava-se pouco a pouco,
em espiral, num poço que se abrira e se fechava, debaixo dele. E à medida que
subia, as nuvens iam perdendo a sua cor escura de lama, passavam a seu lado
como vagas cada vez mais puras e brancas. Fabien emergiu.

Foi imensa a sua surpresa,
a claridade era tal que o ofuscava. Teve de fechar os olhos durante alguns
segundos. Nunca imaginara que de noite as nuvens pudessem ofuscar. Mas a lua
cheia e todas as constelações transformavam-nas em vagas deslumbrantes.

Dum só golpe, no mesmo
instante em que emergia, o avião recuperou a calma, uma calma que parecia
extraordinária. Nenhuma onda o fazia inclinar-se. Como um barco que transpõe o
dique, entrava em águas reservadas. Encontrava-se num canto do céu ignorado e
escondido, como a baía das ilhas bem-aventuradas. Abaixo dele, a tempestade
constituía um outro mundo de três mil metros de espessura, percorrido por
rajadas, por trombas d’água,
por relâmpagos, mas oferecia aos astros uma face de cristal e neve.

Fabien tinha a sensação
de ter chegado a limbos estranhos, pois tudo se tornava luminoso: as suas mãos,
o seu vestuário, as suas asas. Porque a luz não descia dos astros, mas emanava,
embaixo, à sua volta, daquelas imensas massas
brancas.

Aquelas
nuvens, abaixo dele, refletiam toda a neve que recebiam da lua. E
também as da direita e da esquerda, altas como castelos. Corria um leite de
luz, em que a tripulação se banhava. Voltando-se, Fabien viu que o telegrafista
sorria.

— Isto vai melhor! — exclamava ele.

Mas a voz perdia-se no
ruído do vôo, só os sorrisos se transmitiam.
"Estar a sorrir é pura loucura, pensou Fabien, estamos perdidos."

Contudo, mil braços
obscuros tinham-no largado.
Tinham-se quebrado as cadeias, como as de um prisioneiro que deixam
caminhar só, por um instante, entre flores.

"Belo demais",
pensava Fabien. Vagueava no meio de estrelas amontadas
como um tesouro, num mundo onde nada mais, absolutamente nada mais, a não ser
ele e o seu companheiro, tinha vida. Semelhantes a esses
ladrões das cidades fabulosas enclausurados na sala dos tesouros, donde nunca
mais conseguirão sair. Por entre pedrarias gélidas, Fabien e o
companheiro vagueiam, imensamente ricos, mas condenados.

XVII

Um dos radiotelegrafistas
de Commodoro Rivadavia,
escala de Patagônia, teve um gesto brusco e todos os que no posto, impotentes,
estavam de quarto, se agruparam à volta desse homem, inclinando-se.

Inclinavam-se sobre um
papel completamente em branco e fortemente iluminado. A mão do operador
hesitava ainda e o lápis tremia. A mão do operador mantinha ainda prisioneiras
as letras, mas já os dedos tremiam.

— Temporais?

O telegrafista disse que
"sim" com a cabeça. O seu crepitar impedia-o de compreender.

Depois alinhou alguns
sinais indecifráveis. Depois palavras. Por fim pôde-se restabelecer o texto:

"Bloqueados, acima
da tempestade, a três mil e oitocentos metros. Navegamos para o interior em
direção oeste, pois deriváramos para o mar. Por baixo está tudo fechado. Ignoramos
se ainda sobrevoamos o mar. Informem se tempestade se estende
para o interior".

Para transmitir este
telegrama a Buenos Aires, foi preciso, por causa dos temporais, formar cadeia
de posto para posto. A mensagem avançava, na noite, como um fogo que se acende
de torre em torre.

Buenos Aires mandou responder : "Tempestade
geral no interior. Quanto
lhes resta de gasolina?"

"Uma meia hora."

E esta frase, de vigia em
vigia, chegou até Buenos Aires.

A tripulação estava
condenada a afundar-se, no espaço de trinta minutos, no ciclone que a
arrastaria até ao solo.

XVIII

E Rivière medita. Já não
tem esperança: aquela tripulação perder-se-á em qualquer ponto, na noite.

Rivière recordava uma
visão que lhe ficou da infância: esvaziavam um tanque para encontrar um corpo.
Também não se encontrará nada até que a massa de sombra abandone a terra, até
que voltem à luz essas areias, esses campos, esses trigais. Rudes camponeses
encontrarão talvez duas crianças, o braço tapando o rosto, e parecendo dormir,
caídas na erva, sobre um fundo dourado e calmo. Mas a noite as terá afogado.

