Cônego Fernandes Pinheiro (1825 – 1876)
CURSO DE LITERATURA NACIONAL
LIÇÃO XXIV
DIÁLOGOS
Corte na Aldeia. — No espólio literário de Francisco Rodrigues Lobo encontra-se esta obra do mais incontestável mérito, escrita à imitação do II Cortegiano de Baltasar Castiglione. Nenhum livro é mais idôneo para caracterizar o tempo em que vivera o autor; e ainda pelas suas santas máximas e preciosos ditames com proveito será em nossos dias consultado. A Corte na Aldeia, diz Costa e Silva, "prescindindo de todos os outros méritos, entre os quais avulta não pouco o ser o primeiro livro em prosa clássica que se escreveu em nossa terra, é uma das leituras mais amenas e recreadoras que eu conheço."1
Para que possa o leitor bem compreender o título e assunto desta obra, transcreveremos o começo do primeiro diálogo:
Perto da cidade principal da Lusitânia está uma graciosa aldeia, que com igual distância fica situada à vista do mar Oceano, fresca no verão, com muitos favores da natureza, e rica no estio e inverno com os frutos e comodidades que ajudam a passar a vida saborosamente: porque com a vizinhança dos portos do mar por uma parte, e da outra com a comunicação de uma ribeira que enche os seus vales, e outeiros de arvoredos e verdura tem em todos os tempos do ano que em diferentes lugares costuma buscar a necessidade dos homens; e por este respeito foi sempre o sítio escolhido para desvio da corte e voluntário desterro do tráfego dela; dos cortesãos que ali tinham quintas, amigos, ou heranças que costumam ser valhacoutos dos excessivos gastos da cidade. Um inverno em que a aldeia estava feita corte com homens de tanto preço que a podiam fazer em qualquer parte, se juntava a maior parte deles em casa de um antigo morador daquele lugar que também o fora em outra idade da Casa dos Reis, donde com a mudança e experiência dos anos fez eleição dos montes para passar neles os que lhe ficavam da vida, grande acerto de quem colhe esse fruto maduro entre desenganos. Ali ora em conversação aprazível, ora em moderado e quieto jogo, se passava o tempo, se gozavam as noites, se sentiam menos as importunas chuvas e ventos de novembro, e se amparavam contra os frios rigorosos de janeiro. Entre outros homens, que naquela companhia se achavam, eram nela mais costumados em anoitecendo um letrado, que ali tinha um casal, e que já tivera honra dos cargos do governo da justiça na cidade, homem prudente, concertado na vida, douto na sua profissão, e lido nas histórias da humanidade. Um fidalgo mancebo, inclinado aos exercícios da caça e muito afeiçoado às cousas da pátria, em cujas histórias estava bem visto. Um estudante de bom engenho que entre os seus estudos se empregava algumas vezes nos da poesia. Um velho não muito rico, que tinha servido a um dos grandes da Corte, com cujo galardão se reparava naquele lugar, homem de boa criação, e além de bem entendido, notavelmente engraçado no que dizia, e muito natural de uma murmuração que ficasse entre o couro e a carne, sem dor ferida penetrante. Ao senhor da casa chamavam Leonardo, ao doutor, Lívio, ao fidalgo, D. Júlio, ao estudante, Píndaro, e ao velho, Solino. Fora estes havia outros, de quem em seus lugares se fará menção, que assim como os mais não eram para enjeitar em uma conversação de poucas porfias.
