A história de Romeu e Julieta

Itália

Em -parte alguma do mundo seria necessário explicar a origem de Romeu e Julieta, os infelizes amantes de Verona. Antes, porém, que o gênio de Shakespeare se apoderasse da história que corria na boca do povo humilde, e dela fizesse o monumento literário que conhecemos, era assim, singelamente, que se passava de pais a filhos a triste história das jovens vítimas que redimiram, com o seu amor imortal, a longa herança de sangue e de ódio que lhes roubou a vida.

ROMEU E JULIETA

COMPRIDA é a história dos ódios entre os Capuleti e os Montecchi. Tais ódios ti nham origem em qualquer remota afronta; talvez um homicídio. Era uma série jamais acabada de encontros, punhaladas, duelos, espadas em punho…

Verona inteira tinha sempre algo a dizer sobre o último conflito entre os criados de uma e de outra casa, quando uma noite…

Em uma dessas noites em que o ar parece carregado de um sortilégio especial. A cidade dormia. Mas no palácio de Capuleto todos os vitrais góticos das janelas resplandeciam de luz. De vez em quando ouviam-se passos sobre o pavimento da rua. Grupos de homens e mulheres ataviados com trajos vistosos, cobertos com máscaras, embuçados em capas coloridas, iam chegando à porta do palácio, iluminada com tochas.

No interior, a sala de festas surgia profusamente provida de luzes. Vários criados, distribuídos por ela, achavam-se prontos para servir o vinho e os manjares. Os músicos atacavam os primeiros compassos de uma dança. Junto à porta, messere Capuleto recebia com jovialidade seus hóspedes. Mostrava-se espirituoso, festivo. Para cada qual usava uma frase amável, um gracejo, um refrão a propósito, certas saídas picantes. Tratava todos com franqueza e familiaridade. A sala acabou por encher-se por completo, e as danças animaram-se. Sob as máscaras, risos, olhares maliciosos, frases insinuantes…

A festa já estava em seu ponto culminante, quando Teo-baldo aproximou-se de messere Capuleto, seu tio. Deixou cair-lhe ao ouvido algumas palavras: um Montecchio se havia introduzido na festa… Exatamente Romeu, o herdeiro da família.

Messere Capuleto procurou acalmar a irritação de seu sobrinho. Romeu era um jovem estimável, que todos na cidade conheciam como bom e digno. Ademais, já que estava em sua casa, o velho Capuleto considerava-se sujeito ao respeito que se deve aos hóspedes. Não podia desonrar seu teto, enfrentando-o ali.

Por que razão fora êle meter-se precisamente na casa de seu inimigo? Não era aquilo uma provocação? — pensava Tepbaldo.

Não: não era. Romeu, justamente, ficava bastante à margem da luta com os Capuleti. Seu natural simples, bondoso, afastava-o delas. Sua nobreza impedia-o de entrar em casa de seus inimigos com intenções pouco retas.

Outra coisa ali o levara. Entrara furtivamente, seguindo os passos de uma mulher que lhe tirara o sono e o apetite. Entrara sem outra preocupação senão a de receber a esmola de um olhar de Rosalina, um seu sorriso amável.

Mas, acompanhando com os olhos as idas e vindas da moça, Romeu depressa encontrou uma nova atração. Foi como que a interferência de uma luz violenta naquela sua tensa contemplação. E, dentro de alguns instantes, depois de ter durante meses ocupado com ela os sentidos, a memó-ria, a imaginação e a vontade, Rosalina desapareceu do Olimpo mental do jovem Montecchio.

Achou-se, pois, quase sem o perceber, seguindo os pas-sos de uma jovem loura, esbelta, belíssima, muito jovem, que era conduzida pela mão de um homem de fidalgo porte. De vz em quando dançava com êle, e às vezes passava muito perto de Romeu. Ou era êle quem se aproximava dela?

Indagou de um criado, que não soube dizer-lhe quem era a moça. Aproximou-se de novo, a jovem, e dessa vez ficou sozinha, junto de uma coluna. Romeu ali estava, quase roçando por ela. Não precisou pensar muito, e seus lábios já estavam falando.

— Se com minha mão, muitíssimo indigna, profano este santo relicário.. .

E sua mão apanhava, com efeito, aquela outra, de dedos compridos e finos, de pele suavíssima.