Rivière sonha com os
tesouros escondidos nas profundezas da noite, como em mares fabulosos. As
macieiras de noite aguardam o dia com todas as suas flores, flores que não
servem ainda. A noite é rica, cheia de perfumes, de cordeiros adormecidos e de
flores ainda incolores.

Pouco a pouco, surgirão
na manha os campos fartos, os bosques orvalhados, os frescos silvados. Mas no
meio das colinas, agora inofensivas, e dos prados e dos cordeiros, naquela bela
ordenação da terra, duas crianças parecerão dormir. E qualquer coisa terá
fugido do mundo visível para o outro.

Rivière sabe como a
mulher de Fabien é inquieta e terna: aquele amor foi-lhe apenas emprestado,
como um brinquedo a uma criança pobre.

Rivière imagina a mão de
Fabien, que durante alguns minutos ainda segurará o seu destino nas alavancas
de comando. Aquela mão que acariciou. Aquela mão que pousou sobre um seio,
fazendo surgir um tumulto, como uma mão divina. Aquela mão que pousou sobre um
rosto e que transformou esse rosto. Aquela mão que era milagrosa.

Fabien vagueia por cima
do esplendor dum mar de nuvens à noite, porém, mais abaixo, é a eternidade.
Está perdido no meio de constelações onde só ele habita. Aperta ainda o mundo
com as mãos e embala-o contra o seu peito. Segura, no seu volante, o peso da
riqueza humana e carrega desesperado, duma estrela para outra, o inútil
tesouro, que terá de devolver à força. . .

Rivière supõe que um
posto de rádio ainda o escuta. Só uma onda musical, uma modulação menor liga
ainda Fabien ao mundo. Não uma queixa. Não um grito. Mas o som mais puro que o
desespero jamais criou.

XIX

Robineau veio arrancá-lo à sua
solidão:

— Sr. Diretor,
eu pensei. .. podia-se talvez
tentar…

Não tinha nada a propor,
mas testemunhava assim a sua boa vontade. Gostaria tanto de encontrar uma
solução e procurava-a como quem procura a chave de uma charada. Encontrava
sempre soluções que Rivière nunca escutava: "Você percebe, Robineau, na
vida não há soluções. Há forças em movimento: é preciso criá-las e as soluções
sobrevêm". Por isso Robineau limitava o seu papel à criação duma força em
movimento, que impedia a ferrugem de atacar os eixos de hélice.

Mas os acontecimentos
desta noite apanhavam Robineau desarmado. O seu título de inspetor não tinha
qualquer poder sobre os temporais, nem sobre uma tripulação fantasma, que
verdadeiramente já não se debatia para ganhar um premio
de regularidade, mas sim para escapar a uma única sanção, que anulava as de
Robineau: a morte.

E Robineau, agora
inútil, vagueava sem préstimo pelos escritórios.

A mulher de Fabien fêz-se anunciar. Levada pela inquietação,
aguardava, no escritório dos secretários, que Rivière a recebesse. Os
secretários, às ocultas, observavam o seu rosto. Sentia uma espécie de vergonha
que a fazia olhar medrosamente à volta: ali tudo a repudiava. Estes homens que continuavam a trabalhar, como se
espezinhassem um corpo, estes processos onde a vida humana, o sofrimento humano
só deixavam um resto de frios algarismos. Ela procurava sinais que lhe falassem
de Fabien. Em sua casa tudo indicava esta ausência: a cama entre–aberta, o
café na mesa, um vaso com flores. Não descobria sinal algum. Tudo se opunha à
piedade, à amizade, à recordação. A única frase que ouviu, pois ninguém
levantava a voz na sua presença, foi uma imprecação proferida por um empregado
que reclamava um registro: "…O registro de dínamos, santo Deus!, que nós expedimos para Santos". Ergueu os olhos
para esse homem com uma expressão de infinito espanto. Depois olhou para a
parede donde pendia um mapa. Os seus lábios tremiam um pouco, quase imperceptivelmente.

