Oliveira Lima
D. PEDRO E D. MIGUEL *
XLII /O DUQUE DE BRAGANÇA/em>
Dom Pedro, mesmo quando nova e simplesmente Duque de Bragança, alimentou sempre uma íntima esperança de que o destino o não deixaria numa posição secundária, sem autoridade direta e efetiva. Só assim se pode explicar que não acedesse às propostas de Luís Filipe, rei dos franceses, de instalar Dona Maria da Glória como Rainha em Lisboa, se lhe fosse confiada sua guarda, por acinte à Inglaterra mais do que para lhe incutir sentimentos liberais, e para no futuro dar-lhe por marido um dos seus cinco filhos. Era o mesmo projeto que depois nutriam com relação a Isabel de Espanha e de que Guizot quis ser o executor, só conseguindo porém estabelecer o Duque de Montpcnsicr como consorte da Infanta, irmã da soberana, e portanto como herdeiro presuntivo da Coroa com a segurança da esterilidade do matrimônio real.
Assim ficou Dom Pedro, otimista e arrebatado, até o fim dos seus dias que foram breves. O Coronel Hodges,** que tomou parte na expedição liberal de 1832, de Belle Isle para os Açores, c que se ocupou muito do recrutamento de soldados e marujos ingleses para aumento das forças constitucionais que eram muito minguadas, desde a primeira entrevista que teve com o Imperador queixou-se da sua grosseria posta em destaque por verdadeiras garotadas e apenas mitigada por momentos de emoção em que o abandono familiar buscava humanizar a majestade soberana. Descreve-o Hodges, experimentando um dia, a sua coroa imperial na cabeça de Sir Charles Stuart e escarnecendo dele com muito mau gosto, porque esse emblema não se ajustava à sua fronte; ou então divertindo-se às custas da cabeça dura de um dos seus generais, que se achava no convés da Rainha de Portugal e sobre quem caiu de um mastro um dos guardas-marinha ingleses de bordo, ficando o português tão-sòmente entontecido; ou ainda interrogando os recrutas britânicos, muito desiludido das suas aptidões militares, pois que um fora jardineiro, o outro moço de herdade e assim por diante, perguntando ao Almirante Sartorius se se podia transformar em bons soldados essa vara de porcos (sic.) Ao que parece, o almirante respondeu-lhe de modo a não dar ao seu imperial interlocutor vontade de renovar a observação.
* Capítulo XLII do livro D. Pedro e D. Miguel (A Querela da Sucessão — 1826-1828), publicado pela Comp. Melhoramentos de São Paulo (Weiszflog Irmãos incorporada), São Paulo — Caieiras — Rio, 1925.
*• Narrative of the Expedition to Portugal in 1832 under the Orders of H. I. M. Dom Pedro, Duk of Bra-ganza, by G. Lloyd Hodges Esq… London, 1832.
Havia em Dom Pedro um fundo de má educação de que êle nunca conseguiu desembaraçar-se c que se converteu mesmo numa segunda natureza, de forma a pôr na penumbra a verdadeira, à qual não faltava, quer nobreza quer simpatia humana. Para com os amigos nutria um afeto muito indulgente e para com os dependentes testemunhava uma bondade à qual fora de desejar que juntasse menos sem-cerimônia. As maneiras, ora bruscas, ora familiares de Napoleão devem também ter exercido certa sugestão sobre esse soberano romanesco, inclinado às fantasias liberais e às glórias militares.
Quando Hodges o descreve chegando a bordo com o capote cinzento e o barrete de peles e atravessando o tombadilho com a cara fechada c os lábios mudos, ou, alguns dias depois, mandando chamar o coronel inglês ao camarote c, num momento de efusão, mostran-do-lhe as miniaturas da Imperatriz e da Rainha, pensa-se instintivamente no petit caporal nos seus dias de mau humor, ou então transbordante de ternura à lembrança de Maria Luísa c do Rei de Roma.
A gente que o rodeava era aliás a primeira a suscitar-lhe contínuos aborrecimentos. A intriga reinava no Rio de Janeiro entre os aspirantes ao poder, e igualmente reinava entre os emigrados portugueses que Dom Pedro veio a encontrar c conhecer em França. Para começar, os chefes máximos, Palmella e Saldanha, detestan-do-se cordialmente, só buscavam excluir-se reciprocamente da confiança imperial. Dom Pedro, que não gostava nem dum nem doutro, tentou reconciliá-los em benefício da causa política que em espírito os unia e conseguiu convocá-los no hotel onde a Corte tomara cômodos, na rue de Courcelle, para se operar o acordo sob a bênção do General Lafayette, pontífice c ídolo dos liberais.
Palmella e Saldanha andavam contudo tão encendidos que, em presença do Imperador e do glorioso veterano da independência americana e da Revolução Francesa, se invectivaram e saíram da entrevista mais inimigos do que nunca. O Coronel Hodges formava de ambos o mais alto conceito, se bem que não julgasse Saldanha isento de defeitos e, pelo contrário, reputasse Palmella um profundo estadista, cuja única falta, na opinião de Talleyrand, era pertencer a um país pequeno, circunstância que não permitia à sua personalidade adquirir toda a influência a que tinha o direito de aspirar.
