JOSÉ MARIA LATINO COELHO

JOSÉ MARIA LATINO COELHO (Lisboa, 1825-1891), general do exército português e, com melhor direito, das letras lusitanas, fêz severoi estudos na Escola Politécnica de Lisboa e foi membro da Academia das Ciências dessa Capital. Na Escola onde estudou, ganhou por concurso imi.i cadeira de lente.

Apaixonado cultor de línguas vivas e mortas, possuía o mais copioso cabedal de idéias e, ao mesmo tempo, admirável faculdade de expressá-las com propriedade. Têm seus escritos sabor clássico, que aliás não peca por incôngruo purismo.

Escreveu entre outras obras: História Política e Militar de Portugal; Elogios de Humboldt e de José Bonifício; Panegírico de Luís de Camões; Galeria de Varões Ilustres de Portugal; e uma bela tradução da Oração da Coroa, de Demóstenes, precedida de um estudo sobre a civilização da Grécia.

Tendo-se-lhe increpado que era um estilo a procura de um assunto, respondeu Latino Coelho: "Mas um estilo é a coisa mais preciosa e rara nas letras. Um estilo é Cícero e Chateaubriand. E prouvera a Deus que fora exata esta censura!"

A Palavra

De todas as artes a mais bela, a mais expressiva, a mais difícil é sem dúvida a arte da palavra. De todas as mais se entretece e se compõe. São as outras como ancilas e ministras: ela soberana universal.

Da estatuária toma as formas, da arquitetura imita a regrada estrutura de suas fábricas; da pintura copia a côr e o debuxo de seus quadros; da música aprende a variada sucessão de seus compassos e melodias; e sobre todos estes predicados tem, mais do que as outras artes, a vida, que anima os seus painéis, a paixão, que dá novo esplendor às suas tintas, o movimento, que intima aos que a escutam e admiram, o entusiasmo e a persuasão.

A estátua fala, mas fala como uma interjeição, que apenas expressa um sentimento vago, indefinido, momentâneo. A pintura fala, mas fala como uma frase breve em que a elipse houvera suprimido boa parte dos elementos essenciais. O edifício fala, mas fala como uma inscrição abreviada, que desperta a memória do passado sem particularizar os acontecimentos a que alude. A música fala, mas fala apenas à sensibilidade, sem que o entendimento a possa claramente discernir. (252).

(252) discernir (do lat. discernere) — separar, distinguir, discriminar; avaliar, notar, medir.

Só a palavra, nas artes a que é matéria prima, fala ao mesmo tempo à fantasia e à razão, ao sentimento e às paixões. Só ela, Pigmalião prodigioso, esculpe estátuas que vão saindo vivas e animadas da pedra ou do madeiro, onde as delineia e arredonda o seu buril. Só a palavra, mais inventiva do que Zêuxis, sabe desenhar e colorir figuras e países, com que se ilude e engana a vista intelectual. Só a palavra, mais audaz que os Ictinos e os Calícrates, traça, dispõe, exorna e arremessa aos ares monumentos mais nobres e ideais que o Partenão de Atenas. Só a palavra, mais comovedora e persuasiva do que o pletro dos Orfeus, encadeia à sua lira mágica estas feras humanas ou desumanas, que se chamam homens, arrebatados e enfurecidos nas mais truculentas alucinações.

(Oração da Coroa, introd., p. XVII, da 2.a edição.)

América e Portugal

Chama-se, com razão, à América o Novo Mundo, porque em si tem quanto pode adivinhar a fantasia, apetecer a ambição. Novo, porque é a esperança e o porvir da humana estirpe, em contraposição à moral decrepidez do Velho Continente. É nova a terra, nova a natureza, novos os costumes. E por que novas não serão também as leis e instituições? Chamava-lhe a Europa novo, no significado geográfico, e queria já que fosse velho nos preconceitos e abusões. Descobrira-a? Era sua. Povoara-a? Era um feudo. Arroteara-a? Era a sua granja, o seu trapiche, o seu engenho. Dava-lhe leis, governadores e magistrados, e tantas vezes, infelizmente, daqueles de quem diz o eloqüente e não raro malicioso pregador que, parodiando aos fariseus, (253) desdenhavam como peita um cacho de uvas, e engoliam galhardamente alguns fechos (254) de açúcar americano. Dava-lhe a sujeição e o senhorio. Pedia-lhe as copiosas produções do seu torrão. Queria a Europa ter na América o seu imenso latifúndio. (255) Não era uma colônia que a si própria se governa, rendendo homenagem voluntária à sua metrópole e conservando com ela o vínculo político, e uma só Vesta nacional. Dera-lhe por primeiros povoadores colonos na servidão, por humanos instrumentos, escravos africanos.

A função social seria para a América trabalhar e obedecer. Para a Europa, fruir e governar. Este era funestamente o sistema colonial adotado pelas nações, que copiavam sem o entender nem fecundar, como os Romanos, o governo discricionário das províncias avassaladas. A Europa gerara do seu seio a América social. Havia de exercer perpetuamente sobre a América, segundo o velho direito qüiritário, o pátrio poder absoluto.