Ela percebia, com embaraço,
que exprimia ali uma verdade inimiga, quase lamentava ter vindo, teria desejado
esconder-se e, temendo fazer-se demasiado notada, continha-se para não tossir
ou chorar. Achava-se insólita, inconveniente, como se estivesse nua. Mas a
verdade dela era tão forte que os olhares fugitivos voltavam, às ocultas,
infatigavelmente, para descobri–la no seu rosto. Esta
mulher era muito bela. Revelava aos homens o mundo sagrado da felicidade.
Revelava em que matéria sublime tocamos, sem o saber,
quando agimos. Sob tantos olhares a mulher fechou os olhos. Ela revelava a paz
imensa que, sem saber, podemos destruir.

Rivière recebeu-a.

Ela vinha timidamente
fazer a defesa das suas flores, do seu café na mesa, da sua carne jovem. De
novo, naquele escritório mais frio ainda, os seus lábios começaram a tremer
levemente. Ela também descobria que neste mundo diferente a sua própria verdade
era inexprimível. Tudo o que sentia em si de amor quase selvagem — de tal modo
era fervoroso — de dedicação, parecia-lhe tomar ali um ar importuno, egoísta.
Desejou poder desaparecer:

— Venho incomodá-lo..
.

— Não, minha senhora —
disse-lhe Rivière — não me incomoda. Infelizmente, tanto a senhora como eu, o
mais que podemos fazer é esperar.

Ela encolheu os ombros,
quase imperceptivelmente, mas Rivière compreendeu o sentido daquele gesto:
"Para que servem a lâmpada, a ceia na mesa, as flores que voltarei a encontrar. . ." Uma jovem mãe confessara um dia a
Rivière: "A morte do meu filho, ainda não a compreendi bem. O que me faz
sofrer são as pequenas coisas, a sua roupinha que encontro por acaso e, se
acordo de noite, aquela ternura que apesar de tudo se apodera do meu coração e
é agora inútil, como o meu leite…" Para aquela mulher também a morte de
Fabien iria apenas começar amanhã, em cada ato daí em diante vão, em cada
objeto. Fabien deixaria lentamente a sua casa. Rivière abafava uma profunda
compaixão.

A mulher ia-se embora,
com um sorriso quase humilde, ignorante da sua própria força.

Rivière sentou-se, um pouco
cansado.

"Mas ela ajudou-me a
descobrir o que eu procurava..

Batia levemente com as
pontas dos dedos nos telegramas de proteção das
escalas Norte. Sonhava.

Nos não pedimos para ser eternos, mas apenas para não ver
os atos e as coisas perderem subitamente o seu sentido. O vazio que nos rodeia
faz-se então sentir…"

O seu olhar pousou nos telegramas: "E eis por onde a morte entra aqui: estas mensagens que
já não fazem sentido…"

Olhou para Robineau.
Aquele homem medíocre, agora inútil, já não fazia sentido. Rivière disse-lhe
quase em tom áspero:

— Será preciso que eu próprio lhe dê
trabalho?

Depois Rivière empurrou a
porta que dava para a sala dos secretários e o desaparecimento de Fabien
saltou-lhe aos olhos, bem evidente, em sinais que a senhora Fabien não soubera
ver. A ficha do R. B. 903, o avião de Fabien, figurava já, no quadro mural, na
coluna do material indisponível. Os secretários que preparavam os papéis do
correio da Europa, sabendo que este partiria com atraso, trabalhavam mal.
Pediam do campo, pelo telefone, ordens para as equipes que agora velavam sem
objetivo. As funções de vida tinham-se afrouxado. "A morte, ei-la", pensou Rivière. A sua obra parecia um veleiro
parado, sem vento, no mar.

Ouviu a voz de Robineau:

— Sr. Diretor. . . eles estavam casados há seis semanas…

Vá trabalhar.

Rivière continuava a
olhar para os secretários e, por detrás deles, os serventes, os mecânicos, os
pilotos, todos aqueles que o tinham ajudado na sua obra, com uma fé de
apaixonados. Pensou nas pequenas cidades de antigamente que, ouvindo falar das
"Ilhas", construíam o seu navio. Para o carregar com a sua esperança.
Para que os homens pudessem ver a sua esperança enfunar as velas sobre o mar.
Todos engrandecidos, todos arrancados de si próprios,
todos libertos por um navio. "O objetivo talvez não justifique nada, mas a
ação liberta da morte. Era um navio que fazia prolongar a vida desses homens."

E Rivière também terá
lutado, contra a morte, quando tiver dado aos telegramas o seu verdadeiro
sentido, às equipes de vigia e a sua inquietação e aos pilotos, o seu sentido
dramático. Quando a vida reanimar esta obra, como o vento reanima um veleiro do
mar.