Dom Pedro pouco os conhecia de trato direto quando chegou à Europa e a atmosfera da Corte do Duque de Bragança continuou a ser brasileira. Assim pelo menos o parecia quando, por uma ironia da sorte, no Brasil tachavam a Corte Imperial de portuguesa. No exílio a sua roda não o era seguramente pelo menos tendenciosamente. Resende, português de nascimento, filho segundo da nobre casa de Penalva, tinha adquirido o espírito brasileiro, assim como Rocha Pinto, que lhe era em tudo muito inferior. Cândido Xavier, secretário militar do regente cm que se convertera Dom Pedro, não passava de uma criatura de Rezende. Matreiro e enredador, era inimigo figadal de Palmella, procurando por todos os meios que Dom Pedro o afastasse de si. Agostinho José Freire, político disfarçado em militar, era para Hodges — o Saint Simon daquela corte — um retórico ambicioso e invejoso. O próprio confessor, Padre Marcos, bonacheirão e ardiloso, ocupava-se de assuntos temporais de preferência aos espirituais suprindo a inteligência pela bajulação.
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Dom Pedro tinha muitos mais pontos de contato com Bolívar do que com Napoleão. Ambos os Libertadores pareciam-se muito no temperamento e no caráter, sendo mister não esquecer que se Dom Pedro era príncipe da casa reinante, Bolívar era um aristocrata de velha linhagem. Um e outro possuíam num alto grau a energia física, antes nervosa do que muscular, o que os tornava resistentes tanto à fadiga como ao sofrimento e os predispunha às empresas aventurosas. Morreram moços, Dom Pedro com 36 anos, Bolívar com 47 cansados e esgotados. Dotados de uma natureza franca e aberta, tinham aprendido a dissimular pelas necessidades do ofício, mas faltava-lhes segurança de juízo político, posto que tivessem alimentado ideais generosas e realizado belos feitos, Bolívar sobretudo, que era instruído, educação igual havendo faltado por completo ao imperador, cujos conhecimentos provinham da convivência com os homens antes do que do comércio com os livros, ao passo que os de Bolívar descansavam sobre um fundo literário de bastante solidez.
Gozadores ambos, sorveram avidamente a taça dos prazeres, resgatando entretanto pelas suas inclinações artísticas o seu materialismo sensual. Dom Pedro era apaixonado pela música e compunha com talento que lhe escasseava no versejar; Bolívar esmerava-se em lances oratórios de reminiscências clássicas, e era perdido pela dança, que também era um passatempo favorito de Dom Pedro.
Impulsivos, facilmente coléricos, cheios de desdém para com seus iguais, não se preocupando com pouparem as justas susceptibilidades dos seus amigos, eram ocasionalmente excedidos por poucos nos rasgos afetivos, mas era pelos humildes que no geral batiam seus corações. Bolívar conhecia o mundo muito melhor do que Dom Pedro, tendo extensamente viajado na Europa no tempo da sua prosperidade e copiosamente aprendido no tempo da sua adversidade. Bolívar tinha uma prodigalidade que Dom Pedro não possuía — a do dinheiro, mas num e noutro se encontrava simplicidade, não afetando refinamentos. Pode mesmo dizer-se que a compostura constituía para ambos uma atitude forçada, conquanto não fossem destituídos de distinção por vezes comprometida por estouvamentos e até por garotices.
Hodges menciona entre os predicados do Duque de Bragança dando-lhe como defeito principal a vaidade. Dir-se-ia o retrato de Bolívar, a quem contudo se deve em eqüidade tributar que exibia um senso espontâneo e elevado de justiça, o odio da oppressão, o liberalismo dos sentimentos, a benevolência básica, uma competência no manejo das idéias, no ousadia das concepções e na arquitetura dos planos, que por vezes tocavam às raias do gênio. A personalidade de Bolivar era certamente mais completa e mais poderosa e também mais apurada, mas convém notar que a Dom Pedro cabe maior mérito por se adaptar a circunstâncias que tinham por efeito minguar seus poderes e por se entusiasmar por princípios constitucionais destoantes das suas tradições, do que cabe a Bolívar por se embriagar de liberdade c se obstinar em emancipar todo um mundo colonial.
O Imperador podia na prática faltar aos compromissos políticos que livremente contraía, mas tão convencido estava do seu liberalismo que na Ilha de São Miguel, antes da partida da expedição que foi desembarcar na Praia do Mindello, recusou associar-se ao brinde levantado pelo Almirante Sartorius ao despotismo das mulheres, sob pretexto de que odiava todos os despotismos. As más línguas pretendem que seu amuo proveito de haver enxergado no tolo brinde do oficial britânico, que seus atos de intemperança suficientemente explicam, uma alusão, descabida e grosseira à influência que constava exercer, sobre a vontade do Duque de Bragança, a jovem c formosa Imperatriz Dona Amélia.
Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.
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