Foi tudo rápido, maravilhoso. Os olhos comunicaram fogo, e as palavras trocaram paixão. Foi coisa de alguns segundos. Depois, um beijo que parecia selar amor de vários anos. Ao abandonar o palácio dos Capuleti, Romeu ia absorto, com o coração inquieto. Seus companheiros, Mer-cuecio e Benvoglio, que o haviam acompanhado, gracejavam ainda com êle, a respeito de Rosalina. Entretanto, o jovem levava Julieta no sangue. Sim: Julieta Capuleto. A filha do dono da casa em que se introduzira furtivamente.

Mercuccio mostrava-se falastrão e chistoso. Falava de Romeu ao amigo, e ambos nem perceberam que êle se ia atrasando no passo, e que, por fim, perdiam-no.

***

 

No jardim dos Capuleti. Um tanque. Talvez o coaxar de uma rã. Perfume de flores. Um repuxo de água sobre o tanque de mármore.

Julieta, em sua sacada, fala consigo mesma. Fala de Romeu… De Romeu, que ela agora sabe ser um Mon-tecchio.

Mas que significa Montecchio? Um nome não é a pessoa. O que chamamos rosa exalaria o mesmo perfume se a designássemos com outra palavra qualquer.

— Romeu, por que és Romeu?

È a voz desejada… A voz do amado, que surge entre os cravos e as rosas, como um acalanto sortílego da noite:

— Chama-me apenas "meu amor", e assim me batizarás de novo! De agora em diante deixarei de ser Romeu! Odeio meu nome, por ser êle o de um inimigo, a teus ouvidos. Se tivesse esse nome escrito em mim, eu o rasgaria.

O diálogo toma asas. As frases são cada vez mais ardentes. É tarde. De dentro da casa chamam Julieta. Ela entra. Torna a voltar, não consegue deixar a sua sacada.

— Não posso continuar aqui, Romeu querido. Só duas palavras. Se queres que eu seja tua esposa, comunica-me, por meio de uma pessoa de confiança que mandarei amanhã procurar-te, onde e a que horas queres que nos unamos pelo matrimônio. Ponho minha sorte em tuas mãos. Hei de seguir-te sempre, como a meu dono e senhor.

O sino do convento repicava, alegre. Chamava para a missa da madrugada. Como estavam felizes as andorinhas, sob os beirais! Uma porta na parte de trás do convento estava aberta. Entrou primeiro um homem. Fidalgo, revelava isso em seu porte. Depois, duas mulheres, uma donzela e sua aia. A igreja estava fechada. Não havia fiéis. Apenas um frade. Na mesa da comunhão, o homem e a mulher. Um tanto afastada, a aia. O frade abençoou-os. Acabava de casá-los.

O sol já estava alto. Era a hora em que o mercado refervia de gente, de gritos de mulheres e vendedores, dos cacarejos de galinhas, zurrar de burros, grunhir de porcos. Era difícil transitar entre os montes de verduras e frutas, de aves e ovos, de cordeiros pelados, de tecidos, de quinquilharias …

Mercuccio e Benvoglio esbarraram com Teobaldo e alguns Capuleti. Houve troca de palavras. Depois, surgiram os aços. Houve um alvoroço de cestas pelo chão, bater de asas de aves, gritos femininos, correr de crianças. Esta-vam nos primeiros momentos da briga quando chegou Romeu. Coocou-se entre eles. Falava com humildade a Teobaldo. Pedia paz, pedia o fim da discórdia…

— Teobaldo, tenho motivos para apreciar-te…

O Capuleto mais e mais se fazia altivo, diante daquela atitude de Romeu.

Mercuccio, impaciente, surpreendido, humilhado, sal-tou, a espada já fora da bainha.

Romeu se interpôs, e Teobaldo aproveitou justamente a ocasião para ferir Mercuccio.

Romeu teve que sofrer a agonia do fiel companheiro, leve que vê-lo morrer por sua culpa. Pensar que exatamente êle tinha dado oportunidade à arma homicida do inimigo. À dor, juntou-se a ira. Uma sede de castigar o traidor, de vingar Mercuccio. Ainda conseguiu alcançar Teobaldo, que se afastava.. De novo as espadas reluziram.

Depressa corria a notícia por toda a cidade. De porta em porta, de janela em janela. Crianças gritavam-na pelas ruas:

— Mataram Teobaldo! E foi Romeu!

Várias pessoas se reuniram e levaram o cadáver para a casa de Capuleto. Ali houve cenas desesperadoras, gritos e pranto das mulheres, promessas de vingança, dos homens.