1 Ensaio Biogr. critico, T. V, Liv. VII, Cap. I.
Vê-se pois que é a Corte na Aldeia uma obra filosófica, como as Toscullanias de Cícero, versando sobre todos os assuntos que podem entrar em uma conversação entre pessoas de boa sociedade. Apresentemos alguns exemplos que serão outros tantos modelos da pureza de dicção. Praticando-se uma noite acerca das vantagens ou imperfeições de vários idiomas falados pelos povos cultos, põe o autor na boca de um dos seus personagens este belíssimo e verídico elogio da língua portuguesa:
Uma cousa vos confessarei eu, senhor Leonardo (disse a isto D. Júlio), que os portugueses são homens de ruim língua, e também o mostram em dizerem mal da sua, que assim na suavidade da pronun-ciação, como na gravidade e composição das palavras, é língua excelente. Mas há alguns néscios, que não basta que falem mal, senão que se querem mostrar discretos, dizendo mal dela, e o que me vinga da sua ignorância é que eles acreditam a sua opinião, e os que falam bem desacreditam a ela e a eles. Bravamente é apaixonado o sr. D. Júlio (acudiu o doutor) pelas cousas da nossa pátria, e tem razão, que é dívida que os nobres devem pagar com maior pontualidade à terra que os criou. E verdadeiramente que não tenho a nossa língua por grosseira, nem por bons os argumentos com que alguns querem provar que é essa; antes é branda para deleitar, grave para engrandecer, eficazpara mover, doce para pronunciar, breve para resolver, e acomodada às matérias mais importantes da prática e escritura. Para falar é engraçada com um modo senhoril. Para cantar é suave com um certo sentimento que favorece à música. Para pregar é substanciosa com uma gravidade que autoriza as razões e as sentenças. Para escrever cartas nem tem infinita cópia que dane, nem brevidade estéril que a limite. Para histórias nem é tão florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor das alheias. A pronunciação não obriga a ferir o céu da boca com aspereza, nem arrancar as palavras com veemência do gargalo. Escreve-se da maneira que se lê e assim se fala. Tem de todas as línguas o melhor: a pronunciação da latina, a origem da grega, a familiaridade da castelhana, a brandura da francesa é a elegância da italiana. Tem mais adagios e sentenças que todas as vulgares, em fé da sua antiguidade. E se a língua hebréia pela honestidade das palavras chamarão santa, certo que não sei outra que tanto seja de palavras claras em matéria descomposta, quanto a nossa. E para que diga tudo só um mal tem, e é que pelo pouco que lhe querem os seus naturais a trazem mais recomendada que capa de pedinte.
Acabamos de apreciar os conhecimentos filológicos de Rodrigues Lobo; vejamos agora o moralista, invectivando a cobiça e o funesto emprego do ouro:
Se as coisas são pelos efeitos conhecidas, e elas testemunham a excelência, ou maldade delas, qual o foi de maiores males e danos na redondeza e meteu aos homens em mais perigosos trabalhos que o ouro, a quem com muita razão podiam todos chamar peste do mundo: e posto que os notáveis exemplos das destruições e ruínas, que nele fez, podiam tomar mais tempo do que agora tenho para tratar dele, quero começar primeiro de seu nascimento, para que mostrem os seus arriscados principios e desastrados sucessos para que a malícia humana o descobriu. E não desprezando o que diz Plínio tão doutamente, que não contentes os homens com que a superfície da terra produzia para a sua recreação e mantimento, a formosura das árvores, a diversidade dos frutos, a beleza e cheiro das flores, a verdura das ervas, o esmalte das boninas, a abundância dos legumes, quiseram desentranhar do centro dela os segredos que a benigna natureza nos escondia. Nasceu o ouro nas entranhas dos montes e nas artérias ocultas dos penedos, e subindo como a árvore da profunda raiz, donde começa, vai espalhando os ramos em desigual medida, convertendo o sol com seus poderes aquela matéria disposta e propínqua até que chega a ser ouro, e se demonstra por duvidosos sinais na face da terra que logo daquela emprenhidão se mostra triste dando por indícios da riqueza que encerra erva descorada, delgada, sutil e sequinhosa, areia e barro leve, seco e sem