D. João VI no Brasil – Oliveira Lima
CAPITULO XX
A REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817
As primeiras notícias da revolução
pernambucana de 1817, em Pernambuco, alcançaram Londres por via das Antilhas,
a uma das quais chegara um navio inglês, Rowena, que pode conseguir
autorização para escapar ao rigoroso embargo posto pelos rebeldes sobre todos
os navios ancorados no porto, e que mais tarde levantaram para as embarcações
estrangeiras. Diziam aquelas notícias ter o movimento tido por motivos determinantes
o descontentamento das tropas por não receberem desde muito seus soldos, nem
disporem de outros meios de subsistência, e o descontentamento do povo
"pelas pesadas contribuições e excessivas conscrições" que provocava
a conquista da Banda Oriental, "na que o povo do Brasil não só não tem
parte, mas julga contrária aos seus interesses".648
Hipólito escrevia isto, mas Palmela não
era funcionário diplomático que julgasse abaixo da sua missão restabelecer a
verdade dos fatos, e tanto menos deixaria passar sem a devida contestação
semelhantes asserções, quanto lhe assistia razão bastante em qualquer
desmentido. Os abusos administrativos, sobretudo as prepotências, tinham
diminuído em todo o novo Reino por um efeito reflexo do progresso dos tempos, e
em Pernambuco a situação se apresentava até privilegiada, confiado como andava
o governo havia anos a um homem pacato e bondoso.
Com sua costumada assinatura — Um
brasileiro — defendeu Palme-la em comunicados ao Times o governo do
Rio das pechas de suspicaz e tirãnico, com que o queriam gratificar os que
defendiam por interesses ou por princípio a revolução pernambucana. "Esse
governo posto que absoluto — escrevia o futuro embaixador — não é para melhor
dizer outra cousa mais que uma autoridade doce e paternal. Terão crimes ficado
freqüentes vezes impunes no Brasil, mas nunca, e desafio qualquer os de citar
um exemplo em contrário, a inocência pode com razão queixar-se da injustiça do soberano da terra. Em
toda a extensão desta é antes facultada uma liberdade de palavra que mais degenera em licença."
Tratando
particularmente da referida falta de pagamento às tropas, concordava Palmela em que era
possível darem-se fatos de tal natureza, visto a administração não estar ainda sujeita a regras
uniformes, e cada província
prover separadamente as despesas da sua guarnição. "Posso todavia assegurar que as tropas
recebem regularmente seus soldos na mor parte dos estados do Brasil e que semelhante falta se
jamais ocorreu, não podia passar de temporária e em escala muito inferior à que
mostram supor algumas
pessoas." Em Pernambuco, poderia ter Palmela acrescentado se possuísse um
conhecimento íntimo de todas as capitanias, não faltavam recursos ao Erário graças à
conhecida economia de Caetano Pinto, mas esta própria economia, exacerbada como
na verdade o era até a avareza, podia justamente ter determinado atrasos no
pagamento das tropas.
E tão reais estes atrasos, que o motivo é apontado no primeiro dos ofícios de Maler sobre ‘ ‘o
haver a hidra revolucionária conseguido erguer uma hedionda cabeça no Brasil".649
Escreveu-o ele logo depois de ter entrado inopinadamente no porto do Rio a 25 de março, o
brigue com bandeira
branca que conduzia, bastante constrangido, sua excelência o governador
general. "Há mais de um ano — reza o citado ofício — que a guarnição de Pernambuco era mal paga
e mal alimentada pelo governo; o território desta cidade e dos distritos vizinhos
extremamente produtivo en algodão, é estéril em comestíveis e gêneros de primeira necessidade, de
sorte que o pão
para os ricos e a mandioca para a classe indigente vinha de fora e era comprada por preços muito
elevados. Ávidos especuladores monopolizavam os carregamentos que chegavam e os revendiam a
retalho a: público da maneira a mais arbitrária. Os clamores e as queixas
gerais despertaram
enfim o indolente Montenegro, que encarregou o brigadeiro do exército Salazar
de tomar algumas medidas para conter o monopólio e reprimir a desordem. Mas, este
oficial general não tendo podido satisfazer a esperança e os votos do público, cometeu-se ainda
o injusto dislate de
propor às tropas dar-lhes as rações de pão em espécie e de lhes abonar 16 soldos por cada saco de
mandioca, cujo preço no mercado era de 50 soldos."650
A razão da escassez de comestíveis de primeira
necessidade é que Maler falsamente
atribuía à improdutividade do terreno da costa e matas para essa cultura. Luccock acertadamente a fornece ao
falar também na carestia dos
mantimentos, da farinha nomeadamente, porque pagando o algodão melhor, na província se não cultivavam bastante
gêneros alimentícios como mandioca e feijão. Por outro lado a
capital consumia abundantes provisões de boca, provocando sua importação, e a
guerra do sul com seus repetidos fornecimentos estava fazendo encarecer todos
os gêneros. Para cúmulo a estação de 1816 fora muito seca no norte, portanto
escassas as safras.
Destas circunstâncias combinadas
derivou-se neste ponto o sofrimento do povo pernambucano, quando os plantadores
e comissários andavam em maré de fortuna com o aumento, que chegou a 500 por
cento, do preço do algodão por motivo da guerra recente, de 1812 a 1813, dos
Estados Unidos contra a Inglaterra, da extinção em 1815 do bloqueio continental
e da perspectiva de mais largas exportações de tecidos da Inglaterra para os
velhos mercados europeus e os novos mercados latinos do Novo Mundo,
tornando-se indispensável a matéria-prima, para cujo suprimento não chegava a
produção norte-americana.
Mas fácil tarefa cabia a Palmela ao afirmar nos seus
comunicados ser a exorbitância das taxas uma completa falsidade, relativamente,
já se vê, e em absoluto o recrutamento rigoroso exercido para a expedição do
rio da Prata. Nas províncias setentrionais do Brasil, focos da insurreição que
estalara, é até notório, lembrava o representante de Dom João VI,
que se não recrutou um homem nem se impôs um soldo de contribuição para
aquela empresa militar. As tropas empregadas no sul tinham vindo de Portugal e
eram pagas pelo Erário Público de Lisboa, exceção feita das tropas regionais
paulistas e riograndenses. Podia o Tesouro do Rio de Janeiro ter realizado
alguns adiantamentos, mas a ocupação de Montevidéu, importando a cobrança das
receitas aduaneiras desse considerável porto, bastaria dentro em breve para
custear as despesas da expedição.
As únicas queixas que no atilado dizer dos
comunicados, destinados, não nos esqueçamos, a um periódico londrino e a um
público britânico, podiam os brasileiros nutrir, seriam os favores
extraordinários outorgados no terreno comercial pelo tratado de 1810 e as
concessões a que no assunto do tráfico fora levado o governo do Rio. Estas eram
expressões de ressentimento bem mais fundadas do que meras questões de
subvenção por este ou por aquele reino, enquanto se não abria a risonha perspectiva
financeira do objeto da empresa satisfazer os gastos da sua operação. Muito
mais impopular devia com certeza ser em Portugal a ambiciosa guerra do sul,
porque lhe acarretava despesas sem proveito privativo, nem prestígio direto.
Verdade é que no Brasil faltava igualmente, afora interesse que justificasse a
conquista, a não ser o político, a vaidade nacional que só pode gerar um acordo
de sentimentos. E o Brasil ainda era, moral como organicamente, fragmentário.
A revolução de 1817 tem que ser
examinada sobretudo pelo seu lado teórico, no seu aspecto correlativo, em sua
feição proselítica. Foi um sinal mais dos tempos, a manifestação de uma
combinação de impulsos em que entravam o amor exagerado, literário se quiserem,
filosófico mesmo, mas em todo caso ativo, da liberdade, e uma noção jactanciosa
da valia americana
que o abade de Pradt aponta com felicidade quando escreve num dos seus muitos livros de
vulgarização da emancipação do Novo Mundo, que "pela primeira vez, tratando-se do Brasil com
relação a Portugal, uma parte da América aprendera a levantar a cabeça mais alto que a Europa e dar leis àqueles de quem tinha por hábito
recebê-las".