Todo aquele ruído não chegava ao recôndito jardim, à sacada, ao quarto em que Julieta se recolhera com seus pensamentos, à espera da noite que devia trazer-lhe Romeu. Foi a ama quem lhe deu a notícia: a morte de Teobaldo e o desterro de Romeu, por ordem do príncipe.

Julieta ficou em desassossego terrível. Por um lado, poderia querer a quem matara seu primo, ao inimigo de sua família? Porém, por outro lado, poderia odiar seu esposo? Amava-o, amava-o profundamente, com toda a sua alma… E aquela realidade acabou por sobrepor-se a qualquer outra consideração.

À noite, Romeu escalou o muro do jardim, como da outra vez, mas não para ficar lá embaixo. Saltou também para a sacada.

Frei Lourenço, confessor de Romeu, conhecia-o desde criança. Casara-o com Julieta, e dessa vez — mais uma vez!

— foi seu muro de lamentações, seu consolo na atribulação. E, além disso, engenhoso artífice de uma solução.

Romeu tinha de abandonar Verona. Mas o frade era homem de boas idéias, um desses homens de Deus que não só têm a palavra sempre pronta, como também desejam fazer dela realidade, pondo toda a boa vontade em jogo para sanar os danos do erro e do mal. Mas, nos negócios humanas, sobretudo quando neles interfere a paixão, surgem imponderáveis que escapam a qualquer previsão. Estava resolvido que no momento oportuno Frei Lourenço faria saber aos Capuleti e aos Montecchi o casamento de Romeu e Julieta. Que faria com que o marido voltasse de Verona, que arranjaria um entendimento entre as duas famílias…

Pois bem: o primeiro obstáculo foi ter messere Capuleto decidido dar sua filha em casamento ao conde Paris, um nobre amigo da casa, que aspirava à mão da jovem havia muito tempo. Uma cena desagradável passou-se entre Julieta e seus pais. Ela recusava casar-se. Sabia muito bem que a razão para tal recusa estava acima de quantos argumentos pudessem usar seus progenitores. Eles, porém, ignorando o vínculo que a unia a outro homem, queriam dissuadi-la, a mãe através da persuasão, o pai pela violência. Até a ama, terceira figura daqueles amores, falava também agora a favor do casamento com Paris. De novo, Frei Lourenço foi consolo e ajuda. Julieta foi ter com êle, desesperada. Também dessa vez arranjou êle um recurso. Mais complicado, pois cada vez mais as coisas se emaranhavam, pela obstinação, pela cegueira, pelo erro e pela paixão, e era preciso recorrer a artifícios maiores para combatê-los.

Chegado o dia previsto para o casamento de Julieta e Paris, a casa de Capuleto estava movimentada, com o alvoroço de criados, aias e pajens. Mudavam-se móveis, tapetes eram colocados, preparavam-se flores, ramalhetes. Chegavam manjares de todo o tipo. A dona da casa estava em todos os pormenores. Messere Capuleto ia de um lado para o outro, e gritava, gesticulava, animava uns, repreendia outros, estimulava todos, entre gracejos e risos. Sua voz era ouvida por toda a parte: "Atividade! Atividade! Atividade!"

Foi a ama quem deu o alarma. Tinha ido despertar Julieta e saiu do quarto dando gritos lancinantes. Correram os pais, vários criados: Julieta estava deitada sobre a alta cama de dossel. Vestia suas galas de noiva. Seu rosto, que o alvíssimo tule branco emoldurava, mostrava-se pálido, inanimado, de uma beleza glacial, como se fosse de nácar ou de mármore. A mãe aproximou-se, e viu que a jovem não respirava. Tinha perdido o calor da vida.

O enterro foi no dia seguinte. Toda Verona estava consternada. Acumulavam-se os males sobre a casa dos Ca-puleti. Primeiro Teobaldo, agora Julieta!

Apenas uma pessoa na cidade sabia que, em realidade, Julieta não morrera: Frei Lourenço. Êle próprio preparara uma beberagem, que a moça tomara, trêmula e esperançosa, na noite da véspera do casamento. Esperava o frade mantê-la como morta durante quarenta e oito horas, no panteão dos Capuleti. O tempo exato para poder avisar Romeu, a fim de que êle viesse, e a levasse para Mântua.