XX

Commodoro Rivadavia
já não ouve nada, mas, vinte minutos mais tarde, a mil quilómetros de
distância, Bahia Blanca
capta uma segunda mensagem.

"Descemos. Entramos nas
nuvens…"

Depois estas duas
palavras dum texto obscuro apareceram no posto de Trelew :

"… ver
nada…"

As ondas curtas são
assim. Captam-se ali, mas aqui se fica surdo. Depois, sem razão, as coisas
mudam. Aquela tripulação, cuja posição permanece desconhecida, já se manifesta,
aos vivos, fora do espaço, fora do tempo e nas folhas brancas dos postos de
rádio já são fantasmas que escrevem.

Ter-se-á acabado a
gasolina ou é o piloto que, antes da pane, joga a sua última cartada: chegar ao
solo sem se esmagar?

A voz de Buenos Aires ordena a Trelew:

"Perguntem-lho".

O posto de escuta de T.
S. F. parece-se com um laboratório: níquel, cobre e manómetros, rede de
condutores. Os operadores de avental branco, silenciosos, parecem entregues a
uma experiência.

Os seus dedos delicados
afloram os instrumentos, exploram o céu magnético, pesquisadores buscando o
filão de ouro.

"Não respondem?"

"Não respondem."

Vão talvez apanhar aquela
nota que seria um sinal de vida. Se o avião e as suas luzes de bordo subirem de
novo até às estrelas, eles talvez ouçam o canto daquela estrela…

Os segundos correm.
Correm verdadeiramente como sangue. Estarão ainda voando? Cada segundo faz
surgir uma probabilidade. .E eis que o tempo que passa
parece destruir. Do mesmo modo que, durante vinte séculos, o tempo se apossa
dum templo, abre o seu caminho no granito e o desfaz em pó, vinte séculos de
desgaste concentram-se em cada segundo e ameaçam uma tripulação.

Cada segundo leva consigo
qualquer coisa.

A voz de Fabien, o riso
de Fabien, o sorriso. O silêncio vai ganhando terreno. Um silêncio cada vez
mais pesado que cai sobre a tripulação como o peso dum mar.

Então alguém faz notar : — Uma
hora e quarenta. Último
limite da gasolina: é
impossível que voem ainda.

E a paz desceu.

Como ao cabo das viagens,
vem à boca um travo amargo e enjoativo. Cumpriu-se qualquer coisa, de que se
ignora tudo, qualquer coisa repulsiva. E no meio dos tubos de níquel e destas
artérias de cobre, sente-se a mesma tristeza que reina nas fábricas arrumadas.
Todo este material parece pesado, inútil, fora de uso: um peso de ramos secos.

Resta apenas esperar o dia.

Dentro de algumas horas a
Argentina inteira vai surgir à luz do dia e aqueles homens lá ficarão, como se
estivessem na praia, olhando para a rede que puxamos, puxamos lentamente, sem
sabermos o que trará.

No seu escritório,
Rivière sente uma calma que só é possível por ocasião dos grandes desastres, no
momento em que a fatalidade liberta o homem. Ele pôs.em
estado de alarma todas as autoridades duma província. Já não pode fazer mais
nada, é preciso esperar.

Mas a ordem deve reinar
mesmo na casa dos mortos.
Riviève faz sinal a Robineau
:

— Telegrama para as escalas Norte: "Prevemos
grande atraso do correio da Patagônia. Para não atrasar demais correio da
Europa, juntaremos correio da Patagonia ao próximo
correio
da Europa".

Inclina-se um pouco para
a frente. Mas lembra-se de qualquer coisa, era importante. Ah! sim. E para não
esquecê-la.

— Robineau.
— Sr. Rivière?

— O senhor redigirá uma
ordem. Os pilotos ficam proibidos de ultrapassar mil e novecentas rotações:
estão a dar-me cabo dos motores.

— Está bem, Sr. Rivière.

Rivière inclinou-se um
pouco mais. Sente necessidade, sobretudo, de estar só:

— Vá, Robineau.
Pode ir, meu amigo….

E Robineau assusta-se com
esta igualdade perante sombras.