Aliás
estes sentimentos abstratos e gerais assumiam traços concretos e particulares na província
revoltada. A ordem do dia de 4 de março de 1817, do capitão-general Caetano Pinto de Miranda
Montenegro, ajustava às razões do Correio uma terceira, a mencionada e que estava na raiz
do descontentamento
popular: a cizânia levantada "entre os nascidos no Brasil e os nascidos em Portugal",
acusados de monopolizar os melhores empregos civis e militares, os maiores proventos e tudo mais
de bom na terra. Por outras palavras, eram a questão nativista e a afirmação independente que
sob as vestes democráticas,
tão em moda na época, surgiam incomparavelmente mais veementes do que em Minas no final do século
XVIII.
"Há presentemente — proclamava o doutor governador
— alguns partidos,
fomentados talvez por homens malvados, com a louca esperança de tirarem alguma vantagem das
desgraças alheias, sem se lembrarem de que todos somos portugueses, todos vassalos do mesmo
soberano, todos concidadãos
do mesmo Reino Unido, e que nesta feliz união, igualando e ligando com os mesmos laços
sociais os de um e outro continente, só deve
dividir e separar aos que fomentam tão perniciosas rivalidades."
Deste motivo básico aparecem os outros como florescência e, cortados
do pé, não significam bastante para explicarem a sublevação, convin-do notar que nos ciúmes nativistas,
nem todos de preponderância política, que a tradição consagrava, entravam em não pequena
escala zelos alimentados
pelos nacionais dos bens alcançados pela atividade comercial dos portugueses.
Caetano Pinto, que era homem inteligente e se gabava de ser homem de lei, compreendia
perfeitamente quanto eram inevitáveis todos esses ciúmes patrióticos e econômicos que em torno dele
se agitavam, e
filosofava sobre o caso, desculpando-os, em vez de procurar abafá-los pela violência, o que sabia
dever ser contraproducente. A filosofia condizia
admiravelmente com o temperamento pacífico e a calma judicativa
do futuro marquês da Praia Grande: com a própria segurança do Recife pouco se
incomodava a sua suprema autoridade, sem tentar mantê-la com uma melhor polícia
que coibisse os freqüentes roubos, assaltos e assassinatos, sendo que de
ataques de ladrões o governador em pessoa havia sido vítima resignada.
Não admira que, no tocante à conspiração
que toda a gente sabia estar-se forjando nas lojas maçônicas e nos
conciliábulos patrióticos, em segredo e às escancaras, Caetano Pinto só tarde
se resolvesse a agir, tão tarde que o movimento já não teve suma dificuldade em triunfar. A economia excessiva e a negligência, em matéria de administração, do governador de
Pernambuco podem portanto ser apontadas, sem receio de errar, como fazendo
parte das razões próximas da sedição, se bem que resgatassem aqueles defeitos
brandura e tolerância que não eram comuns aos capitães-generais.
De como andava indisciplinada a
soldadesca e não menos a oficialidade, o que mais que tudo traduzia o
mal-estar, físico e espiritual, característico do momento, deu evidente prova
o crime que deu o sinal da rebelião. As prisões dos suspeitos, ordenadas à
última hora pelo governador, deram com efeito origem ao conhecido episódio de
quartel em que o capitão José de Barros Lima (Leão Coroado) assassinou
o seu superior, provocando com tal ato geral insubordinação nas fileiras do
regimento de artilharia, depois agitação na cidade, toques de rebate,
exaltação dos ânimos, libertação dos detidos políticos e à mistura de
criminosos vulgares, e por fim a mais completa perturbação da ordem.
"Enfim, a 6 deste mês, contava Maler
para Paris, um regimento de artilharia excedendo-se em vociferações e espírito
de amotinação, o governador, avisado do tumulto, enviou ao quartel o
brigadeiro Salazar para tratar de acalmar a desordem. Quando começava a
exortar o regimento, um capitão, talvez receoso do efeito das suas palavras,
apressou-se em atravessá-lo com a espada e Salazar caiu imediatamente morto.651
Ao saber do assassinato o governador mandou um dos seus ajudantes de campo,
que foi igualmente vítima.
Enquanto que isto se passava nos
quartéis, três brasileiros percorriam a cidade, reuniam a multidão e pregavam a
revolta, vociferando contra o governo e contra os europeus. Estes três chefes
eram: 1? um negociante, Domingos José Martins, recentemente chegado de Londres,
onde quebrara fraudulentamente; 2º Antônio Carlos de Abreu,652 que
durante vários anos fora magistrado em Santos, atualmente ouvidor, acusado de
assassinato e vivendo na mais pacífica, e aqui mais vulgar, impunidade; 3º o
vigário de uma paróquia;653
este celerado para melhor se impor à multidão teve a infâmia de se revestir do sobrepeliz e da
estola. São visivelmente os três chefes da insurreição, e Domingos José Martins é o mais
influente de todos.654
Ouviam-se com freqüência gritos de: Viva a independência! Viva a liberdade dos filhos da
pátria! Morram os europeus!"655
Os sucessos da revolução de 1817 são de sobejo
conhecidos. Os fatos que
lhe assinalaram a curta duração, encontram-se miudamente historiados em Muniz Tavares656 e sinteticamente, quando não gongoricamente romantizados em discursos e
panegíricas sem conta. A recentíssima publicação das Notas dominicais657 veio ajuntar outra relação fidedigna de mais uma testemunha presencial. A
narração do sacerdote liberal e os por-menores de Tollenare acham-se plenamente
confirmados nas informações, neste caso distantes mas sempre bebidas na boa fonte, de Maler, e, o
que aqui mais avulta e importa, nas declarações prestadas em França pelos capitães de embarcações dessa nacionalidade
então surtas no porto do Recife.658
Eram em número de quatro tais embarcações. Segundo Luís
Vicente Bourges
(Borges?), lisboeta domiciliado em Nantes, imediato e sobrecarga do navio do mesmo porto La Felicite, houve vinte pessoas mortas no motim de 6 de março, contando-se no número três marinheiros franceses que não responderam ao quem
vivei dos patriotas. Avaliava ele a força regular dos insurgentes (entrando decerto as
milícias, porque o efetivo dos dois regimentos de linha estava, ao tempo do movimento, bastante reduzido) em 2.500 a 3.000 homens.
Quando La Felicite se pôs ao mar a 12 de março, pois que a circunstância da revolta lhe
permitiu reunir uma grande carga, sobretudo de algodão, a preços vis por continuar o embargo sobre os navios nacionais,
ocupavam-se os rebeldes de manhã à noite em exercitar-se, melhorar a defesa das
fortalezas e outros pontos principais de
resistência, e organizar a cavalaria.
Outra testemunha do mesmo gênero, o capitão do navio La Perle, eleva o número dos mortos a
50 ou 60, visto que, como sempre acontece em semelhantes ocasiões, aproveitaram-se os que de
repente se viram com as armas na mão para satisfazer antigas vinganças ou dar
simplesmente curso
aos seus instintos bestiais. É mister não esquecer que daquelas mortes no
bairro de Santo Antônio, quase todas, foram culpados os facínoras libertados da cadeia e não os
soldados e milicianos, tanto que a ulterior ocupação, pelos regulares desta revolução em suma
ordeira, do bairro do Recife, não foi manchada
por igual morticínio.
Pensava aliás este
segundo declarante que, não se oferecendo resistência em parte alguma,
se não teria dado matança se não fosse o boato de um apelo feito pelo
intendente da marinha (Cândido José de Siqueira) aos tripulantes das
embarcações portuguesas fundeadas dentro dos arrecifes, que estimulou a
violência dos rebeldes e chamou a suspeição e a ojeriza contra tudo que tivesse
aparência de marítimo. Dos quatro homens de borda da Perle que, com receio da
pilhagem, para lá carregavam do armazém estabelecido pelo seu capitão para a
venda a retalho, 17 a 18.000 francos em ouro, três foram sumariamente
espingardeados e ao quarto apunhalaram nas costas e partiram um braço, não o
acabando os assassinos de matar e até o levando para um hospital quando
verificaram ser um francês. O capitão assim se exprimiu textualmente: "Os
negros livres e escravos, bem como os mulatos armaram-se de picas, machados
etc, e massacraram todos os que no primeiro momento tentavam fugir, particularmente
marinheiros; os insurgentes tendo sabido que o filho do intendente fora a bordo
das embarcações portuguesas surtas no porto, a fim de pedir aos tripulantes que
acudissem em socorro dos realistas."