Entretanto, e mais uma vez, o destino ia transtornar aqueles planos. Frei Lourenço mandou outro frade a Mântua, onde estava Romeu, com uma carta em que lhe explicava seu plano, e a urgência de seu regresso. Mas a carta não chegou ao seu destino, porque numa pequena aldeia de passagem prenderam o mensageiro durante vários dias, suspeitando que êle pudesse levar o contágio da peste que ali grassava. Voltou, pois, o frade ao convento, trazendo a carta, sem a ter entregue ao destinatário.

Entretanto, já um criado de Romeu lhe dera a notícia da morte de Julieta. E o amoroso, sem pensar em mais nada, pôs-se a caminho de Verona. Chegou, quando já avançada ia a noite.

No cemitério, Romeu caminhava entre as sombras densas, cortadas, às vezes, por vagas formas brancas, que eram arestas, superfícies de lápides, braços de cruzes, colunas cravadas na terra.

Uma massa de pedra destacava-se, com maior relevo: o mausoléu dos Capuleti.

Romeu dispunha-se a levantar a pedra que cobria a porta do subterrâneo, mas deteve-se, bruscamente. Algo movia-se, ali perto. Um vulto saía de trás de um cipreste.

— Montecchio sacrílego! Detém teus passos! Queres vingar-te para além da morte?

Era Paris, o noivo frustrado de Julieta. Tinha estado rondando, como um cão, o cadáver daquela que deveria ter sido sua esposa.

Romeu quis evitar a luta, mas Paris cortou-lhe a passagem, desembainhando a espada. E o jovem esposo de Julieta só veio a saber quem era aquele seu inimigo ocasional quando Paris já estava estendido no chão, dentro de um charco de sangue, morto.

Romeu, porém, parecia insensível ao próprio espetáculo da morte. Febril, tomado por uma obsessão invencível, pôs–se a trabalhar com frenesi para levantar a pedra do panteão.

Ao retirá-la, a cavidade que deixava o subterrâneo a descoberto retumbou, com um ruído ôco, profundo. Exalações mefíticas saíam do fundo do sepulcro.

Romeu desceu, sem vacilar. A lâmpada que levava na mão ia mostrando as paredes despidas, úmidas, o corpo em decomposição de Teobaldo… e Julieta também ali estava. Intacta, como uma figura de cera.

Quando Frei Lourenço chegou, presumindo já desgraças irreparáveis, encontrou primeiro o corpo ensangüentado de Paris. Na cripta estava Romeu junto do catafalco de Julieta. O jovem também já não tinha vida. Bebera a morte, num frasco de veneno.

Julieta começava, justamente, a despertar. Terminavam os efeitos da droga absorvida.

— Onde está o meu amado Romeu?

O frade quis levá-la dali, para impedir que chegasse a ver o seu querido que jazia ali ao lado. Apressava-a. Urdiu uma escusa momentânea para conseguir que ela dali saísse enquanto ainda sob o estonteamento que a droga lhe produzira, mas tudo foi inútil.

Julieta precipitou-se sobre o cadáver de Romeu. Mostrava tal serenidade, expressava-se com uma tranqüilidade tão grande, que Frei Lourenço alarmou-se mais do que se a visse reagir com pranto e gritos desconsolados.

— Beijarei teus lábios! Talvez ainda exista neles um resto do veneno, para matar-me com seu conforto…

Os lábios de Romeu ainda estavam quentes.

Sem que o frade percebesse, ao mesmo tempo que os beijava, Julieta tirava o punhal que estava no cinto de seu amado, e, inclinada sobre êle como estava, apertou com fôrça a ponta da arma contra o próprio coração.

Todos os sinos dobram em tom plangente, lúgubre. A população em peso se aglomera, consternada, ao presenciar a passagem da procissão fúnebre. Pela primeira vez

Capuleti e Montecchi iam ao lado uns dos outros, em paz. E ninguém pensava em vinganças, em ódios. Seus resultados estavam ali, patentes demais, e de tal maneira se impunham a dor e o arrependimento por uma obsessão mantida cegamente durante tanto tempo, que em todos os corações floresciam idéias de paz e concórdia.

Ao chegar à frente do lugar em que o príncipe dispusera que se desse sepultura aos amantes, aquele fidalgo, diante dos representantes de ambas as famílias e do povo que assistia, comovido, à cerimônia, expressou em palavras o sentimento que já dominava a todos: a urgência de acabar com aquela luta fatal, o exemplo inegável em que se transformavam aquelas mortes e aquele amor dos dois jovens, vítimas do ódio.

 

Fonte: Maravilhas do conto popular. Adaptação de Nair Lacerda. Cultrix, 1960.

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