A imagem da Grécia Antiga como uma ferramenta para o colonialismo e para a hegemonia europeia – Martin Bernal

Comentários de BERNAL, Martin. A imagem da Grécia Antiga como uma ferramenta para o colonialismo e para a hegemonia
europeia. In: FUNARI, P.P. A. (Org.) Repensando o Mundo Antigo – Martin Bernal, Luciano Canfora e
Laurent Olivier. Campinas: IFCH/Unicamp, 2005. p. 13.

Miguel Duclós

Martin Bernal
Martin Bernal

O
autor discute a mudança de modelos que ocorreu na abordagem
dos estudos acerca da Grécia Antiga desde o século XIX,
apontando como o Modelo Antigo foi sendo substituído pelo
Modelo Ariano. Para Bernal, o Modelo Ariano traz uma série de
problemas e inconsitências que precisam ser revistas, apesar de
até o tempo presente ainda serem influentes. A questão
apontada é a influência da política e do
nacionalismo dos europeus no tratamento do tema, passando, inclusive
pela questão étnica ou racial. Ou seja, o chamado
Ocidente passou a buscar uma fronteira não somente geográfica
mas cultural, colocando a grécia como o Berço da
civilização Ocidental. Na História da Filosofia,
como Bernal aponta, essa visão se solidificou, o nascimento da
filosofia é situado na Grécia Antiga, a partir do
desenvolvimento do logos grego, desconsiderando-se as correntes
diversas que já existiam, vindas do Oriente, desde tempos
muito mais remotos. Bernal aponta uma passagem do Timeu de Platão
que foi lembrada como motivo de orgulho europeu segundo o modelo
Ariano: Sólon, o grande legislador, em viagem ao Egito, teria
entrado em contato com um sacerdote que apontou a eterna infância
dos atenienses. O Timeu de Platão, juntamente com o Crítias,
é um diálogo notório por ser a principal fonte
Antiga acerca do Mito de Atlântida. O sacerdote fala da
infância dos atenienses porque, devido aos dilúvios,
eles sempre perderiam os registros do seu passado, ciclicamente, o
que não acontecia no Egito, que com ciclos regulares das
cheias do Nilo, manteria preservada suas tradições
pelos séculos, "enternecidas pelo tempo". O
sacerdote conta isso para dizer que, na época da invasão
atlante, segundo o mito, a civizilização que existia
onde estava Atenas teria sido a principal liderança na
resistência contra a invasão, desse caso, não do
Oriente, mas mais ao Ocidente ainda, num sítio incerto para
"além das colunas de Herácles" (estreito de
Gibraltar), numa época em que o Oceano – chamado justamente
por causa do mito de "Atlântico" era navegável.






Porém,
mais do que uma afirmação acerca da infância ou
bravura dos gregos, o que este episódio revela são as
ligações da Grécia com o Egito. A viagem de
Sólon é um indicativo que vem com outros. Tales, um dos
Sete Sábios e primeiro filósofo, também esteve
no Egito, tendo desenvolvido inclusive um método para medir a
pirâmide a partir da sua sombra. A própria palavra de
etimologia grega "geometria" remete ao contexto do Egito,
uma vez que a gaia+metria referia-se à divisão de
terras no delta do Rio Nilo durante o período de cheias.
Também nos diálogos de Platão, que viajou ao
Egito para se instruir após a morte de Sócrates, por
exemplo, podemos ver os interlocutores de Sócrates exclamando:
"Pelo Cão, Sócrates", sendo o cão
cultuado no Egito.






Bernal
aponta como o Modelo Ariano quis "embranquecer" os gregos
usando como argumento a inclusão de grego na língua
hipotética indo-europeu, supondo assim o matiz nórdico
na formação do povo grego, na questão de ser a
Grécia autócne ou não. Porém, o método
histórico-comparativo que formulou a hipótese da
existência do idioma indo-europeu pode ser pensado num viés
contrário ao racismo. Justamente seu fundador, o alemão
Franz Bopp, aponta uma ligação remota do idioma alemão
com o idioma hindu, da civilização Oriental do Vale do
Indo, ainda mais ao oriente do que as terras mesopotâmicas. A
partir dos textos sagrados hindus, os vedas, que seriam as fontes
escritas mais antigas ainda preservadas, ele identifica idiomas
inegáveis de ligação entre o hindu, o alemão,
o latim e o próprio grego, daí a formulação
teórica da existência não somente do indo-europeu
como de uma civilização ou império anteriores
que comunicaria-se abertamente entre a Ásia e a Europa.