As peripécias essenciais são
uniformemente relatadas, delas não existindo, a bem dizer, duas versões. O
governador continuou até a última a ser homem de paz, saindo do palácio à
primeira descarga para encerrar-se na fortaleza do Brum e aí se render,
desdenhando os elementos de resistência — bem superiores aliás aos dos
insurgentes que no bairro de Santo Antônio ainda operavam com fragmentos de
regimentos, sem organização e com pouco armamento — que no Recife mesmo se
agrupavam e viram-se dispersos pela ousadia de um dos oficiais rebeldes. Este
homem decidido659 foi quem se apoderou da ponte do Recife quando os
portugueses se dispunham a cortá-la para melhor defenderem sua causa,
isolando-se, de fato abdicando com aquele gesto a intenção de recuperarem a
posição perdida, da qual os rebeldes logo se assenhorearam por completo,
arvorando sua bandeira improvisada e proclamando sua criação menos
improvisada.
Seguiu-se entre a gente boa da
cidade, do comércio especialmente, que era todo português, a infalível
debandada, movida pelo terror. Estes primeiros emigrados, chegando à
Bahia numa embarcação que logo se fez de vela e informando o conde dos Arcos do
ocorrido, permitiram-lhe tomar suas precauções: chamar a si a tropa, redobrar
de vigilância, prevenir cada um dos suspeitos da sorte que o esperava se se
atrevesse a pronunciar-se, e distribuir proclamações realistas que nos parecem
hoje ridículas na sua retórica empolada e afetada veemência, mas que foram
eficientes, sufocando toda veleidade revolucionária e produzindo o resultado visado, que era o sossego fiel da
província. Arcos procedeu em suma como general que era: se fosse homem de
toga, teria talvez procedido como Caetano Pinto, que mesmo as denúncias mais
fundadas desprezou, até ser tardio o tratamento do mal ainda que violento.
Pode ter-se como certo que a
sedição pernambucana tinha a sua ramificação baiana, e é possível que a rápida
ação do conde dos Arcos, que tão grande desânimo local gerou, não fosse
estranha a preocupação de dissimular, ou antes fazer desaparecer, caindo no
vago e por fim no esquecimento, uns confusos projetos de conspiração
aristocrática, tendente — si vera est fama — a substituir um trono por
vários tronos, e desconhecida a não ser pela referência indistinta de uma
proclamação do governo provisório do Recife aos baianos.660
Outro tanto, sem quiçá os precedentes, aconteceria no
Ceará, onde a missão do subdiacono Alencar veio a gorar como a do padre Roma à
Bahia, graças à teimosia do capitão-mor do Crato, um velho malfeitor que para o
crime se valia da sua autoridade, e à energia do governador. Malgrado
quaisquer simpatias que intimamente despertasse nessas duas capitanias, não
conseguiu a revolução atrair à sua órbita subversiva mais do que a Paraíba e o
Rio Grande do Norte.
Este era o maior susto da corte,
que o movimento se propagasse, efeito que Maler julgava inevitável; e a
facilidade com que nas duas províncias satélites foram levadas de vencida as
poucas, débeis resistências levantadas, faz supor uma corrente oculta de
solidariedade cujo circuito já estivesse estabelecido, a menos que não implique
uma matéria extremamente amorfa de experiência democrática. Não podia, porém,
ser este último tanto o caso, porque no meio da geral apatia ignorante existia
um núcleo ilustrado, elemento diretivo que então exercia mais decidida influência
do que hoje, arrastando as vontades irresolutas e determinando as adesões
inconscientes.
Semelhante elemento estivera
sujeito a uma verdadeira iniciação, a um trabalho de iluminação política de que
tinham sido condutores os sacerdotes lidos em filosofia revolucionária que
foram os principais agentes, propagadores e mártires dessa revolução de
padres, o que pelo menos no Brasil daquela época significava uma revolta da
inteligência.
Tanto foi a insurreição de 1817
um movimento muito mais de princípios que de interesses que Tollenare,
espectador e cronista insuspeito dele. não aponta sequer entre as suas causas
razão alguma econômica. Apenas lhe descobriu razões morais: a ambição positiva
de uns e a imaginosa quimera de outros, as duas bolindo com os sentimentos
nativistas, agravando os despeitos e humanamente
acirrando a cupideza. Teve portanto a resolução pernambucana, e bem saliente,
a sua formosa feição, pois que cativa e fascina quanto representa nobre
aspiração de liberdade, a qual sabemos não vicejara no Brasil, nem mesmo depois que a
transplantação da corte
determinara uma mudança climatérica. O governo das províncias continuou a ser o das capitanias: o
governo do bom ou do mau tirano. Feliz a terra quando, como a Bahia, se lhe deparava um
governador como Arcos
que nos seus sete anos de governo (1810-1817), se não deu ensanchas ao espírito político,
confundindo o civismo com a lealdade dinástica e equi-parando o patriotismo à
dedicação monárquica — termos que se não excluem, mas que podem viver separados — prática e
eficazmente protegeu a
instrução pública, o desenvolvimento intelectual, as comunicações fluviais, o comércio e a defesa militar.
A revolução apresentou-se contudo com suas vestimentas usuais de
indisciplina, desordem e violência. Sua estréia foi o homicídio de militares de graduação por oficiais
subalternos e, para sustentar-se, se bem que a perfilhassem e favoneassem o clero nutrido de
idéias francesas e a aristocracia territorial túrgida de orgulho de nascimento e de sentimento
bairrista, tinha
ela de tornar-se demagógica e, na falta de outro povo, apelar para a plebe de cor. A carta de
um português a seu compadre, descrevendo a cidade depois do levante diz que se não viam mais
do que casas fechadas,
não aparecendo nas ruas a gente branca, e que os patriotas negros e mestiços que pejavam as
calçadas, em vez de andarem como dantes pelo meio da estrada, tinham modos insolentes de abordar
os europeus e pedir-lhes fumo.
O comércio, pelo duplo motivo do sentimento nacional e da
desconfiança, só
podia ser adverso ao movimento emancipador e republicano, o qual não dispondo
senão limitadamente de forças regulares — as que se rebelaram fizeram-no por espírito de imitação
muito mais do que por consciência
patriótica e não ofereciam plena confiança em caso de incertezas — e tendo que lutar contra
um sentimento monárquico que provou ser ainda fervoroso em muitos, ou pelo menos com o temor
do desconhecido
entre a população de certa condição,661 carecia de apoiar-se nas camadas
baixas. A ralé é que afinal podia dotar a revolução do largo fundamento de que esta precisava para
exibir vigor material de que não dispunha, e manifestar entusiasmo mais geral, ainda que não
mais ruidoso e consistente,
do que o fornecido pelos vigários democratas que foram a cabeça e o
coração do movimento, os senhores de engenho de sangue azul, rivais natos dos mascates como
o da carta ao compadre66– e os patriotas, em diminuto número, de biblio-sugestão, frutos das academias do Cabo e do Paraíso.
