João de Barros Falcão de Albuquerque Maranhão

Silvio Romero – História da Literatura Brasileira (ebook por capítulos)

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TRANSIÇÃO

POETAS DE TRANSIÇÃO ENTRE CLÁSSICOS E ROMÂNTICOS (continuação)

 

João de Barros Falcão de Albuquerque Maranhão (1807-1882). — Foi um tipo singular este. Idealista, fantástico, alimentou-se de quimeras durante sessenta anos.

Descendente de uma das mais antigas e ilustres famílias pernambucanas, nasceu Barros Falcão em 1807, ao que presumo. Espírito móbil e entusiasta, os movimentos revolucionários de 17 e 24 deixaram nele uma impressão indelével. A. república tornou-se para o jovem irrequieto um sonho de todos os momentos.

Era um ideal platônico aliado por ele ao seu ideal artístico. Poeta e republicano desde os tempos da puerícia, poeta e republicano sem rebuço desde os tempos do primeiro imperador, que duas terríveis condições para torná-lo infeliz! E ele o foi… Posto em luta com o seu meio, repelido de todas as posições, ludibriado, escarnecido, tornou-se uma notabilidade das ruas, um andarilho, a mais antiga e autêntica manifestação do boêmio literário entre nós. Não bebia, não caloteava, nem tinha outros maus vezos adquiridos pelos indivíduos, que, como ele, acham-se em desesperada luta com aqueles que os cercam.

Vícios, se os tinha, seriam de outra natureza; era celibatário e vivia isolado. Pregava a república, as reformas sociais e políticas em um tom de convicção tão sincera e com uma eloqüência tão sentida, tão comunicativa, que deixava impressionados os conservadores e burgueses do Recife. Resolveram perdê-lo definitivamente; cobriram-no por toda a parte de ridículo; apelidaram-no de — Barros Vulcão. Assim o denominaram constantemente desde 1831. Chegou a levar vaias públicas. Acabou louco. Vi-o muitas vezes no seu declínio. Curvo, envelhecido, macilento, já monomaniaco, tinha ainda raptos felicíssimos.

Barros Vulcão escreveu muitos versos de delicadíssimo gosto romântico. Nunca foram publicados; ele os recitava com certa dificuldade a quem muito lho rogava. Onde não se fazia rogar era no terreno da política. Aí estava sempre pronto a borbulhar em sátiras e doestos ferinos.

De seus versos românticos nada posso adiantar senão que eram de um lirismo fácil e brilhante. A seguinte quadrinha pode servir de amostra:

"Se além do infinito, anjo celeste,
Eu pudesse criar um paraíso,
Teria a luz do sol nestes teus olhos,
E a aurora do amor num teu sorriso!…"

Dos seus tempos de transição existem produções de mérito de que a seguinte é um interessante exemplo:

"Da razão é lei sublime
Que se ame com singeleza;
O que manda a natureza
Não se pode chamar crime.
O céu mesmo é quem imprime
Nos peitos esse almo ardor…
Longe o fanático horror
Que a tantos povos ilude!
Não é crime, antes virtude,
O crime que causa amor.

Quem terna paixão reprime
Esse sim, esse é culpado;
Mas amar e ser amado
Não se pode chamar crime.
Quem de perpetrar se exime
Terno crime sedutor?
— O animal, a planta, a flor
Vivem de amorosa lida:
É crime que nos dá vida
O crime que causa amor.

Sistema que nos oprime
Chama delito a inocência;
Mas amor, de um Deus essência,
Não se pode chamar crime.
Sigamos a lei sublime
Do supremo criador,
Gozemos o puro ardor
Que a natureza nos deu;
Se é crime, é crime do céu
O crime que causa amor.

Na voz da razão se exprime
A luminosa verdade:
Sacra lei da divindade,
Não se pode chamar crime.
‘Humanos, eia! — segui-me’
Nos diz celeste mentor:
Crime dos céus é melhor
Do que as virtudes da terra;
É crime que glória encerra
O crime que causa amor."

São versos popularíssimos em Pernambuco. Há neles o começo da transformação do lirismo retórico da velha poesia para o lirismo pessoal e mais verdadeiro dos novos tempos.

O poeta deixou de sua fase clássica um pequeno volume publicado em 1840 no Recife.

O livro compõe-se de uma silva de quadrinhas octos-sílabas e de algumas epístolas em verso branco. Duas notas capitais descubro ali: certa habilidade lírica e certo desarranjo, um desequilíbrio precursor do desmantelo futuro.

Esta última tendência manifesta-se nalguns exageros, como este:

"Quantas vezes beber ardente anelo
De todas as serpentes’*os venenos,
E raivoso subir aos céus brilhantes,
Denodado apagar a luz de Febo!
Estéril desespero! Inúteis dores!"

