CIÊNCIAS FÍSICAS E SUAS APLICAÇÕES – A Civilização árabe

Gustave Le Bon

A Civilização árabe (1884) – volume V

Capítulo V

CIÊNCIAS FÍSICAS E SUAS APLICAÇÕES

I

FÍSICA E MECÂNICA

Física. As principais obras desta ciência produzidas pelos árabes perderam-se, restando-nos apenas os títulos das mais importantes, como por exemplo a de Hassan-ben-Haizam sobre a visão direta, refletida e refratada e sobre os espelhos ustórios. Apesar dessa desgraça, pode-se avaliar a importância de seus trabalhos pelo escasso número dos que chegaram, até nós. Um dos livros mais notáveis é o tratado de ótica de Al-Hassam, que foi traduzido para o latim e o italiano e serviu muito a Kepler para a sua obra sobre ótica. A do árabe contém capítulos importantíssimos sobre o foco dos espelhos, o lugar aparente das imagens nos espelhos, a re-fração, tamanho aparente dos objetos, etc. Também se encontra nela a solução geométrica do problema seguinte, cuja análise dependeria de uma equação de quarto grau: "Achar o ponto de reflexão num espelho esférico, dada a situação do objeto e a do olho". Chasles, que é um juiz muito competente, considera esta obra "a que foi origem dos nossos conhecimentos de ótica".

Mecânica. Possuíam os árabes, sobretudo no conceito prático, extensos conhecimentos de mecânica; o pequeno

número de seus aparelhos, que chegaram, até nós, e a descrição que de outros nos deixaram antigos autores, dão uma alta idéia de sua habilidade.

O doutor E. Bernard, de Oxford, sustentou que os árabes descobriram a aplicação do pêndulo aos relógios — embora as razões alegadas não pareçam bastante decisivas para que lhes seja atribuída tão capital invenção. Na verdade, é muito provável que o relógio enviado por Harun-al-Raschid a Carlos Magno, e que dava horas fazendo cair bolas de bronze sobre um disco metálico, fosse apenas um relógio de água.

Todavia, é certo que os árabes possuiram relógios movidos por um peso, muito diferentes da clepsidra, segundo provam as descrições de muitos autores, especialmente a de Benjamim de Tudela que visitou a Palestina no século XII, do famoso relógio da mesquita de Damasco. O que vamos copiar é do árabe Djubair e foi tirado da tradução de Silvestre de Sacy.

"Quando se sai pela porta Djirum, vê-se à mão direita, na parede da galeria fronteira, uma espécie de sala redonda, em forma de grande abóbada, na qual existem dois discos de cobre, com portinholas, cujo número iguala as horas do dia, e dois pesos de cobre que do bico de dois milhafres, também de cobre, caem em duas taças perfuradas. Vê-se então como os dois milhafres estiram o pescoço para as taças com os dois pesos, e como os pesos caem nelas, o que se verifica de um modo tão maravilhoso que parece arte mágica. Os pesos ao cair produzem um ruído, e passando pelos orifícios das taças desaparecem no interior da parede.

"Então a portinha do disco fecha-se com uma pranchinha de cobre, e a coisa continua do mesmo modo até que, transcorridas todas as horas do dia, ficam fechadas todas as portinhas. Chegada a noite, funciona outro mecanismo. Na arcada que rodeia os dois discos de cobre, há doze círculos do mesmo metal, furados, em cada círculo um vidro e por trás de cada vidro uma lâmpada, que a água faz rodar por meio de um movimento proporcionado à divisão das horas. Ao terminar uma hora a luz da lamparina ilumina o vidro,

e os raios projetam-se no círculo de cobre; o mesmo acontece com o círculo seguinte, e com os demais até terminarem as horas da noite".

Fig. 235 e 236 — Cavaleiros árabes lançam o fogo grego, segundo um manuscrito da Biblioteca Nacional de Paris.

Fig. 235 e 236 — Cavaleiros árabes lançam o fogo grego, segundo um manuscrito da Biblioteca Nacional de Paris.

II

QUÍMICA

A química dos árabes andou misturada com a alquimia, como a sua astronomia com a astrologia, mistura de ciência positiva e de paradoxo que os não impediu de realizar descobertas de importância.

Insignificantes foram os conhecimentos químicos por eles encontrados nos livros gregos, mas os árabes descobriram logo os corpos mais importantes, como o álcool, o ácido sulfúrico, o ácido nítrico, este mesmo misturado com o ácido clorídrico {água régia), etc, que a Grécia não chegou a conhecer. Também descobriram as operações mais fundamentais da química, como a destilação. Os que afirmaram em certos livros ter Lavoisier criado a química, esquecem que nenhuma ciência, e muito menos esta, se criou jamais de uma só vez, e que há mil anos os árabes possuíam laboratórios de onde sairam descobertas sem as quais Lavoisier não teria realizado as suas.