A revolução de Pernambuco seguiu a marcha de todos os
pronunciamentos
militares; começou por aumentar no triplo ou quádruplo o soldo das tropas, dos defensores,
oficiais e soldados, da pátria e da liberdade, o que facilitou a circunstância de acharem-se no
Erário cerca de 800.000 escudos, sendo 200.000 em bilhetes do Banco do Brasil.663 Depois,
para angariar o favor popular, o governo provisório664 aboliu vários
impostos, entre
eles o de subsídio militar, de 160 réis por arroba, sobre a carne; para prover
a sua segurança, determinou a compra de armas e munições, montou em guerra um brigue, duas
canhoneiras e outra embarcação, fazendo apelo a marinheiros estrangeiros por
desconfiar dos portugueses, e permitiu o levantarem particulares companhias de
cavalaria; para dar arras do seu fervor democrático, ordenou o tratamento de vós
entre os patriotas, para conciliar a classe agrícola, já que a mercantil
lhe fugia, facilitou o
pagamento das dívidas à extinta Companhia de Pernambuco, cuja liquidação ainda durava, e deferiu
a emancipação dos escravos, proclamando "que a base de toda a sociedade regular, é a
inviolabilidade de qualquer espécie de
propriedade".
Pode dizer-se que os atos da jovem República foram todos
impress: de
moderação e até de espírito conservador, o que não é para admirar se a encabeçavam e dirigiam gente de
bens e a gente de ilustração. Os atos propriamente políticos também foram repassados de moral
jacobina — a
revolução foi paradoxalmente honesta — e de afetada confiança. Afeta da e igualmente espontânea, pois
que o celebrado, já lendário orgulho dos pernambucanos (os de boa família,
senão de boas letras, pela maior parte plantadores) aumentara com a fortuna dos últimos tempos,
os bons pre-ços do
algodão e do açúcar, e refletia-se nos papéis emanados do governo provisório,665 agindo
esta fartura de acordo com a miséria da plebe ao rebentar o motim.
Apesar da bazófia
pressagiar intransigência, a tolerância republica na foi tanta que os empregados
foram todos conservados nos seus ofícios, mediante uma adesão não em extremo
difícil de obter. Apenas destoara desta
norma legal, e não sem explicação ou justificação, a abertura das cadeias, logo corrigida, e anulação dos processos
civis e criminais, e o seqüestro nas propriedades dos negociantes que por causa
da revolução se ausentaram da terra. "A 8 de março, escrevia o insuspeito
Maler, a ordem e a tranqüilidade
estavam perfeitamente restabelecidas; li uma carta de um negociante inglês,
escrita daquela cidade [Recife] a 9, que dizia não se perceber mais o menor vestígio da
revolução, gozando-se da mais perfeita calma e segurança."
O capitão da Perle, que permaneceu em
Pernambuco trinta e dois dias depois de arvoradas as cores da revolução,
escrevia que nem a sua embarcação, nem as outras nove ou dez, estrangeiras,
ancoradas diante do Recife, foram no mínimo molestadas: "Os direitos
ficaram na mesma, o negócio livre e requisição alguma foi lançada, a não ser
de munições de guerra que havia ordem de arrecadar contra pagamento, por
decisão do governo provisório."666
Quando a Perle singrou, a 8 de abril, os
escravos, armados no começo, tinham restituído as armas e retomado sua canga.
"O novo governo até me concedeu três marinheiros portugueses em
substituição dos meus três homens de tripulação mortos no tumulto do primeiro
dia, testemunhando seu vivo pesar pela calamidade que me assaltara."
É mesmo possível que a situação houvesse melhorado,
sob o ponto de vista da segurança e do direito, depois da insurreição, pois não
pode restar dúvida de que a província se achava, antes, numa condição quase
anárquica, existindo para a sublevação, ainda considerada objetivamente, causa
mais do que suficiente. Quando encerrasse exageração o quadro publicado no Correio
Braziliense661 por uma testemunha ocular, confirma-se nos
seus dizeres a impressão de quão aleatória era a segurança individual; quão
relaxado o governo; quão venal a justiça; quão desonesta a administração, tanto
na Junta de Fazenda, por onde corriam documentos falsificados, como na
Alfândega, onde florescia público e notório o contrabando, chegando a
desfaçatez ao ponto de possuírem oficiais dela lojas de fazendas, como na
Intendência de Marinha, ninho de falcatruas.
Remetendo para a França o Preciso de
José Luiz de Mendonça, penhor do seu republicanismo violentado, o capitão da
Perle achava-o razoável, enumerando as queixas que havia da corte, a começar
pela agrava-ção das contribuições.
O governador, todos concordavam e a testemunha
ocular do Correio o proclamava, era o único talvez dos altos
funcionários limpo de mãos; mas se a sua indiferença otimista rastejou
antes do levante na inconsciên-cia, tomando reuniões de conspiradores por
assembléias de mações, achando-lhes até graça e cerrando os olhos a fatos
iniludíveis, ao ponto de correrem no Rio boatos que em Pernambuco Caetano Filho desconhecia e no entanto diziam respeito ao seu governo, depois do
levante a sua cordura foi quase cobardia.668
Não foi certamente seu exemplo que inspirou o conde dos Arcos, o qual, sem esperar instruções
da corte, tomou logo na Bahia as providências necessárias para a pronta.repressâo da sedição
vizinha, adotando uma
atitude militante e até feroz, despachando a bloquearem o Recife o único
pequeno navio armado que tinha à sua disposição e dois mais que obteve ou arrancou de particulares,
e fazendo antes de decorrido o mês de março seguir um corpo, disponível e improvisado, de
1.500 homens para
a comarca das Alagoas com ordens terminantes de levar tudo a ferro e a fogo. "Nenhuma
negociação será atendida, sem que preceda como preliminar a entrega dos chefes
da revolta, ou a certeza de sua morte; ficando na inteligência de que a todos é lícito
atirar-lhes a espingarda como a lobos." Era destas proclamações que Maler
se espantava malgrado todo seu espírito
reacionário.
A perspectiva não se oferecia desanuviada aos olhares ansiosos dos patriotas. Já a 29 de março de
1817 escrevendo ao seu governo, o cônsul britânico John Lampriere augurava mal do movimento: "I think to per-ceive that the generality of the
inhabitants become daily more gloomy."669 Com efeito os
soldados da revolução desertavam em grande número, apesar do tão considerável aumento
na sua paga, tendo que serem alistados, para encher-lhes os claros, muitos escravos aos quais
por este motivo se concedia
alforria, dando-se ou prometendo-se indenização aos senhores Sobretudo não chegavam notícias,
as almejadas notícias da Bahia, onde os rebeldes contavam com adesões seguras, quando ao
invés, desse mesmo
lado do qual no século XVII viera o socorro definitivo para a expulsão dos holandeses — auxílio tão indispensável
quanto foi no século XVIII o francês para a libertação das colônias inglesas — partia agora a
reação contra o grito pernambucano de
independência.
Também
a pobre insurreição em parte alguma deparava com as simpatias a que tinha ou se julgava
com direito, ou de que nutria confiança Nas
capitanias do norte por onde até certo ponto se propagara o movimento, mas que eram porções do litoral pouco
favorecidas, menos povoadas e constituindo a seção mais desprovida de
recursos do país, a contra-revolução lavrou rápida: no Rio Grande do Norte,
logo que se ausentou o contingente paraibano
de José Peregrino, na Paraíba por um impulso espontâneo do velho espírito
tradicional que produziu uma reação fatalista, originando um conflito de
princípios em que o receio representava um papel secundário.
A comarca das Alagoas conservara-se pode dizer-se fiel à causa legal Nela ecoara debilmente o clamor
subversivo e estalou quase sem provocação a contra-revolução no Penedo, passando de pronto a
Maceió e vindo em ofensiva deter a marcha do
reforço de José Mariano Cavalcanti, mandado
do Recife para o sul da província.
Com as colônias revoltadas da América Espanhola não houve tempo nem sobretudo ensejo de firmar
solidariedade. Nos Estados Unidos a repercussão foi nula. O emissário Antônio Gonçalves da
Cruz, o Cabugá, para lá despachado a obter o reconhecimento e proteção, só alcançou a
tardia remessa por especulação particular de provisões de guerra e também de
boca, que estas andavam caríssimas no Recife, chegando um alqueire de farinha,
que custava dantes 1.600 a 1.920 réis, a pagar-se por 9.200, sem aparecer o gênero no mercado.