proveito, e até as águas que por entre as veias descem saem cruas e com sabor pesado. Espreitando estes sinais a indústria humana entra fazendo guerra ao profundo, caminhando por debaixo dos montes, sustentados em colunas da mesma terra, deixando a vista do sol e das estrelas, pondo as vidas ao risco de ruinosas máquinas que mil vezes os oprimem, que tanto a nossa sede fez cruel a benigna terra, que parece menor temeridade tirar do fundo do mar pérolas e aljôfar que do seu seio o inimigo ouro, que ainda então o não é mais que nas esperanças. Depois de tirado com tão custosas diligências, saida com parto de venenosa víbora rompendo as maternas entranhas, com o fogo se aparta, apura, e aperfeiçoa, ficando menos apto para o serviço dos homens na cultivação dos campos e arvoredos, e mais aparelhado para a sua destruição e ruína; por que ou se lavra para ostentações e demasias da vaidade, ou se bate e cunha em moeda, cujo preço tiraniza os poderes e graças da natureza. Tirou o ouro a vai:a à todas elas e fez em si estanque de todos os co mércios do mundo, no qual antes que ele aparecesse se trocavam as coisas umas por outras, com uma composição e trato mais conforme, e obrigado a necessidade e cômodos da vida, que aos roubos da cobiça, maldades da avareza e sobejidões da vaidade: e apoderou-se tanto de tudo que na terra havia que veio a ser preço até da liberdade dos homens contra o direito natural em que viviam. Foram crescendo os seus atrevimentos, e se antes de sair da terra começou a matar homens, saindo dela se levantou contra o céu, fazendo guerra de rosto a rosto a todas as virtudes: tirou logo a vara das mãos à justiça e deitado em sua balança perverteu o fiel da sua igualdade.
Pode igualmente considerar-se a Corte na Aldeia como excelente código de civilidade e de bom gosto, bem que não devam atualmente seguirem-se à risca todas as suas recomendações. Operam os séculos grandes mudanças nas idéias e hábitos dos homens, e por certo que as crenças e as usanças do décimo sétimo século não nos quadram em sua generalidade.
Grande número de historietas, anedotas e graciosos ditos servem de condimento às máximas e conselhos que com liberalidade nos dá o autor. Querendo v. g. condenar o abuso das locuções latinas e das palavras alambicadas assim se exprime:
E certo que tenho raiva sabendo que a língua portuguesa não é manca nem aleijada ver que a façam andar com muletas latinas os que a haviam de tratar melhor. Há outros (prosseguiu Leonardo) que nem com isso se contentam, e andam buscando palavras muito esquisitas que por termos mui escuros significam o que querem dizer. Como um que se queixava da sua dama que de ciosa andava inquirindo os escrutínios do seu pensamento. E outro a um barbeiro disse que lhe rubricara a parede com a sangria. Alguns (disse o doutor) conheci eu culpados nesse impertinente modo de falar que por tais eram reprovados; porém o uso das palavras invocadas não achei ainda entre portugueses como nos espanhóis e italianos. Nem tenho por grande vicio aproveitar de algumas antigas, muito bem usadas em outro tempo, e desterradas sem razão em nossa idade. Não faltam (respondeu Leonardo) curiosos que por acharem pobre a língua, ou por eles o estarem de seus vocábulos, trazem alguns a seu modo: como um letrado que querendo autorizar umas casas por certa ocasião, disse: É necessário que as paredes deste domicílio sejam alveadas e que o fato usível fique retendo nas últimas dele. E outro disse de um navegante que fora felice se não fortuneara tanto no êxito da viagem.
Cremos haver exuberantemente provado que fora Francisco Rodrigues Lobo tão grande poeta bucólico como exímio prosador. Infelizmente porém naufragou seu estro no poema histórico, deixando por isso de analisarmos o seu Condestabre, que na opinião de um ilustrado crítico 1 "é um poema pobre de maravilhoso, sem fábula bem construída, carregado de incidentes triviais e particularidades ociosas, e cujo tom habitual raras vezes passa das raias do familiar."
1 J. M. da Costa e Silva no seu Ensaio Biogr. crítico, T. V. Liv. VIII, Capitulo IX
Fonte: editora Cátedra – MEC – 1978
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