Geber foi o mais antigo e conhecido químico árabe; vivia em fins do século VIII, e embora publicasse grande número

cie obras é difícil identificá-las todas, por terem existido outros compatriotas seus com o mesmo nome. Vários de seus livros foram traduzidos para o latim, e um dos mais notáveis, a Suma de Perfeição, passou para o idioma francês em 1672, o que prova quão duradoura foi sua influência na Europa.

Os trabalhos de Geber compõem uma espécie de enciclopédia científica, devendo seu conteúdo ser considerado como

Fig. 237 — Projéteis incendiários empregados pelos árabes no século XIII. Cavaleiro ■portador de uma lança inflamável. Como os seus servos, êle veste uma túnica de pano grosso semeada de pedaços de estopa:, que embebidos em óleo, se incendiavam para levar o pavor aos inimigos; segundo um minuscrito árabe conservado em S. Petersburgo.

Fig. 237 — Projéteis incendiários empregados pelos árabes no século XIII. Cavaleiro ■portador de uma lança inflamável. Como os seus servos, êle veste uma túnica de pano grosso semeada de pedaços de estopa:, que embebidos em óleo, se incendiavam para levar o pavor aos inimigos; segundo um minuscrito árabe conservado em S. Petersburgo.

o resumo da ciência química dos árabes na época do autor. Ali está a descrição de muitos compostos nunca mencionados antes dele, havendo alguns, como o ácido nítrico e a água régia, que possuem uma importância capital em química, pois sem eles esta ciência não poderia existir.

Também Geber parece ter conhecido a existência de certos gases, conforme se depreende do seguinte: "Quando dois gases se fixam nos corpos, perdem sua forma e natureza e deixam de ser o que foram; ao proceder-se à separação, eis o que acontece: ou os gases escapam sozinhos, ficando os corpos em que se tinham fixado, ou gases e corpos desapa-cerem ao mesmo tempo".

Acreditava êle, como todos os alquimistas, que os metais se compunham de substâncias desconhecidas, às quais caprichosamente chamava enxofre, mercúrio, arsénio, pois as propriedades dos ditos supostos elementos nada de comum tinham com as dos corpos de que tiravam esses nomes. Os alquimistas habituaram-se a repeti-lo com freqüência, e convém recordá-lo para evitar os equívocos de muitos autores, ao falar de alquimia.

Segundo os químicos árabes todos os metais se compunham dos mesmos elementos, e como os metais apenas dife-

Fig. 238 — Armas de fogo empregadas pelos árabes no século XIII. Artilheiro segurando um pequeno canhão, que aproxima de uma chama para inflamar a carga e disparar a bala. (Mesma fonte da gravura anterior.)

Fig. 238 — Armas de fogo empregadas pelos árabes no século XIII. Artilheiro segurando um pequeno canhão, que aproxima de uma chama para inflamar a carga e disparar a bala. (Mesma fonte da gravura anterior.)

riam. entre si pela proporção desses elementos, era evidente que isolando os elementos, e combinando-os depois de modo proporcionado e conveniente, se chegaria a produzir o metal que se quisesse, por exemplo o ouro. É sabido que a transmutação dos metais ocupou durante longos séculos os alquimistas, mas suas teorias, que seja dito de passagem se aproximavam muito das idéias modernas, levaram-nos a dedicar-se a experiências que sem elas talvez se não verificassem nunca. Realmente, se não foi descoberto o que se procurava, descobriu-se o que não se conheceria se não se houvesse estudado a transmutação durante tanto tempo.

A preparação de grande número de compostos cuja maioria era desconhecida antes de Geber, como o ácido nítrico, a água régia, a potassa, o sal amoníaco, o nitrato de prata, o sublimado corrosivo e o precipitado vermelho, acha-se indicada em suas obras, e bem assim a preparação, pela primeira vez anunciada, de operações tão fundamentais como a destilação, a sublimação, a cristalização, a solução, a copelação, etc.

Também devemos aos árabes a descoberta de outros corpos de uso quotidiano na química e na indústria, por exemplo o ácido sulfúrico e o álcool, os quais pela primeira vez se encontram descritos na obra de Arrasí, que morreu em 940. O ácido sulfúrico obtinha-se por destilação do sulfato de ferro, e o álcool pela de matérias feculentas ou açucaradas, em fermentação.