Contra essa infração de neutralidade, posto que não oficial, merecendo contudo a fiscalização
oficial, protestou aliás sem demora o ministro Corrêa da Serra, sendo atendido pelo
governo federal, como o fora na sua reclamação contra navios armados nos portos americanos, com
bandeira dos insurgentes
espanhóis, para atacar as embarcações da metrópole, e também as portuguesas, estando em luta
o governo do Rio com Artigas e podendo dar-se a todo momento o rompimento com
Buenos Aires.670
Outro motivo de declaração por parte de Corrêa da Serra seria, após
sufocada a rebelião de 6 de março, o proceder do cônsul americano Jo-seph Ray, acusado pelo próprio
juiz relator da alçada, entre outros feitos de natureza política, de comunicações mais que suspeitas
com os revolto-sos
e com oficiais estrangeiros por estes aliciados (os três bonapartistas, do exército francês, engajados
pelo Cabugá nos Estados Unidos, chegaram tarde) e de acoutar na sua residência
três chefes do movimento sedi-cioso na Paraíba, que daí foram arrancados pela
polícia. O governo americano houve que
destituir o seu cônsul.
Na Inglaterra, onde o governo provisório sonhara fazer de
Hipólito o seu
ministro, o apoio à revolução foi igualmente, e com maior razão, negativo,
obtendo pelo contrário Palmela facilmente do governo do dia, como era de prever,
quanto pretendia em detrimento da república. Só não conseguiu, porque o gabinete
britânico invocou a propósito a neutralidade adotada, entre a Espanha e suas colônias sublevadas,
como um precedente
a respeitar, a coadjuvação de fragatas de guerra que sugerira, ao julgar no primeiro momento mais
temerosa a insurreição do que na realidade
ela se revelou.
Acontecera que as notícias mais cedo espalhadas tinham
sido as trazidas
pelo negociante inglês do Recife Bowen, amigo de Domingos José Martins e o
mesmo em favor de quem os rebeldes abrandaram o decretado embargo marítimo. Bowen não só
disseminou informações muito otimistas com relação ao triunfo dos
patriotas, como em defesa deles fez insinuações nos Estados Unidos, para onde
se dirigira, e ao Foreign Office, por intermédio do ministro britânico em Washington. Lord Castiereagh desprezou porém semelhantes insinuações e, sob pretexto de
atacar o governo legal, contrariou quanto pode o movimento de Pernambuco.671
O Board of Trade mandou
afixar um edital aconselhando os navios ingleses que pretendessem comerciar com
a praça do Recife, a dirigirem-se primeiro à Bahia a fim de colherem
informações sobre a marcha do conflito e estado do bloqueio, que poderia
entretanto haver sido levantado. O governo britânico consideraria boas presas
de guerra, e não reclamaria os navios seus nacionais que fizessem sinal de
querer romper esse bloqueio participado e admitido.
O correio deixou de receber cartas
de Pernambuco, a não ser via Bahia. Mandou-se embargar nas alfândegas inglesas
as cargas de pau-brasil — monopólio da coroa — que os insurgentes pudessem ter
remetido para disporem de fundos. A conduta do cônsul Lampriere, de apresentar-se
a receber o seu reconhecimento da junta revolucionária,672 foi
fortemente desaprovada, informando-se disto o funcionário que o governo
britânico acreditava em todo caso ter erroneamente agido por zelo, para mais
eficazmente proteger as pessoas, bens e comércio dos vassalos ingleses, e não
por extemporânea e indevida boa vontade para com os insurgentes.
Foi em nota de 17 de julho que
Palmela se queixou do ato estranhá-vel de um funcionário estrangeiro que
aceitava de uma junta rebelde67^ a confirmação de suas funções,
autorizadas pelo governo legal. Na sua resposta de 13 de agosto, comunicava o
principal secretário de estado na repartição dos Negócios Estrangeiros, que
"recebera ordens do príncipe regente, para declarar ao conde de Palmela a
fim de que o participe a S. M. Fidelíssima, que ele fortemente desaprovou o
comportamento daquele empregado público, e que, em conseqüência disto, ao mesmo
empregado público se fez saber, que ele obrara de um modo diretamente contrário
ao teor da sua comissão; e que não devia ter-se apresentado tão cedo perante
aquelas autoridades irregulares, ou fazer, sem positiva compulsão, qualquer ato
que fosse, pelo qual desse a entender a um governo usurpador, que ele era
reconhecido por um funcionário britânico".674
Como a Inglaterra segue contudo
invariavelmente a norma de defender quanto possível os seus funcionários no
exterior e nunca os deixar a descoberto, lord Castiereagh acrescentava: "O
abaixo assinado roga todavia ao conde de Palmela haja de certificar ao seu governo,
que o governo de S. A. R. está convencido, de que tudo o que o cônsul de S. M.
obrou naquele caso, foi
mero efeito de um zelo mal entendido, para proteger a legítima propriedade e comércio
dos vassalos de S. M. e que por nenhuma forma fora em razão de ser afeiçoado aos insurgentes, ou
de ter má-vontade ao
governo de S. M. Fidelíssima, o que amplamente se aprova pela sua correspondência oficial."
Chegou Palmela a alcançar,675 com sua
insistência amável e graciosa persuasão, que os capitães dos paquetes ingleses676
deixassem de admitir a bordo e transportar para Lisboa, exemplares do Correio Brazliense e
do Português
que, a propósito
da revolução pernambucana, inseriam artigos julgados sediciosos e publicavam verdadeiros libelos
contra os governadores do Reino de Portugal e Algarves.677 Assegurava Palmela na sua
correspondência
oficial que obteria o mesmo com relação ao Brasil caso o quisesse o governo do Rio como o tinha
querido a regência de Portugal. A pouca vontade da corte em associar-se a essa atitude de Palmela
para com certa imprensa periódica, confirma porém que Hipólito era, como se
dizia em Londres,
protegido do gabinete, senão do próprio monarca.
Das monarquias européias nunca tinham esperado simpatia os rebeldes pernambucanos, sobretudo das
continentais. O agente consular francês, que era o horticultor Germain, e nem
recebera ainda o exequatur ré-gio, mostrou-se sem rebuços infenso ao movimento, pelo que ficou suspeito à Junta — a qual aliás o
destituíra do seu cargo de botânico em Olinda — e teve por melhor retirar-se para o Rio de
Janeiro, onde faleceu ao chegar. As esperanças de reconhecimento, concentravam-nas os revoltosos
nos Estados Unidos,
em Artigas e no governo de Buenos Aires, ao que contou na corte um negociante francês de
Bordéus, Mr. Vigneaux, embarcado no
lercure, do Havre, que a caminho do Rio fizera aguada em Pernambuco no dia 5 de abril, aí
tomando aquele passageiro.678
A
revolução pernambucana, se não fosse a atmosfera glacial que lhe tolheu os movimentos,679
tinha condições em si para vingar e expandir-se, tomando-se Pernambuco o centro de atração do
Brasil independente, ou mais verossimilmente
a primeira seção independente do novo Reino desagregado. O exemplo das colônias espanholas agia em
seu favor, e o gover-no
descurara anteriormente e por completo o perigo desse inevitável contágio emancipador. O capitão
Hareng, do La Perle, de Honfleur, depôs que tendo partido para Pernambuco em
fevereiro de 1816, encontrara a terra sossegada, apenas frio o negócio, mas nos espíritos tão
grande a fermentação
que tudo anunciava que a província não tardaria em participar no movimento revolucionário que
sacudia a América Espanhola. "Seguia-se com particular empenho os progressos dos
insurgentes espanhóis, sabendo o próprio governo que existiam com eles
inteligências pela via marítima. Para alterar-lhes o efeito, foi que o
capitão-general entendeu fazer proclamações e passar revistas, recordando aos
habitantes e às tropas a confiança e fidelidade para com o soberano, e
prometendo pronta distribuição de víveres pois era sobretudo da carência de
alimentação que os perturbadores tiravam partido para açular os ânimos."650
Por outro lado, chegada a ocasião do
perigo, o governo encontrava-se na situação mais crítica para combatê-lo e
extirpar o mal: a braços com a guerra do Sul o exército, um exército de
oficiais e para mais incapazes
— que custam muito e de nada servem, deles escrevia Maler —, e sem recrutas;
a administração concentrada nas mãos ‘ ‘de um ancião minado pela febre e pelas
convulsões" como era Barca; "esgotadas as finanças e nulo o
crédito".681
Tanto mais louvável e admirável foi
portanto o sério movimento de reação que teve lugar na capital brasileira
contra a implantação da desordem no país e que compreendeu, além do
estabelecimento, a 16 de abril, de um severo bloqueio da costa pernambucana e
paraibana pela esquadra legal,6" a organização de um sólido
corpo expedicionário às ordens de Luiz do Rego, que Maler apelida de militar
bravo e leal, sem qualidades de administrador, porém geralmente estimado pelas
suas excelentes qualidades.
