<a name="bookmark0" title="Descrição de um aguaceiro numa fazendaDescrição de um aguaceiro numa fazenda
Pelo céu, que o crepúsculo empalidecia, nuvens amontoavam- se densas, plúmbeas, como a fumaça enovelada dum incêndio.
Aves vinham dos matos procurando a casa, pintainhos tenros, galinholas, perus tufados, a cauda aberta, grugrurejando. De longe vinha o chiar dos carros da colheita e as vozes alegres dos carreiros. Negros desciam cantando e passavam saudando em nome de Cristo com o chapéu muito alto ou esticando o braço, a mão aberta, pedindo a bênção: uns pelos caminhos baixos da planície e outros pelos carreiros da colina, em rumo da mata. Lufadas de vento passavam pelo terreiro revolvendo as fôlhas sêcas, levantando colunas de poeira espiraladas. As árvores desgrenhavam-se com a rufiada violenta; e o céu escurecia ficando como uma ardósia.
Uma rajada tempestuosa estortegou o arvoredo numa convulsão de cataclismo prostando a mata. O céu fulgurou num esplendor de explosão e um estrépito retalhou os ares taciturnos como ao rebentar de uma granada.
Grossas gotas de chuva bateram na terra com fôrça, levantando poeira. Os arbustos do jardim estorciam-se perdendo fôlhas que voavam levadas em turbilhão pela ventania. Para longe uma névoa espêssa encobria os montes; espectros de árvores iam esmaecendo e desapareciam.
Clarões alumiavam o espaço turbado e sinistro, coriscos ziguezagueavam pelos nimbos como num papel queimado as derradeiras faulhas que serpentinam rápidas e acorrem. Bateram janelas, violentamente impelidas; caiu uma grande sombra e o aguaceiro jorrou como num dilúvio, grosso, cerrado, escachoante.
Em pouco, pela colina escorriam vastos lençóis d’água’ barrenta vermelha, como o sangue vivo da terra escoando da ferida aberta pelo dardo fulminante.
Pelos caminhos precipitavam-se corredeiras, cavando brocas, abrindo barreiras, derrubando cercados; formavam-se cachoeiras em tôdas as alturas; águas copiosas rolavam com estridor pelos flancos dos morros lavando a terra, desalterando-a [I]), fecundando as raízes que as soalheiras tórridas queimavam e estarreciam.
E as árvores pareciam bailar contentes, mal se lhes viam os ramos eriçados através dos fios diáfanos da chuva que zimbrava à feição do vento, trepidando nas telhas, entrando pelas janelas: e a mata, desesperada, aflita, debatia-se sôfrega como se procurasse desenraízar-se e fugir à tormenta cujo furor crescia. Figuras de negros passavam mal distintos na transparêhcia da chuva; e silvavam guinchos lamentosos uivos tristes do vendaval desabrido. A porteira bateu com fôrça; nada se avistava para o alto donde desciam jorros de água passando devastadoramente, en- tornando-se pelas ravinas 2) ; mas um mugido atravessou o estrupido [II]) das torrentes que se despenhavam alto, longo, lamentoso, como o som épico da tuba de Rolando [III]) em Rocensvales, estrugindo com estrênuo[IV]) eco através do armistrondo [V]) e do alarido de guerra.
Era o gado que vinha dos campos, batido pelo temporal, deslumbrado pelos relâmpagos, vergastado pelo aguaceiro, galgando os íngremes pendores escorregadios, atolado na água fugitiva e lodosa, trilhando os pastos inundados, quase em trevas, apenas alumiados, de instante a instante, pela fosforescência da tempestade.
E o primeiro touro apareceu assustado, escorrendo em água tonto, olhando sem saber o rumo do curral/ è berrava esticando o focinho para o lado da casa, como a pedir socorro. Outros apareceram em tumulto, as vacas com os seus novilhos e reunidos num lote, os cornos emaranhados, ficaram à chuva, pacientes, achegando-se apertadamente, como para afrontarem juntos a fúria do céu Os campeiros chegavam bradando, apâreciam, desapareciam, e ouvia-se o chapinhar das patas que iam trepidamente. pelo lodaçal, a caminho do cercado; mas um grande touro desgarrou pars
a colina; e solitário, enorme, dentro do aguaceiro, ficou parado, imóvel mugindo lamentosamente.
A tempestade gemia, enchendo a noite de uivos.
O dia amanheceu sombrio e úmido.
A verdura dos cerros parecia mais tenra depois dos aguaceiros. Os montes copiosamente lavados destacavam-se, muito azuis, nos horizontes pardacentos. Os canteiros estavam juntados de pétalas; as rosas, sacudidas violentamente pela tempestade da véspera, desfolhavam-se ao mais ligeiro contacto… . Coelho Neto.
disto o viajante, deixando à esquerda o Ospedale di S. Spirito, fôr contemplar sôbre a margem do , rio a ponte de Santo Ângelo com o forte do mesmo nome, e, se, como eu vi, as águas plácidas do Tibre forem douradas nessa ocasião pelos últimos raios do sol poente, uma só coisa deve fazer: partir, para nunca mais pisar o solo da Cidade Eterna, e voltar à pátria, conservando no mais íntimo da alma uma lembrança que só morte apagará. Roma deputava antigamente os seus filhos mais ilustres para irem a Atenas estudar e aprender o código do saber humano. Hoje, de todos os pontos do globo, a religião e as belas artes enviam deputações a Roma, para escutarem e trazerem de lá a pa-‘
1) ravinas — galicismo inútil — temos barroca, barranco, enxurro
[I] desalterar = dessedentar; apagar, matar a sêde. Os puristas não fazem bom rosto a êste vocábulo, capitulando-o de galicismo; .entretanto parece-nos legítimo português, formado da palavra alterar (antiquada) — causar sêde e do prefixo des.
[II] Estrupido — sin. ruído, estrondo, estrépito.
[III] Rolando — O paladino-guerreiro no tempo de Carlos Magno, que pereceu em combate em Rocensvales em 778.
[IV] Estrénuo — violento.
[V] Armistrondo — (pal. composta de arma e estrondo) barulho, es trondo das armas.
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