A maioria dos autores árabes que escreveram sobre as ciências ocuparam-se da química, porém as obras mais importantes, exceto as de Geber e de Arrasí estão perdidas, e o mérito das que conhecemos faz-nos lamentar a perda das que se extraviaram. A grandeza das descobertas dos químicos árabes só nos foi revelada pelo grande número de compostos antes deles desconhecidos, e que se acham citados nos tratados de medicina dos próprios árabes. Verdadeiramente eles, e mais ninguém, criaram a farmácia; e a respeito da química industrial podemos avaliar os seus conhecimentos pela sua perícia na arte da tinturaria, da mineração de metais, da fabricação do aço, da preparação dos couros, etc.

III

CIÊNCIAS APLICADAS — DESCOBERTAS

Conhecimentos industriais. — Embora se dedicassem às investigações teóricas, os árabes não descuidavam as aplicações à indústria, e desse modo seus conhecimentos científicos lograram dar a seus produtos industriais uma grande

superioridade. É verdade que não conhecemos seus processos, mas tão somente os resultados que produziam. Por exemplo, consta-nos que sabiam explorar as minas de enxofre, cobre, mercúrio, ferro e ouro; que praticavam com muita habilidade a tinturaria; que temperavam o aço com suma perfeição, do que aliás dão testemunho as antigas lâminas toledanas; que seus tecidos, armas, couros e papéis tinham uma reputação universal, e que em bastantes ramos da indústria ainda njío foram superados.

Entre as invenções devidas aos árabes há algumas de importância capital, como por exemplo a pólvora, sobre a qual

Fig. 239 — Fragmento de antigo estofo árabe (Ebers).

Fig. 239 — Fragmento de antigo estofo árabe (Ebers).

não queremos limitar-nos a dar uma simples indicação sem acrescentar alguns pormenores.

Pólvora e armas de fogo. — Desde a mais remota antiguidade os povos da Ásia fizeram uso de misturas incendiárias nas batalhas, mas esses recursos não penetraram na Europa até ao século VII da nossa era, e acredita-se que os introduziu um arquiteto sírio chamado Calinico. Serviram-se deles os gregos do baixo império para combater os árabes com êxito,

quando estes sitiaram Constantinopla, e Constantino Porfi rogeneto declarou segredo de Estado a sua preparação. Tal segredo, porém, não tardou a divulgar-se. De acordo com as investigações de Rinaud e Favé, compunha-se de uma mistura de enxofre e substâncias combustíveis, como breus de resina e ólios graxos, e sua preparação encontra-se descrita em muitos manuscritos antigos.

* Os árabes logo conheceram o segredo do fogo grego, ado-tando-o de um modo tão geral que se tornou, como nos dizem os autores que acabamos de citar, "o agente principal de seu sistema de ataque". Empregavam-no de mil maneiras e atiravam-no com grande número de instrumentos diferentes. Os escritos dos cruzados falam-nos do espanto que esses engenhos produziram entre eles. Joinville diz tratar-se da coisa mais horrenda que ainda vira, comparando-a a um dragão que voasse pelos ares. "Quando caía perto do rei — acrescenta, — São Luís atirava-se ao chão, erguia as mãos para o céu e desfeito em lágrimas clamava: "Senhor Deus, livrai-nos disso a mim e a toda a minha gente!" Esse terror tinha algo de quimérico, pois se o fogo grego era muito perigoso no mar utilizado contra os navios, pouco dano causava em terra, nenhuma das crônicas que falam dos terríveis efeitos desse composto mencionando que causasse a morte de alguém. São Luís e muitos cavaleiros seus se viram atingidos por êle sem sofrerem dano algum. Embora o fogo grego queimasse, carecia inteiramente de força de projeção, sendo apenas um corpo combustível sem nenhuma das propriedades explosivas da pólvora. Eles atiravam-no, mas não o usavam para disparar projéteis.

Durante muito tempo atribuiu-se a invenção da pólvora a Rogério Bacon, que na realidade outra coisa não fêz senão reproduzir, como Alberto o Grande, certas antigas receitas, especialmente a consignada por Marcus Graccus num manuscrito de 1230 com o título Liber ignium ad comburandos hostes. Muitas dessas receitas propõem uma composição semelhante à da pólvora, aliás só usada em foguetes incendiários,

e é evidente que elas procedem dos árabes, assim como todas as de química que se conheceram na Idade Média. Por outro lado os árabes fizeram uso das armas de fogo numa época muito anterior aos cristãos, conforme vamos demonstrar.