XXI

Robineau vagueava agora,
melancólico, pelos escritórios. A vida da Companhia parara, visto que aquele
correio, previsto para as duas horas, seria anulado e só partiria de dia. Os
empregados, os rostos sisudos, continuavam de vigília, mas tudo era inútil.
Continuava-se a receber, num ritmo regular, as mensagens de proteção
das escalas Norte, mas os seus "céus limpos", as suas "lua
cheia", e os seus "vento nulo" sugeriam a imagem dum reino
estéril. Um deserto de luar e pedras. Ao folhear, sem aliás saber por quê, um
processo em que estava trabalhando o chefe do escritório, Robineau deu por
este, de pé, à sua frente, esperando com um respeito insolente que ele lhe
devolvesse os documentos. O seu ar dizia: "Quando quiser, não é verdade?
isso é meu. . ." Essa atitude dum inferior chocou
o inspetor, mas não encontrou réplica alguma e, irritado, estendeu-lhe o
processo. O chefe de escritório voltou ao seu lugar com um ar de grande altivez. "Devia
tê-lo mandado passear", pensou Robineau. Então, para não perder a linha,
deu uns passos, pensando no drama. Aquele desastre implicaria o descrédito duma
política e Robineau chorava um duplo luto.

Depois surgiu-lhe a
imagem dum Rivière, ali fechado no seu gabinete e que lhe tinha dito: "Meu amigo…" Nunca homem algum
estivera a tal ponto falto de apoio. Robineau teve uma grande pena dele.
Perpassaram-lhe pela cabeça várias frases obscuramente destinadas a lastimar, a
consolar. Animou-o um sentimento que lhe pareceu duma grande beleza. Então foi
bater mansamente à porta. Não obteve resposta. Não se atreveu a bater com mais
força e empurrou a porta. Rivière lá estava. Pela primeira vez, Robineau
entrava no gabinete de Rivière, quase como um igual, um pouco como um amigo, um
pouco, pensava ele, como o sargento que se junta, sob a metralha, ao general
ferido e o acompanha na derrota e se torna seu companheiro de exílio.
"Estou a seu lado, aconteça o que acontecer", parecia querer dizer
Robineau.

Rivière permanecia calado
e, de cabeça caída, olhava para as mãos. E Robineau, de pé à sua frente, já não
se atrevia a falar. Mesmo abatido, o leão intimidava-o. Robineau buscava
palavras cada vez mais tocadas de dedicação, mas cada vez que levantava os
olhos, dava com aque–la
cabeça inclinada a três quartos, aqueles cabelos grisalhos, aqueles
lábios que fechavam tanta amargura. Por fim decidiu-se
: — Sr. Diretor. ..

Rivière ergueu a cabeça e
olhou para ele. Despertava de um sonho tão profundo, tão distante que talvez
nem tivesse dado ainda pela presença de Robineau. E ninguém soube nunca qual
foi o seu sonho, nem o que ele sentia, nem a imensidão do luto que cobria a sua
alma. Rivière fixou Robineau durante muito tempo, como se esse fosse a
testemunha viva de qualquer coisa. Robineau sentiu-se embaraçado. Quanto mais
Rivière olhava para Robineau, mais aflorava aos seus lábios uma expressão de
ironia incompreensível. Quanto mais Rivière olhava para Robineau, mais este
corava. E mais parecia a Rivière que Robineau tinha vindo ali testemunhar, com
uma boa vontade enternecedora e uma espontaneidade infeliz, a estupidez dos
homens.

Robineau sentia-se
perturbado. Nem o sargento, nem o general, nem a metralha podiam agora ser para
ali chamados. Passava-se algo de inexplicável. Rivière continuava a olhar para ele.
Então Robineau, sem querer, corrigiu um pouco a sua atitude, retirou a mão da
algibeira esquerda. Rivière continuava a olhar para ele. Então, finalmente
Robineau com um infinito embaraço e sem saber por quê, disse
:

— Vim para receber as suas ordens.
Rivière puxou o
relógio e disse
simplesmente :

— São duas horas. O correio de Asunción aterrará às duas e dez. Mande decolar
o correio da Europa às duas horas e um quarto.

E Robineau espalhou a
espantosa notícia: não se suspendiam os voos noturnos.
E Robineau dirigiu-se ao chefe de escritório:

— Traga-me esse processo para que eu o
verifique.

E quando o chefe de
escritório parou em frente dele :

— Espere.

E o chefe de escritório esperou.

XXII

O correio de Asunción anunciou que ia aterrar.

Mesmo nas horas mais
difíceis, Rivière tinha seguido, telegrama a telegrama, a sua marcha feliz. No
meio da confusão, aquele vôo representava para ele a
desforra da sua fé, a prova. Aquele vôo feliz
anunciava, pelos seus telegramas, mil outros voos igualmente felizes. "Não
há ciclones todas as noites." Rivière pensava ainda: "Uma vez o
caminho traçado, já não se pode deixar de segui-lo!"

