Antologia de escritores portugueses
LUIS AUGUSTO REBELO DA SILVA (Lisboa, 1822-1871) freqüentou um curso matemático, que logo abandonou, dedicando-se a estudos literários e históricos.
Sua coroa de romancista é a Mocidade de D. João V; além deste também são muito lidos Rausso por Homizio, Casa dos Fantasmas, Ódio velho não cansa etc.
Em outras províncias das ciências e artes — Economia Política, Crítica, literária e filológica, História — exerceu brilhantemente sua atividade. Os Fastos da Igreja e a História de Portugal merecem especial menção. Como dramaturgo fêz tentativas não descoroadas de êxito. Em seguida a triunfos literários e políticos, alcançou o pariato e tomou assento nos conselhos da coroa.
Conquanto não tolere o confronto com Herculano, Castilho e Garrett, Rebelo da Silva foi escritor fluente e a seu estilo não falta decorosa amplidão, nem movimento e brilho.
Ultima Corrida de Touros em Salvaterra
Uma toirada real chamara a corte a Salvaterra. Os fidalgos respiravam nesta ocasião menos oprimidos. Não os assombrava tão de perto a privança do ministro. Os toiros eram bravos, os cavaleiros destros, o anfiteatro pomposo, e o cortejo das damas adorável. O prazer ria na boca de todos. Por cúmulo de venturas, o marquês de Pombal ficara em Lisboa, retido pelo conflito com o embaixador da Espanha.
Nestas funções não vigorava a severidade das últimas pragmáticas. Outro motivo de júbilo. Quem queria podia arruinar-se em luxuosos vestidos, enfeites e toucados. As bordaduras e os recamos de oiro, os veludos e as sedas de fora, talhadas à francesa, resplandeciam constelados de pérolas e diamantes. Por cima dos mais ricos trajes e das mais vistosas cores, desenrolavam-se os anéis ondeados das empoadas cabeleiras. As damas ostentavam as graças de seus donaires e tufados, (223) e, emoldurando o belo oval (224) dos rostos nos penteados caprichosos, sorriam-se para os gentis campeadores, e seus olhos cheios de luz e de promessas estimulavam até os tímidos.
Correram-se as cortinas da tribuna real. Rompem as músicas. Chegou el-rei, e logo depois entra pelos camarotes o vistoso cortejo, e vê-se (225) ondear um oceano de cabeças e plumas. Na praça ressoam com brava alegria as trombetas, as charamelas e os timbales. (226). Aparecem os cavaleiros, fidalgos distintos todos, com o conto (227) das lanças nos estribos, e os brasões bordados no veludo das gualdrapas dos cavalos. As plumas dos chapéus debruçam-se em matizados cocares, (228) e as espadas em bainhas lavradas pendem de soberbos talins. Os capinhas e forcados vestem com garbo à castelhana antiga. No semblante de todos brilha o ardor e o entusiasmo. (229).
O conde dos Arcos, entre os cavaleiros, era quem dava mais na vista. O seu trajo, cortado à moda da corte de Luís XV, de veludo preto, fazia realçar a elegância do corpo. Na gola da capa e no corpete, sobressaíam as finas rendas da gravata e dos punhos. Nos joelhos as ligas bordadas deixavam escapar com artifício os tufos de cambraieta alvíssima. O conde não excedia a estatura ordinária, mas, esbelto e proporcionado, todos os seus movimentos eram graciosos. As faces eram talvez pálidas de mais, porém animadas de grande expressão, e o fulgor das pupilas negras fuzilava tão vivo e por vezes tão recobrado, que se tornava irresistível. Filho do marquês de Marialva, e discípulo querido de seu pai, do melhor cavaleiro de Portugal, e talvez da Europa, a cavalo, a nobreza e a naturalidade do seu porte enlevavam os olhos. Êle e o corcel, (230) como que ajustados em uma só peça, realizavam a imagem do centauro antigo.
A bizarria com que percorreu a praça, domando sem esforço o fogoso corcel, arrancou prolongados e repetidos aplausos. Na terceira volta, obrigando o cavalo quase a ajoelhar-se diante de um camarote, fêz que uma dama escondesse, torvada, no lenço as rosas vivíssimas do rosto, que de certo descobririam o melindroso segredo da sua alma, se em momentos rápidos como o faiscar do relâmpago, pudesse alguém adivinhar o que só dois sabiam.
El-rei, quando o mancebo o cumprimentou pela última vez, sorriu-se e disse voltando-se:
— Por que virá o conde quase de luto à festa? Principiou o combate.