As investigações de Reinaud e Faré, precedidas já pelas de Casiri e Viardot, provaram claramente que a invenção da pólvora como substância explosiva destinada a atirar projéteis, se deve apenas aos árabes. Os dois primeiros autoreá tinham adotado, num primeiro trabalho especial, a opinião tão divulgada de que o invento procedia dos chineses. Porém,.

numa segunda memória publicada em 1850 desfizeram essa crença, dado que a descoberta de novos manuscritos os fêz conhecer que aquele invento, que alterou todo o sistema de guerra, pertence aos árabes. "Os chineses — dizem eles, — descobriram o salitre e seu emprego nos fogos de artifício,.

Fig. 240 — Fragmento de antigo estôjo árabe.

Fig. 240 — Fragmento de antigo estôjo árabe.

ao passo que os árabes souberam produzir e utilizar a força projetiva que resulta da pólvora, ou, para tudo dizer, inventaram as armas de fogo".

Afirmam habitualmente os historiadores que a artilharia funcionou pela primeira vez na batalha de Crecy, em 1346, mas diversas passagens de autores árabes provam que ela já era empregada em épocas muito anteriores. Entre os extratos de diferentes manuscritos, traduzidos por Conde, encontra-se especialmente uma passagem dizendo que certo emir Djakub, sitiando em 1205 um chefe de revoltosos na cidade africana de Mahedra, "atacou as muralhas com diferentes máquinas, engenhos e trovões… Tratava-se de engenhos nunca vistos… disparando cada qual cem enormes tiros, e grandes pedras caíam no meio da cidade, junto com disparos de bolas de ferro".

A passagem seguinte da história dos berberes de Ibn Khaldun não é menos explícita, indicando claramente o emprego do canhão para os cercos.

"Abu Iussuf, sultão de Marrocos, pôs cerco a Sidjilmessa no ano da hégira 672 (1273 da nossa era); instalou contra ela máquinas de assédio como medjanik (espécie de catapultas da Idade Média), arraãas e hendam de nafta, que atiram cascalho de ferro, disparando da câmara do hendam fogo aceso com pólvora por efeito assombroso, e cujos resultados devem ser atribuídos ao poder do Criador. Certo dia uma parte da muralha da cidade caiu, atingida pela pedra disparada por um medjanik; e então deu-se o assalto’.

A leitura dos manuscritos do tempo demonstra que o uso das armas de fogo se generalizou rapidamente entre os árabes, os quais fizeram muito uso delas em 1342 para defender Alge-ciras, sitiada por Afonso XI.

"Os mouros da cidade — diz a crônica desse rei, — atiravam muitos trovões contra o exército, sobre o qual disparavam bolas do tamanho de maçãs grandes, lançando-as tão longe da cidade que algumas passavam por cima do exército e outra caíam no meio deste".

Dois condes ingleses que assistiam ao cerco, o de Derby e o de Salisbury, vendo o efeito da pólvora levaram essa descoberta ao seu país, razão pela qual os ingleses fizeram uso dela na batalha de Crecy.

fragmento de um antigo estofo árabe, segundo desenho de Prisse d'Avesnes.

Fig. 242

fragmento de um antigo estofo árabe, segundo desenho de Prisse d’Avesnes.

Também se conhece por manuscritos árabes a composição da pólvora que estes usavam em suas armas de tiro; vamos transcrever duas passagens interessantes de um manuscrito de fins do século XIII, traduzido por Reinaud.

Descrição da droga que deve ser introduzida no madfaa, com sua proporção. — Barud (salitre), dez; carvão, duas dracmas; enxofre, uma drcma e meia; reduzir isto a pó fino e encher uma terça parte do madfaa; não pôr mais, porque o madfaa rebentaria. Para se servir dela mandar o torneiro lavrar um madfaa de madeira cujo tamanho esteja em proporção com a boca; introduzir nele a droga com força, acrescentando o bundung (bala) ou uma flecha, e pegando fogo ao sebo. A medida do madfaa deve estar em relação com o ouvido, pois se este fosse mais profundo do que a boca, seria um defeito".

Fabricação de papel. — Os europeus da Idade Média durante muito tempo apenas escreveram em pergaminhos, cujo alto preço constituía um obstáculo à multiplicação das obras escritas. Além disso eles logo se tornaram tão escassos que os frades adotaram o costume de raspar as obras dos grandes escritores da Grécia e de Roma para escrever suas próprias homílias. Se não fossem os árabes ter-se-ia perdido a maior parte daquelas maravilhas da antiguidade, embora ordinariamente nos digam que elas foram guardadas com o maior cuidado no fundo dos claustros.

Encontrar uma substância capaz de substituir o pergaminho, e análoga ao papiro do Egito, equivalia a prestar um grande serviço ao mundo, divulgando mais facilmente os conhecimentos.