A América reagiu e combateu. E resistiu em nome do direito, da razão e do futuro. As colônias não são para as nações uma vaidade feminil ou uma fidalga ostentação. Não são apenas uma tradição ou uma memória, como o escudo que remata o palácio aristocrático ou o velho e descosido reposteiro que deixa ainda perceber na mansão do fidalgo ocioso e empobrecido os heráldicos estemas (256) das antigas gerações. Não são um ornato para os povos, nem um dixe (257) das soberanias. São o patrimônio comum da civilização, e a esperança da humanidade. Não são apenas o cortejo das metrópoles, mas os fecundos seminários, donde a árvore da civilização, para longe transplantada, há de cobrir com a sua rama frondente e fecundíssima a gleba maninha (258) e despovoada. Enquanto a colônia serve melhor ao seu destino, ficando dependente da metrópole, a união é previdente e natural. Mas quando a terra mãe inibe, com a sua legislação estreita e egoísta, que o povo saído do seu grêmio pague inteiro o seu tributo ao progresso comum da humanidade, a colônia é como filha que por uma fatalidade inelutável se desprende e emancipa do claustro maternal. Na vida social, como na vida do organismo: o embrião, que se faz feto; (259) o feto, que se converte em um ser independente, mas ainda delicado e infantil; o infante, que se faz adolescente; o adolescente agora feito homem, páter-famílias, cidadão.

Depois da emancipação das colónias britânicas na América, o centro de gravidade no harmônico sistema da civilização cristã deslocou-se do Velho Continente ao Novo Mundo. A civilização segue na sua larga trajetória o caminho do Ocidente. Principia na Ásia, onde as dominações e os impérios, sobrepondo-se e ven-cendo-se, avançam até chegar às fronteiras européias. Da Ásia vem à Grécia. Da Grécia a Roma. De Roma às paragens mais ocidentais da Europa, à Ibéria, à Gália e à Britânia. Os Bárbaros são apenas um afluente ao rio caudaloso das civilizações antigas. A humanidade estanceia quieta e repousada, até que principiam as ousadas navegações dos Portugueses, prefácio glorioso da nova cultura americana. Colombo é o corolário desta heróica premissa, que no largo raciocínio do progresso se chamou Henrique, o navegador. À nação ocidental cabia logicamente o papel de iniciadora. Prosseguindo na derrota do Ocidente, (260) a civilização alcançou o continente americano e desentranhou-se ali em mil prodigiosas maravilhas. A América é a civilização capitalizada. É o pecúlio intelectual de milhares de gerações, acumulado nas terras onde a natureza, pela sua inexcedível uberdade (261) e formosura, é o digno, o esplêndido teatro do homem emancipado. A América juvenil, herdeira da velha Europa, devia recolher a herança copiosa das idéias, sem aceitar o encargo das viciosas tradições.

Portugal foi a grande nação, assinalada na História Universal pelo seu incansável empenho e heróica solicitude em dilatar os breves horizontes (262) do mundo conhecido. Cada povo tem um momento, uma função capital na longa evolução da humanidade. Uns são destinados, como a Grécia em seus dias mais florentes, a mostrar a que altura podem erguer-se o gênio especulativo e os poderes estéticos do homem. Outros, como a Itália da Renascença, a lançar no crepúsculo vespertino da idade média o redivivo clarão da bela antiguidade. Estes, como a França da Revolução, a ressuscitar com a beleza e o vigor da juventude o inato sentimento da humana dignidade, perdido e obliterado (263) na diuturna servidão dos povos europeus. Aqueles, como na União Americana, a ensinar como a liberdade, a ciência e o trabalho, tendo por ancila a natureza e por oficina os seus tesouros, podem operar no Novo Mundo as maravilhas (264) da indústria e os milagres do regime democrático. Portugal não primou nas invenções admiráveis da ciência: não teve Newtons, nem Platões. Não meneou com galhardo luzimento o escopro ou o pincel: não teve Rafaéis nem Buonaróttis. Não evangelizou a liberdade, antes largos anos se mostrou rebelde em a aprender. Não teve Franklins nem Mira-beaus. (265) Não logrou nunca assombrar com os prodígios do trabalho industrial: não teve Watts, nem Stephensons. A sua missão foi, contudo, insigne e principal. Fomos os Espartanos da moderna Europa, mais rudes na doutrina, menos fecundos na invenção que as demais gentes latinas ou teutónicas. Mas tivemos, como os Lacedemônios entre os Gregos, o dom das heróicas temeridades, o amor do ferro e da peleja, a constância tenaz e invencível, o requestar os perigos como delícias, o afrontar o impossível como fácil; a férrea disciplina, se nem sempre com os Lacônios para a cega obediência, ao menos como eles para avançar e para morrer. O privilégio que a Providência nos conferiu, quando a Europa nem sonhava longínquas expedições, foi o de buscar, perseverantes, obstinados, quase fanáticos da idéia, as novas regiões em que expandir a nossa força, que mal cabia nos angustos âmbitos da pátria. (266). Quem sabe se o termos por assento minutíssima orla de terreno à beira do oceano, nos incitava, como por genial instinto, a alargar além do Atlântico as naturais fronteiras? Também a águia tem o ninho na estreiteza de um rochedo, e dele abrindo a ampla envergadura,