Ou esta visão apocalíptica de louco:

"Perdendo da razão o eterno lume,
Vejo sempre Netuno exasperado
Açoitando as estrelas cintilantes,
Em contínua borrasca o mar fervendo,
E de um sorvo engolir milhões de mundos!"

A efusão lírica aparece principalmente nas quadrinhas que se lêem no livro. O poeta começa lembrando os encantos de sua amada. Descreve-a ao sabor clássico:

"Em vastos jardins se ajuntem
As flores que o mundo tem;
Quanto excede em brilho, em graças
A beleza de meu bem!

Que novo céu de alegria
É seu rosto tão formoso!
Não se sustém as estrelas
Ao seu olhar majestoso.

Bem poucos instantes brilha
Formosa aurora engraçada;
Porém quanto excede à aurora
O esplendor da minha amada!

Ah! que vívidas delícias
De seus lábios se desatam,
E, serpejando entre eles,
Meus sentidos arrebatam!

No tom da fruta suave,
Por entre purpúreos cravos,
A sua voz maviosa
Sai mais doce do que os favos."

Não há nisto profundeza, apenas certa graça infantil. O mesmo quando o poeta se lastima dos rigores de sua amante. O tom é igual:

"

Cessai, lágrimas, um pouco,
De borbulhar e correr;
Vou perguntar à Fortuna
Qual meu destino há de ser…

Nos ais que derramo aflito
A minha alma se evapora;
Nem mais meu peito respira,
Tirana chama o devora."

No espírito desequilibrado do poeta as emoções tomavam aspectos exagerados. Eis como fantasiava um beijo:

"

Ó Beijo encantador, maravilhoso,
Se não houvera um Deus, tu o formaras,
E co’ele a terra, os céus e a Natureza,
Quando, entregue ao silêncio deleitoso,
Eu contemplo, meu bem, os teus encantos,
O suave prazer, que sinto n’aima
Mil tormentos produz, que não se extinguem.

Ó Beijo sedutorl Beijo divino!
De ti procedem meus prazeres todos;
Tua ausência retrata-me da morte
O pavoroso horror, que gera infernos;
Eterniza-se a vida e o Amor contigo,
Sem ti o próprio céu volvera ao nada.
Vem, vem, querido Beijo, enlevo d’alma,

Restituir do amante a paz e a vida.
Formosa Tirse, minha Divindade,
Tu és o meu prazer, e o meu tormento.
Teu rosto encantador, dos céus imagem,
Os delírios d’Amor transforma em raios,
Que sobre o coração chovem, de chofre.

O meu peito, meu sangue, as minhas fibras
No veneno engolfados do teu Beijo
Inda sentem seu fogo e seus transportes;
E, apesar dos tormentos que os flagelam,
Minha alma, toda Amor, ternura toda,
De teu Beijo o veneno inda supõe,
Ser mais doce, que o néctar deleitoso!…"

As melhores produções de Barros Falcão estão irremediavelmente perdidas. Este mártir do ridículo está condenado a fazer figura apoucada em nossa história literária. O imperialismo burguês, que nos devorou, inutilizou-o para tudo. Depois de tê-lo aniquilado, lançava mão dele como argumento a seu favor. "Qual república no Brasil!… Só se for a república de Barros Falcão e Borges da Fonseca!…" Era a voz geral ainda há .poucos anos.

O imperialismo enganou-se; ajudada pelos erros dele, a idéia republicana progrediu e foi alastrando o país. Os Barros Falcões e Borges da Fonseca se contaram depois aos milhares. Apenas é lícito dizer que nem todos os de hoje têm talvez a sinceridade do velho Barros, vitimado por suas convicções. Ele merece uma reabilitação, e sejam as palavras aqui consagradas à sua memória o começo dessa justiça póstuma.

Se Barros Falcão e Maciel Monteiro deram lustre a Pernambuco, em São Paulo um grupo de moços levantava-se valente. Augusto de Queiroga, João Salomé, Bernardino Ribeiro e Firmino Rodrigues Silva foram os iniciadores do movimento literário na faculdade jurídica do Sul. Foram dignos companheiros do mais tarde celebrado jornalista Justiniano José da Rocha.

Alguns poucos escritos deixaram; mas oferecem ótima oportunidade para o estudo da intuição literária dos moços brasileiros nos primeiros anos da Regência. De Augusto de Queiroga, Bernardino Ribeiro e Firmino Silva restam raras poesias e artigos jornalísticos daquele tempo. De João Salomé Queiroga existem três volumes impressos.

Vejamo-los.

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