A descoberta feita por Casiri, na biblioteca do Escoriai, de um manuscrito árabe em papel de algodão, pertencente ao ano 1009 e anterior aos existentes nas demais bibliotecas da Europa, prova que os árabes foram os primeiros a substituir o pergaminho pelo papel.

Além disso, a parte histórica dessa descoberta é hoje fácil de reconstituir. Desde tempos imemoriais os chineses sabiam fabricar papel com casulos de seda, indústria que foi introduzida em Samarcanda desde os primeiros tempos da hégira, e quando os árabes se apoderaram dessa cidade encontraram nela uma fábrica daquele papel. Todavia, esse invento não

podia ser levado para a Europa onde a seda era quase desconhecida, a não ser que se trocasse a seda por outro material. Foi isto que conseguiram os árabes, empregando o algodão, provando o exame de seus antigos manuscritos que eles não tardaram a fabricar esse papel com uma perfeição até agora não superada.

Parece também igualmente demonstrado que os árabes inventaram o papel de trapos, de fabricação dificílima por exigir complicadas manipulações. Baseia-se esta opinião em que o uso de semelhante papel é muito anterior entre os árabes ao seu uso entre os povos cristãos. O mais antigo manus-

Fig. 242 — Fragmento de antigo estojo árabe, segundo desenho de Prisse d'Avesne.

Fig. 242 — Fragmento de antigo estojo árabe, segundo desenho de Prisse d’Avesne.

crito de papel que existe na Europa é uma carta de Joinville a São Luís, escrita pouco antes da morte deste príncipe, que faleceu em 1270, ou seja em época posterior à sua primeira cruzada no Egito, ao passo que possuímos manuscritos árabes em papel desse gênero anteriores de um século ao do-

cumento citado. Tal é, por exemplo, um tratado de paz entre Afonso II de Aragão e Afonso IV de Castela, datado de 1178 e conservado nos arquivos de Barcelona, o qual procedia da famosa fábrica árabe de papel existente em Kativa e elogiada pelo geógrafo Alidrisi, que escrevia na primeira metade do século XII.

A propagação que no tempo dos árabes tiveram na Espanha as bibliotecas públicas e particulares, quando no resto da Europa eram quase desconhecidas, obrigaram-nos a aumentar as fábricas de papel. Os árabes chegaram a empregar nessa indústria, com grande perfeição, o cânhamo e o linho que então abundavam muito nas campinas.

Aplicação da bússula à navegação. — Os chineses inventaram a bússula, porém até agora não existe prova alguma de que a tivessem aplicado à arte de navegar. É verdade que os chineses, pobres navegantes de cabotagem, não tinham grande necessidade dela para as suas curtas viagens.

Os árabes foram, pelo contrário, grandes navegadores, e como estavam em freqüentes relações com a China numa época em que a Europa mal ouvira falar dessa vasta região, é provável que fossem os primeiros a aplicar a bússula à navegação. Isto porém não passa de uma hipótese, de modo que à falta de provas não insistirei nela.

O que certamente deixou de ser uma hipótese é que os europeus ficaram devendo aos árabes o conhecimento deste invento capital. Com efeito, sendo eles que estavam em comunicação com os chineses, somente eles podiam dá-lo a conhecer ao Ocidente. Não obstante os europeus ainda levaram muito tempo a compreender sua importância, pois não a utilizaram antes do século XIII, apesar de Alidrisi, que escrevia em meados do século XII, falar da bússula como de coisa usada por todos os navegantes árabes.

O que aí fica dito prova que o acervo das descobertas árabes nas ciências físicas não é menos importante que o das matemáticas e da astronomia, e a enumeração seguinte é uma prova da sua relevância:

Conhecimentos elevados em física teórica, sobretudo em ótica, e criação de aparelhos mecânicos altamente engenhosos; descobertas dos corpos fundamentais da química, como álcool, o ácido nítrico, o ácido sulfúrico e as operações químicas mais essenciais, por exemplo a destilação; aplicação da química à farmácia e à indústria, particularmente à extração de metais,, à fabricação do aço, à tinturaria, etc; descoberta da pólvora e das armas de fogo; fabricação do papel de trapos e provável aplicação da bússula à arte de navegar.

Fig. 243 — Antiga sela árabe (Museu Real de Madrid); segundo uma fotografia de Laurent.

Fig. 243 — Antiga sela árabe (Museu Real de Madrid); segundo uma fotografia de Laurent.

 

Tradução de Augusto Souza. Fonte: Paraná Cultural ltda

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