(267) voeja, ascende, alteia-se e perde-se entre as nuvens, librando se, rainha, na imensa vastidão da atmosfera. Assim se passou Com este pequeno povo de Portugal: pequeno como Atenas nas lides estreitas da sua terra, porém grande na pujança insaciável ilas suas ambições. Nenhum povo antigo nem moderno se abalou Iamais a tão longas e temerosas aventuras. Se Colombo representa o acaso, coroando a perseverança, os descobrimentos portugueses são o valor realizando o que a ciência deduz e prognostica. O erro imaginoso encaminha a derrota do mareante genovês. Mas a verdade cosmográfica vai indicando o rumo aos frágeis galeões de Portugal.

O que nos sobra em glória de ousados e venturosos navegantes, míngua-nos em fama de enérgicos e previdentes colonizadores. Parece que o destino particular dos Portugueses era descortinar aos outros os términos do mundo. Éramos os guias e mistagogos (268) da nova civilização. Conquistamos a Índia para que estranhos a lograssem. Devassamos a China, para que utilizassem depois os seus comércios. Levamos ao Japão o nosso nome, para que outros mais felizes implantassem naquela terra singular os primeiros rudimentos da civilização ocidental. Lustramos a África, para que alheios povos, tachando-nos de inertes e remissos, nos disputassem o que não soubemos nunca aproveitar. De infindos territórios, que a nossa poderio avassalamos, resta-nos apenas no Oriente quanto de terra era sobejo para cravar, como heróica tradição, a bandeira nacional. Só na América fizemos exceção à desídia hereditária com que semeamos sem colher. Só ali colonizámos, na própria acepção desta palavra.

(Elogio Histórico de José Bonifácio, pp. 39-43).

Vocabulário

(253) parodiando aos fariseus ~ imitando os fariseus. Parodiar, de paródia (gr. paródia, canto junto de outro, pelo lat. parodia), aos fariseus — objeto direto preposicionado.
(254) fechos — caixotes para açúcar.
(255) latifúndio = grande propriedade territorial (do lat. latifimdiu —, de tatus,
largo, extenso, e fundus, bem de raiz, terra, domínio).
(256) — heráldicos estemas = coroas ou brasões dos escudos de nobreza.
(257) dixe = jóia, objeto mimoso de ouro e gemas, ornato, enfeite; do ár. deh, através do castelhano dije.
Latino Coelho escreveu diche, mas o — / — espanhol transcreve-se por — x.
(258) maninho = estéril, sáfaro, infecundo, silvestre, inculto, com referência ao solo. Parece provir de malignum, como alvitrou Aulete. Emprega-se também como substantivo.
(259) Coexistem feto, do
lat. fetu, produto da concepção já animado mas não chegado a termo; e teto, do lat. *filictu, planta criptogâmica, are. feeto, de onde sai fetal e também feital e Feital.
(260) — derrota = rumo, direção, roteiro do» navios; do lat. dirupta [via] = caminho rasgado, aberto. Há também derrota, com a mesma raiz, e com a significação de ruptura, dispersão, desbarato, derrocada, abatimento.
(261) — uberdade = fertilidade, abundância; do lat. ubertate, da raiz de uber, fértil; úbere, ubérrimo, ubertoso.
(262)
breveshorizontes — V n. 236.
(263) — Obliterado = delido, apagado, expungido. Oblitterare (de ob + littera) significa propriamente apagar as letras.
(264) Maravilha, subst. fem., oriundo do neutro latino, por confusão do acusat. pl. em — a — com os nomes femininos da l.a declinação. Foi o acusat. mirabilia do neutro mirabile, que produziu o feminino maravilha. Cfr. os casos semelhantes: opera (de opus) > a obra; arma (de armum) > a arma; jesta (de festum) > a festa; folia (de folium) > a folha; víscera (de visais)
> a víscera; úlcera (de ulcus) > a úlcera; têmpora (de tempus) < as > as têmporas; vela (de velum) > a vela; vota (de votum) > a boda; signa (de signum) > a senha etc.
(265) Não teve Franklins nem Mirabeaus. V.
a n. 691
(266) angusto — apertado, estreito: cenário angusto, "o estorvo de um orifício angusto" (Franc. de Castro, ap. Dicion. de Laudelino e Campos): da raiz lat. do verbo angere. apertar, estrangular, sufocar, que é
a mesma de angústia e de ânsia.
(267) — envergadura — extensão de ponta a ponta das asas abertas de uma ave.
(268) — mistagogo = mestre ou guia dos mistérios; constituído com o vocábulo grego agogôs, guia, condutor. São formações semelhantes: demagogo, epagogo, pedagogo e os termos médicos colagogo, emenagogo, jleumagogo, panquimagogo.


Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte: Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.

 

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