A dificuldade em arranjar soldados era
igual à de desvencilhar-se o governo dos muitos oficiais, uns a meio soldo,
outros circunstancialmente licenciados, pertencentes ao exército de Portugal,
que pediam serviço. "Os oficiais portugueses — comunicava o encarregado de
negócios de França — serão sem dúvida preferidos, e é para recear
que isto produza mau efeito entre brasileiros. Em ocorrências e conjunturas
como as presentes, urge não se deixar só guiar pelos princípios
militares."
Com efeito o movimento, ao mesmo
tempo que antidinástico em anti-português e desta sua cor tiveram nítida
impressão a fidalguia e o comércio do Rio ao tomarem a dianteira em todas as
manifestações de solidariedade com Dom João VI, afligido
mas não sucumbido, e bem disposto a dar um desmentido às previsões pessimistas
de Maler e dos seus colegas diplomáticos, os quais todos não enxergavam os
meios de imediata repressão, acreditavam na propagação do mal anárquico e até
já viam iminente a forçada deserção de Montevidéu perante a diminuição do"
efetivo de ocupação e bloqueio e o desânimo dos partidários da anexação.
A 7 de abril informava contudo Maler para Paris que o Erário vazio fora suprido pelos muitos dons voluntários e os
empréstimos gratuitos. "O Banco desta capital pôs à disposição do governo um milhão de
cruzados, a título
de empréstimo; o barão do Rio Seco deu 50.000 cruzados, e outros capitalistas deram
igualmente somas consideráveis; o conde de Belmonte ofereceu 10.000 cruzados, o marquês d’Angeja a
sua baixela para
ser fundida, que era obra do ourives de Paris Germain, e toda a alta nobreza lhe seguiu o exemplo."
Em Lisboa, o fervor pela sufocação da rebelião colonial foi
muito menor, o que
facilmente se compreende em vista do afastamento e do descontentamento que causava a
indefinida ausência da corte. A regência, no fundo pouco comovida, não quis
entretanto deixar de patentear sua lealdade e devotamento ao soberano, logo organizando uma
pequena força
marítima para ir bloquear o porto rebelde e redobrando de rigor na fiscalização dos navios
procedentes do Brasil. A exibição de energia do conde dos Arcos na Bahia, onde
os primeiros armamentos navais, ajudados espontânea ou calculadamente pela gente abastada da
terra, se fizeram
na frase de Maler, com uma presteza que não era de esperar da índole portuguesa,6–3
instigou tanta atividade entre os governadores do reino que os levou a extremas violências políticas.
Segundo o cônsul-geral Lesseps,684 foi da
sedição pernambucana que nasceu a idéia de uma conspiração "cuja existência e fito não
posso ainda adivinhar,
mas que podia entretanto fazer temer a disposição do espírito público. Convocou-se adrede uma
reunião extraordinária dos membros do governo, com assistência do marechal [Beresford]
e de todos os conselheiros d’estado, guardando-se sobre ela o mais rigoroso sigilo, até que
ontem se soube, com
grave surpresa de todos os habitantes, que muitas prisões tinham sido efetuadas
na noite de domingo para segunda-feira de Pente costes, circulando muitas tropas na cidade, e
estando pronto a entrar ao primeiro sinal um reforço de alguns regimentos congregados nos subúrbios de Lisboa e pelos quais se distribuíra
cartuchame."
Tão de molde aparecia essa conspiração, que não faltou
quem pensasse e há
quem pense ainda que Beresford se inspirou em Fouché e se valeu de tal meio
para preparar os resultados de um plano mais vasto, o qual, no dizer de Lesseps, o
espírito perspicaz da multidão imediatamente descobriu entre os refolhos da política inglesa:
quer isto dizer que compartilhava de semelhante opinião o cônsul do rei cristianíssimo.
O
meio de fato mais seguro para o governo britânico de obstar à tão falada invasão espanhola de
Portugal em represália da ocupação de Montevidéu, seria preveni-la por meio de
uma ocupação inglesa de Lisboa, assim indiretamente provocada pela
revolta de regimentos nacionais. Por outro lado parecia este o melhor modo de dar realidade ao
constante desejo da
corte de Saint James e fazer regressar para o velho reino a família real portuguesa.
Gomes Freire foi a vítima ilustre que na ocasião se ofereceu e cujo suplício precedeu de três anos a
explosão do rancor popular. Então o seu patíbulo se ergueu a meio do espanto, da consternação e
do receio, assim como na Bahia o trágico episódio do fuzilamento do padre Roma,
encarregado de ativar as ligações clandestinas, se passou rodeado dum silêncio
lúgubre e medroso. O ano corria péssimo
para as idéias liberais.
Quando o corpo expedicionário de Luiz do Rego, de quase
3.000 homens,685
embarcou a 30 de abril686 juntamente com muitos voluntários das milícias, formando com a gente da
Bahia, Sergipe e Alagoas um total aproximado de 8.000 homens, no cálculo de Maler, o desânimo
reinava sem partilha
na província rebelde. No Rio no entanto constava e causava apreensões a propalada atividade do
governo provisório no organizar a resistência, confiada em terra a 4.000 ou
5.000 homens, conforme se orçava depois de aumentados os regimentos, e no mar "a um
brigue com 22 canhões,
uma bela escuna americana armada, várias grandes chalupas e canhoneiras prontas a sair, além de
outros grandes navios mercantes que pretendem
armar em guerra".687
Dizia-se, com o mesmo exagero, serem permanentes os
trabalhos no arsenal do Recife, como com verdade o estavam sendo os esforços
bélicos do governo
do Rio, sobressaindo em afã o monarca que não cessava de visitar os arsenais de guerra e
marinha e em pessoa apressar — ‘ ‘com sua presença, seu ardor e seus
cuidados" — os preparativos de repressão, que fazia morosos a falta de trabalhadores e de materiais.
A revolução não merecia mais tanto. Ao recrutamento em
terra correspondia
no Recife a emigração, seqüestrando a Junta os bens dos que assim se
ausentavam, como seqüestrara os navios portugueses. Não menos se despovoava a
cidade pelo pavor do bombardeio por parte da esquadra legal, cujo aparecimento originara
defecções entre os capitães portugueses — os únicos possíveis à falta de nacionais — dos
navios armado: em guerra pelos rebeldes.
Perdera-se de vista o lado teórico; sumira-se o idealismo
da revolução.
Ninguém mais cogitava dos princípios liberais, das leis reformadeiras: o essencial era a salvação
de cada um. Uns poucos — o padre Joãc Ribeiro, Domingos Martins, Antônio
Carlos, Domingos Theotônio — mantinham-se firmes, se já lhes não era lícito esperar. Os outros tão
desorientados andavam que os
portugueses ricos se atreviam a oferecer 100 contos aos membros do governo,
para que renunciassem à luta e se evadis-sem. O povo, por sua vez, tratava
todos eles de aristocratas e não mais se deixava impressionar pelas suas
arengas. Aliás o povo conservara-se, como o observou Tollenare, sem entusiasmo
pelo ensaio democrático que diante dele se desenrolava, sem mesmo uma
compreensão nítida do que se estava passando: somente percebia com clareza que
a sua situação não melhorara efetivamente como lhe haviam anunciado, e que
continuava a sofrer as mesmas privações que dantes. Quanto ao comércio,
escusado é referir, andava por completo paralisado, irritando a gente que dele
vivia.