Vindo do Paraguai, de
escala em escala, como dum adorável jardim cheio de flores, de casas baixas e
de águas mansas o avião vogava à beira dum ciclone que não lhe escondia uma
única estrela. Nove passageiros, aconchegados nas suas mantas de viagem,
encostavam a testa à janela, como uma vitrina cheia de jóias, pois as pequenas
cidades da Argentina já desfiavam, na noite, todo o seu ouro, sob o ouro mais
pálido das cidades de estrelas. O piloto, à frente, sustinha com as mãos aquele
precioso carregamento de vidas humanas, com os olhos bem abertos e cheios de
luar, como os de um pastor. Buenos Aires já abrasava o horizonte com o seu fogo
suave e em breve cintilaria como um tesouro fabuloso. O telegrafista fazia
partir com os seus dedos ágeis os últimos telegramas, como os acordes finais duma
sonata que tivesse dedilhado, alegremente, no céu e de que Rivière compreendia
a melodia; depois recolheu a antena, espreguiçou-se um
pouco bocejou e sorriu: "Chegamos".

Ao aterrar, o piloto
encontrou o seu camarada do correio da Europa encostado ao seu avião, de mãos
nos bolsos.

— É você que continua?

— Sou.

— O avião da Patagônia já chegou?

— Não o esperamos:
desapareceu. Está bom tempo?

— Esplêndido. Fabien
desapareceu?
Trocaram poucas palavras a esse respeito.

Uma grande fraternidade dispensava-os das frases.

Fazia-se o transbordo
para o avião da Europa dos sacos em trânsito de Asunción
e o piloto, sempre imóvel, a cabeça inclinada para trás, a nuca encostada à
carlinga, olhava as estrelas.

Sentia nascer um imenso poder e foi tomado por uma forte
alegria.

— Carregado? — disse
uma voz. — Então
podem ligar.

O piloto não se mexeu.
Punham o seu motor em
marcha. Sentiria em breve nas suas espáduas, encostadas ao
avião, o aparelho viver. O piloto tranqúilizava-se
finalmente, após tantas falsas notícias: partirá. . . não partirá. . . partirá! Os seus
lábios entreabriram-se e os dentes brilharam sob o luar como os de um jovem
felino.

— Cuidado com a noite, hein!

Não escutou o conselho do
seu camarada. De mãos nos bolsos, a cabeça inclinada, voltado para as nuvens,
montanhas, rios e mares, fora tomado por um riso silencioso. Um riso frouxo,
mas que passava através dele, como a brisa passa pela folhagem das árvores, e o
fazia estremecer vivamente dos pés à cabeça. Um riso frouxo, mas muito mais
forte do que as nuvens, as montanhas, os rios e os mares.

— O que é que você tem?

—  
Aquele idiota do Rivière que me.. . que julga que eu tenho medo!

XXIII

Dentro dum minuto o avião
sobrevoará Buenos Aires e Rivière, que volta à luta, quer ouvi-lo. Quer ouvi-lo
nascer, troar e desvanecer-se como o passo formidável de um exército em marcha
nas estrelas.

Rivière, de braços
cruzados, passa por entre os secretários. Em frente duma janela aberta, pára,
escuta e sonha.

Se tivesse suspendido uma
única partida, a causa dos voos noturnos estaria
perdida. Mas, antecipando-se aos fracos, que amanha o reprovarão, Rivière
largou, na noite, outra tripulação.

Vitória.
. . derrota…
estas palavras não têm sentido algum. A vida está por debaixo dessas imagens e
já prepara novas imagens. Uma vitória enfraquece um povo, uma derrota acorda
outro. A derrota que Rivière sofreu é talvez uma promessa que torna mais
próxima a verdadeira vitória. Só o conhecimento em marcha é que conta.

Dentro de cinco minutos
os postos de T.S.F. terão dado o sinal de alerta às escalas. Numa área de mil e
quinhentos quilómetros o frémito da vida resolverá todos os problemas.

Já se eleva um canto de órgão: o
avião.

E Rivière, em passos
lentos, volta ao seu trabalho, no meio dos secretários que o seu olhar duro faz
curvar. Rivière, o Grande, Rivière, o Vitorioso, carregando a sua pesada
vitória.

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