A
própria história grega tem episódios que foram
sendo usados para endossar essa distinção contemporânea
entre Ocidente e Oriente, como se fosse originária, a revelia
de outras complexidades e intercâmbios que existiram, A Guerra
de Tróia e especialmente as Guerras Médicas, contra os
persas, são um deles. É interessante que no estudo
tradicional de história pela abordagem ocidental, a grande
civilização persa seja abordada geralmente somente em
contraposição à da Grécia, para, depois
de "perder" a guerra, sumir dos registros, como se tivesse
sido aniquilada, o que sabemos que não ocorreu.






O
racismo tem sido apontado como uma invenção moderna,
especialmente na sua forma conhecida. Por certa época, não
só as histórias, mas as ciências como em geral,
foram direcionadas para tentar provar a superioridade da chamada
"Raça Ariana", numa postura que mais tarde os
antropólogos desde Levi-Strauss chamaram de etnocentrismo.
Isso se intensificou com a ação colonialista a
imperialista das potências européias num contexto
verdadeiramente global a partir das Grandes Descobertas. Porém,
essa tentativa acabou fracassando, e o próprio conceito de
"raça" hoje é questionado, já que as
diferenças genéticas não permitem apontar uma
diversidade de raças na espécie humana (ao contrário
de cachorros, por exemplo), mas somente de "etnias".






Podemos
comentar alguns pontos interessantes ou mesmo irônicos em tais
tentativas. Primeiramente, a própria expansão européia
ocorre na tentativa de comunicação com o Oriente, que,
naquela época, era muito mais rico e próspero do que a
Europa, abalada ainda pelas sucessivas ondas da peste bubônica,
que, aliás, veio do Oriente. Costuma-se falar do efeito que os
relatos de Marco Polo com as maravilhas das civilizações
orientais teria causado nos europeus, que intensificaram o afã
na busca dessas riquezas. Outra ironia é que a consequente
prosperidade européia ocorreu com a riqueza gerada pelas
colônias, especialmente com as terras da América. O
século de ouro da Espanha, por exemplo, tem o ouro de seu nome
vindo da conquista das terras incas, maias, e astecas.






Outro
fator que aponta como o racismo moderno é adventício é
justamente a escassez de dados acerca das características
étnicas dos povos tratados pelas chamadas "fontes
clássicas". Dados como a cor da pele, o tipo de cabelo e
outros são abordados em segundo plano. Essa incerteza é
uma via de mão dupla, uma vez que dá margem para cada
povo retratar os personagens do passado segundo lhe convém. Se
Alexandre era Macedônico, e não grego, pode bem ser que
as investigações que apontam o matiz mais aloirado que
moreno de seus cabelos encaracolados seja verdadeira, assim como a
afirmação de que teria um olho azul, e outro cinza. O
próprio Alexandre, cuja principal Glória consiste em
difundir a cultura helênica através do mundo conhecido,
conquistando o Oriente Remoto, até certo nível, é
também usado como motivo de orgulho para o Ocidente. Porém,
era favorável à miscigenação e interação
entre os povos. Quando conquistou o Egito, instaurou a chamada
dinastia Ptolomaica. Séculos mais tarde, temos a história
de Marco Antônio e Cleopatra, contada por algumas fontes
tardias, como Plutarco, nas Vidas Paralelas, que destaca a beleza
lendária e o encanto da Rainha Egípcia. Cleopatra
pertencia à dinastia ptolomaica instaurada por Alexandre. As
representações e figuras acerca dela foram
propositadamente destruídas por Otávio, quando este
torna-se imperador. Porém, a discussão de como
Cleopatra era fisicamente é ainda hoje motivo de grandes
controvérsias e simulações, se mais branca, como
seriam os macedônicos, ou se acobreada, como os povos nativos
do Egito, com quais os antepassados de Cleopatra supostamente se
entrecuzaram.






Acerca
do problema do caráter originário da Grécia que
é tratado no texto de Bernal, o filósofo alemão
já tecia severas críticas contrárias, como vemos
em um dos seus primeiros livros "A Filosofia na época
trágica dos gregos", a qual destacamos o seguinte trecho,
na tradução de Paulo César de Souza, Companhia
das Letras:






"Nada
é mais tolo do que atribuir aos gregos uma cultura autóctone:
pelo contrário, eles sorveram toda a cultura viva de outros
povos e, se foram tão longe, é precisamente porque
sabiam retomar a lança onde outro povo a abandonou, para
arremessá-la mais longe. São admiráveis na arte
do aprendizado fecundo, e assim como eles devemos aprender de nossos
vizinhos, usando o aprendido para a vida, não para o
conhecimento erudito, como esteios sobre os quais lançar-se
alto, e mais alto do que o vizinho."

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