A revolução pernambucana foi derrubada
pelos próprios elementos conservadores e até populares da capitania, antes de
se dar a intervenção de fora, da mesma forma que a restauração portuguesa de
1654 foi executada pelos elementos brasileiros desajudados mesmo da metrópole.
Antes de chegadas as forças da Bahia, que subiam lentamente ao mando do marechal
Cogominho de Lacerda,688 já a república estava militarmente desmoralizada.
A luta civil abrira-se entre realistas e patriotas, os senhores de engenho
fiéis com quem do seus navios689 se correspondia o almirante
Rodrigo Lobo, e os 400 homens, parte saídos do Recife, onde havia ao todo,
entre regulares e milicianos, 4.000 homens ou mais, e parte reunidos no Cabo,
sob as ordens de Francisco de Paula Cavalcanti que foi o peco general desse
simulacro de república.
O combate de Utinga, um assalto
de engenho, foi um episódio inteiramente local pela composição das facções que
aí se disputaram. Entretanto, na capital, Pedroso, passando das bravatas aos
atos de que era um dos poucos capazes, assinalava o início da anarquia com os
seus fuzilamentos sem processo dos desertores, anunciando com tais descargas
haver cessado a legalidade democrática.
Uma relativa cordura nunca faltou
contudo à rebelião de 6 de março que, antes de varrida pelo temporal levantado
do sul, se tinha ido desfazendo com as manifestações separadas de reação
provincial, provocando uma geral conflagração graças à tentativas de repressão
do governo provisório. A estas se associara em pessoa Domingos Martins, indo porém es-tonteado entregar-se, sem possibilidade de
resistência, pela dispersão das forças, a um destacamento de Cogominho, o qual
entrementes alcançara Serinhaém e, subindo até Ipojuca, a 13 de maio690
destroçou Francisco de Paula, obrigando-o a refugiar-se no Recife.
A causa foi então considerada
perdida e tratou-se da capitulação, mas :endo Rodrigo Lobo recusado aceitá-lo nos
termos propostos pelos revoltosos e mostrado mesmo desdenhar
as ameaças de morticínio de todos os europeus, formuladas em ultimatum por Domingos
Theotônio erigido em ditador — tão certo estava o lobo do mar da doçura do
cordeiro republicano
—, assistiram as destinadas vítimas da sanha jacobina ao espetáculo inesperado da evacuação da
capital, sede do governo rebelde.
Tollenare
conta com mais pormenores do que Muniz Tavares como se passou a contra-revolução. De 19
para 20 de maio, os patriotas, de todo descoroçoados, retiraram-se para Olinda em número de 6.000,
inclusive os escravos
e libertos, levando as bagagens, a artilharia e o cofre militar. A cidade ficou virtualmente deserta, do que um padre correu a dar aviso
aos marinheiros das
embarcações surtas dentro do porto, para que desembarcassem de madrugada a tomarem conta
do Recife, arvorando de novo o pavilhão real que o mesmo sacerdote ia desfraldar "por
sua conta e risco". Ao nascer do sol uma pequena embarcação portuguesa içou com efeito a bandeira
legal, outras imitaram-na e seus canhões salvaram, sem que lhes respondessem, mudas, as fortalezas
de terra, ainda com guarnições insurgentes, que constituíam uma reserva à disposição de
Francisco de Paula Cavalcanti
para proteger a retirada do grosso das forças.
Nos quartéis abandonados encontrou a marujada portuguesa,
uma vez em terra
firme, armas e munições bastantes, e dos fortes se apoderou serr. oposição porque as seus
defensores já lhes faltava por completo o estímulo, tendo-se o chefe, Francisco da Paula, bandeado
com a multidão que dava vivas ao rei, e à frente desta corrido ele próprio a libertar os presos
políticos da revolução, entre os quais o marechal José Roberto, que provisoriamente se encarregou do governo/’91
Os
brigues armados pelos patriotas foram igualmente desamparados e ocupados sem combate. Às 7
horas a mutação de cena era perfeita, agitando-se de novo as cores portuguesas à viração que ia
passar a soprar do mar,
onde se divisava imóvel a esquadra do bloqueio, que só às 811/2,
informada por
mensageiro dos gratos sucessos, deu sinal de si, respondendo às jubilosas saudações de terra.
Passava de 4 horas da tarde quando Rodrigo Lobo desembarcou com 50 homens, insuficientes mesmo para
guarnecer as fortalezas
e sobretudo para conter os marinheiros libertadores que, ébrios percorriam, as ruas dando tiros,
perseguindo os poucos patriotas que se afoitavam a sair, e ao acaso matando também neutros.692
Durou
esta desordem três dias, porque a 23 chegava do sul, com os louros de um fácil triunfo, o
exército legal. O exército patriota, abandonado à sua sorte pelos chefes que, com exceção do
padre João Ribeiro, fugiram disfarçadamente, cada um pelo seu caminho, debandara a três léguas do Recife,
voltando os soldados para a cidade atraídos pelo perdão, e entregando-se com as
armas na mão —os que ainda as conservavam intactas, pois não poucos as tinham
quebrado no primeiro momento de desespero. Outros muitos, os constrangidos,
desertaram em massa, como o deixava prever a pouca firmeza com que tinham
marchado à saída da praça. Nenhum no entanto, lembram com justo orgulho os
panegiristas da revolução pernambucana, se manchou com assassinatos e pilhagem.
Os que retrocederam e se renderam, carregaram até como penhor da submissão o
cofre militar incólume.693
Noutras disposições de espírito a resistência teria
sido fácil e a vitória ilustraria a bandeira republicana nos primeiros
encontros, pois, no dizer de Tollenare, as forças da Bahia não inspiravam
extraordinário receio, só tendo de sofrível a cavalaria. No seu número entravam
em proporção não desprezível índios com seus arcos e flechas, lavradores e
moradores agarrados sem armas e quase sem roupa no caminho da fiel comarca das
Alagoas para o norte rebelde. Os bons militares disciplinados, os aguerridos
veteranos portugueses, tropas que Tollenare chama excelentes, só depois, a 29
de junho, chegaram com Luiz do Rego, portador de proclamações e instruções
redigidas na corte sob o influxo benigno de Dom João VI e
a tendência que nunca deixara de ser liberal do conde da Barca, e destoando
singularmente das enfáticas, sôfregas e cruéis exortações, que Maler apelidava des
boutades irréfléchies, de Arcos.
No Rio de Janeiro a notícia da sufocação
do movimento foi acolhida com foguetes, repiques de sinos e iluminações gerais,
escrevendo Maler que nas noites de 15 e 16 de junho a sua modesta casa foi o
sol do seu bairro. No momento de espalhar-se o feliz boato, dessa vez
verdadeiro, 400 a 500 ressoas da corte correram a felicitar o monarca pelo
restabelecimento da sua autoridade, pejando os salões de São Cristóvão. Tão
satisfeito ficou também o rei com a nova da rápida desaparição do movimento
sedicioso, de que muito se temera a generalização, quão pesaroso — ele próprio
o repetiu várias vezes a Maler694 — pela dura necessidade a que se
via exposto de ter que mandar executar os cabeças da revolução.
O sentimento não parece destituído de sinceridade, pois que a
rigidez com que procedeu Luiz do Rego, em desacordo com o espírito das ordens que recebera, mais tarde descontentou o soberano.
A 3 de novembro de 1817 escrevia Maler que a conduta do governador-geral
de Pernambuco, a saber, a severidade excessiva por ele empregada, refreara os
ânimos mas revoltara toda a gente e alienara todos os corações. Sabia o
encarregado de negócios de França
estar o rei muito desgostado, ainda que pela natural hesitação que o distinguia
até tomar uma deliberação — quando a vacilação se convertia em obstinação —
não tivesse ainda cuidado de dar-lhe um sucessor mais prudente e mais adequado
ao estado convulsionado da capitania, que assim continuava, notando Tollenare
como custou a restabelecer-se a confiança, afluir a gente do mato e
reanimar-se o comércio.
