ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA (Rio de Janeiro, 1705-1739) advogou em Lisboa, e, havendo escapado a uma primeira acusação de judaizante, tinha-se popularizado como autor de peças dramáticas, então chamadas óperas, para o teatro do Bairro-Alto, quando foi denunciado por uma escrava e, condenado, sofreu pena capital no Campo da Lã. Espírito’ galhofeiro e que essencialmente ambicionava comprazer ao público, nem sempre acatou a decência; mas não vale negar-lhe, como bem pondera o Sr. Pereira da Silva, o pico da originalidade e do sal cômico. Entre as suas óperas distinguenvse: Vida do Grande d. Quixote de La Mancha; O Labirinto de Creta; Esopaida; Guerras do Alecrim e da Manjerona; e o Anfitrião, no qual se tem querido ver alusões ferinas a D. João V.
Visita do Médico – Peça de Teatro
D. Lancerote — Oh! tarda éste médico! Sevadilha — Não pode tardar muito, pois me disse que vinha.
D. Lancerote — Como estais agora, meu sobrinho? D. TiBÚRCio — Depois que arrotei, acho-me mais aliviado. D. Nize — Vaso ruim não quebra (à parte). D. Clóris — Se fora coisa boa, não havia de escapar (à parte).
D. Lancerote — Não sabeis quanto folgo com a vossa melhora, pois me estava dando cuidado o enterro, e me podeis agradecer a boa vontade, pois vos seguro que havia de ser luzido: vós o veríeis.
D. Tibúrcio — Outro tanto desejo eu fazer a Vossa Mercê.
(Entram D. Gil e Semicupio vestidos de médicos).
Semicupio — Deo gratias.
D. Lancerote — Entrem, senhores doutores.
Semicupio — Qual de Vossas Mercês é aqui o doente?
D. Lancerote — é este que aqui está de cama.
Semicupio — Logo me pareceu pelos sintomas.
D. Tibúrcio — Ai, minha barriga, que morro! Acuda-me, Sr. doutor!
Semicupio — Agora vou a isso; ora diga-me o que lhe dói?
D. Tibúrcio — Tenho na barriga umas dores mui finas. Semicupio — Logo as engrossaremos; e tem o ventre tremido, inchado e pululante?
D. Tibúrcio — Alguma coisa.
Semicupio — Vossa Mercê é casada ou solteira?
D. Lancerote — Não, senhor, que meu sobrinho é macho.
Semicupio — Dianteiro ou traseiro?
D. Lancerote — Ui, Sr. doutor! Digo que meu sobrinho é varão.
Semicupio — De aço ou de ferro? D. Lancerote — é homem: não me entende? Semicupio — Ora acabe com isso; eis aqui como por falta de informações morrem os doentes; pois se eu não especulara isso com miudeza, entendendo que era macho lhe apücava uns cravos, e se fosse varão umas limas; e como já sei que é homem, logo veremos o que se lhe há de fazer.
D. Lancerote — Eis aqui como eu gosto de ver os médicos assim especulativos.
Semicupio — Pois o mais é asneira; diga-me mais, ceou demasiadamente a noite passada?
D. Tibúrcio — Tanto como a futura, porque desde que se me acabaram as chouriças que trouxe no alforge, me tem meu tio posto a pão e laranja.
D. Lancerote — Aquilo são delírios, Sr. doutor.
Semicupio — Assim deve ser por força, ainda que não queira, pois, conforme ao aforismo: Cum barriga dolet, catera membra dolent.
D. Tibúrcio — Não são delírios, Sr. doutor, que eu estou em meu juízo perfeito.
Semicupio — Pior, pois quem diz que tem juízo, não o
tem.
D. Lancerote — Sr. doutor, o homem está alucinado, depois que um fantasma, que saiu de uma caixa, o desancou; e, sobre isto, a grande pena que tem tomado de umas moças que aqui introduziu em casa, enganando-as, de cuja inocência se me veio queixar a mãe, que era mulher de bem, ao que parecia.
Semicupio — Ela é muito criada de Vossa Mercê.
D. Tibúrcio — Deixemos isso; o caso é que a minha barriga não está boa.
Semicupio — Cale-se que ainda há de ter uma boa bar-rigada. Deite a língua de fora.
D. Tibúrcio — Ei-la aqui.
Semicupio — Deite mais.
D. Tibúrcio — Não há mais.
Semicupio — Esta bastará; é forte linguado! Tem muito boa ponta de língua! Vejam Vossas Mercês, Srs. doutores. D. Gil — A língua é de prata. D. Fuas — Úmida está bastante.
Semicupio — Venha o pulso: está intermitente, lânguido, convulsivo.
D. Lancerote — Ah! senhor, que grande médico!
D. Nize e D. Fuas — Como está tão melancólico! (para D. Clóris).
D. Clóris — Estará cuidando na receita.
Semicupio — Ora, senhores, capitulemos a queixa. Este fidalgo (se é que o é, que isto não pertence à medicina) teve uma colérica procedida de paixões internas, porque o espírito, agitado da representação fantasmal e da investida feminil, re-traindo-se o sangue aos vasos linfáticos, deixando exauridas as matrizes sangüinárias, fêz uma revolução no intestino reto; e, como a matéria crassa e viscosa, que havia nutrir o suco pancreático, pela sua turgencia se achasse destituída de vigor, por falta de apetite famélico, degenerou em líquidos; estes, pela sua virtude acre e modaz, vilificando e pungindo as túnicas e membranas do ventrículo, exaltaram os sais fixos e voláteis por virtude do ácido alcalino. ..
D. Lancerote — Eu não lhe entendi palavra.
D. Tibúrcio — Eu morro sem saber de quê.
Semicupio — Conhecida a queixa, votem o remédio, que eu, como mais antigo, votarei em último lugar.
D. Gil — Eu sou de parecer que o sangrem.
D. Fuas — E eu que o purguem.
Semicupio — Senhores meus, a grande queixa, grande remédio; o mais eficaz é que tome umas bichas nas meninas dos olhos, para que o humor faça retrocesso de baixo para cima.
D. Tibúrcio — Como é isso de bichas nas meninas dos olhos? y
Semicupio — é um remédio tópico; não se assuste, que não é nada.
D. Tibúrcio —- Vossa mercê quer-me cegar?
D. Lancerote — Calai-vos, sobrinho, que êle médico é, e bem o entende.
D. Tibúrcio — Por vida de D. Tibúrcio, que primeiro há de levar o diabo o médico e a receita, do que eu tal consinta.
Semicúpio — Deite-se, deite-se: o homem está maníaco e furioso.
(Guerras do Alecrim e da Manjerona, cena V, da 2.a parte).
Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte: Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.
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