O espetáculo que a Luiz de Rego se deparara tinha entretanto sido de
índole a abrandar qualquer furor, de tão triste e impressivo. Da Junta, c padre
João Ribeiro, frio e intrépido esse, tivera único a coerência de morrer como
cidadão livre, suicidando-se, e a sua cabeça, decepada do corpo mutilado e
passeada em triunfo, entre motejos, pelas ruas da cidade, estava exposta
descarnada e horrível no Pelourinho. Corrêa de Araújo já ante: do dia 20 traíra
a causa que nunca de coração abraçou. José Luiz de Mendonça, preferindo não ser
traidor, entregara-se à prisão. Domingos Martins, preso, espumava de raiva
impotente, enquanto o não transportavam com Antônio Carlos (recolhido de motu
próprio à cadeia), Pedroso, José Mariano Cavalcanti e uma porção mais de
patriotas amarrados ou acorrentados, para os cárceres e patíbulos da Bahia.
Domingos Theotônio. o ditador, que faltara ao seu destino para que não possuía
o talento nem :o vigor das resoluções decisivas e salvadoras, era atraiçoado no
seu esconderijo, do mesmo modo que o Leão Coroado, o vigário Tènório de Itamar
e Antônio Henriques, o único dos quatro que escapou à forca do Recife. O
elemento português, novamente preponderante na orientação política, reclamava
porém severidade na reação, consubstanciando suas idéias de governo no regime
militar arbitrário aplicado ao Brasil, inclinad: a rebeldia, e muito
especialmente na restauração do monopólio comercial O corpo de negociantes do
Recife expressara seu júbilo fazendo um dom de 30 contos ao exército libertador
e organizando em sua honra uma festa de espavento na matriz do Corpo Santo, com
três dias de lausperene, cânticos sem fim, dois sermões e duas bênçãos do
Santíssimo por dia.
Os pregadores trovejavam em vernáculo salpicado de
muito latim contra a impiedade e o jacobinismo; pregadores d’além-mar já se
sabe, visto os padres do novo reino quase todos se enfileirarem entre os
liberais ou nutrirem simpatia pela revolução, e isto por duas razões: 1º, porque
eram das poucas pessoas que sabiam ler e das raras instruídas, para as quais
portanto o horizonte se abria amplamente; 2?, porque eram muito mal
renumerados, embolsando o rei o dinheiro do dízimo como grão-mestre de Cristo,
senhor do padroado e sustentador do clero e fazendo, do que percebia, uma magra
distribuição que constituía ainda assim o melhor do apanágio eclesiástico.695
Nos
intervalos dos sermões eivados de puro lusitanismo, e numa deliciosa
combinação de sagrado e profano,.serviam-se iguarias, doces e re-frescos nas
galerias superiores do templo. As damas em trajes de gala, carregadas de
jóias, que se ajoelhavam e sentavam sobre os tapetes da nave, iam então
espairecer com os oficiais de Luiz do Rego, gente da melhor, rapazes de bonne
mise, escrevia Tollenare em seu canhenho, instruídos e finos: "ce que
Peducation du grand monde offre de plus délicat, se presente dans leurs
manières"
Sua entrada fora triunfal, por entre as aclamações do povo e
as bênçãos dos mercadores assomados às janelas adornadas de alcatifas e colchas,
de onde as senhoras sacudiam flores sobre os esbeltos restauradores da Lei, a
cujo som longínquo de guerra se esvaíra de terror a segunda era da liberdade
pernambucana — como a contava o maldito governo provisório, ingenuamente
classificando como a primeira a do domínio holandês. Combates, lhes não
proporcionara o fado na província que tivera a ousadia de pensar e a loucura de
tentar a sua independência democrática: a tarefa estava mesmo abaixo de tão
nobres e experimentados guerreiros, e melhor fora que a tivessem executado os
da terra, os brasileiros bisonhos. Ficara-lhes o presenciarem as execuções,
suavizando-as com zombadas aos patriotas, escutadas pelas damas temerosas,
algumas delas muito vexadas com o seu cabelo cortado à Tito, para
condescenderem com Domingos Martins que reclamara e cuja esposa dera o exemplo
desse sacrifício da vaidade à austeridade republicana. Como entremez, as
surras nos negros alforriados pela revolução, antes de restituídos ao senhores.
Dos açoites públicos quisera até, no paroxismo da prepotência, Rodrigo Lobo
fazer passível um capitão americano que conseguira escarnecer do bloqueio. Os
processos de castigo eram todos sumários, mas exaustivos.
Por fim a justiça militar
suspensa por ordem do Rio e instituída uma alçada composta de quatro velhos
magistrados do Desembargo do Paço e da Casa da Suplicação, que com sua meticulosidade
irritante e legal impassibilidade rematou a obra dos carrascos e carcereiros
que em Pernambuco e na Bahia tinham ceifado vidas honradas ou estavam cobrindo
de opróbrio as torturadas existências dos patriotas agarrados, agrilhoados e
Transportados para a capitania vizinha quando ainda falecia na rebelde
autoridade para erigir tribunal, que não possuía o almirante nem o marechal
Cogominho.
Foi esse o reinado menos violento, mas não menos perigoso da
delação e da denúncia, e pareceu eternizar-se. Dois anos depois, não tinham
terminado os trabalhos judiciais da corte especial. Removeram-na para a Bahia a
exigências do capitão-general, enciumado na sua autoridade e também não
enxergando mais utilidade num custosa aparelho de justiça que, para justificar
sua função, ameaçava tachar de cumplicidade na revolta todos os pernambucanos
ou melhor todos os brasileiros das capitanias comprometidas, por onde se
estendia a sua jurisdição.
A alçada de 1817 foi brutalmente abolida
pelos acontecimentos que responderam no Brasil à revolução liberal do Porto,
de agosto de 1820, sendo a sua devassa substituída pela ação regular da justiça
que, pela voz da Relação de São Salvador, pronunciou a nulidade do processo,
inquinado de vícios, e mandou soltar os presos, com exceção de Pedroso e José
Mariano. acusados de homicídio e condenados a degredo perpétuo — perpétuo, num
momento em que nada havia senão temporário — para a Ásia. Descia o pano sobre
este clemente epílogo de um drama de sangue sobre o qual, politicamente,
Maler, bom contemporâneo de Marmontel, assim condensava sen-tenciosamente o seu
juízo: "L’histoire, Monseigneur, conservers le souve-nir de peu
d’événements aussi dangereux par les conséquences qu’il pouvai: avoir, et aussi
promptement aussi facilement même prévenu dans ses effets.’
Com menos concisão e um nada mais de
pretensão literária, verseja-va sobre o caso lealmente, ditirambicamente,
pomposamente, com todos: os advérbios em mente que dizia haver proscrito
seguindo "o imortal Fi linto Elísio", num canto épico à aclamação
faustíssima do liberalíssimo Rei Dom João VI, o vate e
vassalo fiel Estanislau Vieira Cardozo, ”Segundo
escriturário do Banco do Brasil, e secretário do 1? Regimento de Cavalaria de
Milícias da Corte":
Mas não te penes, Príncipe! Um momento
De
perfídia, e desdouro não faz vulto
No quociente de séculos de glória.
Troveja o claro céu; benigno é sempre.
Cumpre porém olhar atento a esfera:
São das exalações os raios prole.
Enunciada esta insólita ousadia,
Tua alma nobre por extremo aflita,
Mais pelo que urge o nacional decoro
Que pelo que é de ti, que em fim és grande,
Há de nadar de júbilo em torrentes,
Quando à porfia em turmas acorrerem
Povos fiéis ingênuos a offrecer-te
Os mais prezados bens — fortunas — vidas —.
Assim falava a Dom João VI espavorido, o gigante Amazonas, "de gotejante longa melena, e barba
denegrida, e cor tostada", ao sair-lhe ao encontro, novo Adamastor, quando
"do Pinhal undivago alvejavam inchadas
velas" a caminho do Brasil onde
…. constante querer-te hão os povos.
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