Não é propósito nosso descrevermos uma corrida de toiros. Todos têm assistido a elas, (231) e sabem de memória o que o espetáculo oferece de notável. Diremos só que a raça dos bois era apurada, e que os toiros se corriam desembolados, à espanhola. Nada diminuía, portanto, as probabilidades do perigo e a poesia da luta.
Tinham-se picado alguns bois. Abriu-se de novo a porta do curro, e um toiro preto investiu com a praça. (232). Era um verdadeiro boi de circo. Armas (233) compridas e reviradas nas pontas, pernas delgadas e nervosas, indício de grande ligeireza, e movimentos rápidos e bruscos, sinal de força prodigiosa. Apenas tocara o centro da praça, estacou como deslumbrado, (234) sacudiu a fronte e, escarvando a terra impaciente, soltou um mugido (235) feroz no meio do silêncio que sucedera às palmas e gritos dos espectadores. Dentro em pouco os capinhãs, saltando a pulos as trincheiras, fugiam à velocidade espantosa do animal, e dois ou três cavalos expirantes denunciavam a sua fúria.
Nenhum dos cavaleiros se atreveu a sair contra êle. Fêz-sc uma pausa. O toiro pisava a arena ameaçador, e parecia desafiar em vão um contendor. De repente viu-se o conde dos Arcos, firme na sela, provocar o ímpeto da fera, e a hástea flexível do rojão ranger e estalar, embebendo o ferro no pescoço musculoso do boi. Um rugido tremendo, uma aclamação imensa do anfiteatro inteiro, e as vozes triunfais das trombetas e chama-relas encerraram esta sorte brilhante. Quando o nobre mancebo passou a galope por baixo do camarote, diante do qual pouco antes fizera ajoelhar o cavalo, a mão alva e breve (236) de uma dama deixou cair uma rosa, e o conde, curvando-se com donaire sobre os arções, apanhou a flor do chão sem afrouxar a carreira, levou-a aos lábios e meteu-a no peito. Investindo depois com o toiro tornado imóvel com a raiva concentrada, rodeou-o, estreitando em volta dele os círculos, até chegar quase a pôr-lhe a mão na anca.
O mancebo desprezava o perigo, e, pago até da morte pelos sorrisos que seus olhos furtavam de longe, levou o arrojo a arrepiar a testa do toiro com a ponta da lança. Precipitou-se então o animal com fúria cega e irresistível. O cavalo baqueou trespassado, e o cavaleiro, ferido na perna, não pôde levantar-se. Voltando sobre êle o boi enraivecido, arremessou-o aos ares, esperou-lhe a queda nas armas, e não se arredou senão quando, assentando-lhe as patas sobre o peito (237) conheceu que o seu inimigo era cadáver.
Este doloroso lance ocorreu com a velocidade do raio. Estava já consumada a tragédia, e não havia expirado ainda o eco dos últimos aplausos.
De repente, um silêncio em que se conglobavam milhares de agonias, emudeceu o circo. (238). Rei, vassalos e damas, meio corpo fora dos camarotes, fitavam a praça (239) sem respirar, e erguiam logo depois a vista ao céu, como para seguir a alma que para lá voava envolta em sangue.
Quando o mancebo, dobado no ar, (240) exalava a vida antes de tocar o chão, um gemido agudo, composto de soluços e choro, caiu sobre o cadáver como uma lágrima de fogo.
Uma dama, desmaiada nos braços de outras senhoras, soltara aquele grito estridente, derradeiro ai do coração ao rebentar no peito.
El-rei D. José, com as mãos no rosto, parecia petrificado.
A corte desta vez acompanhava-o sinceramente na sua dor.
Mas o drama ainda não tinha concluído. Quem sabe? O terror e a piedade iam cortar de novas mágoas o peito a todos. (241).
O marquês de Marialva assistira a tudo do seu lugar. Revendo-se na gentileza do filho, seus olhos seguiam-lhe os movimentos, brilhando radiosos a cada sorte feliz. Logo que entrou o toiro preto, carregou-se de uma nuvem o semblante do ancião. Quando o conde dos Arcos saiu a farpeá-lo, as feições do pai contraíram-se, e a sua vista não se despregou mais da arriscada luta.
De repente o velho soltou um grito sufocado e cobriu os olhos, apertando depois as mãos na cabeça. Os seus receios haviam-se realizado. Cavalo e cavaleiro rolavam na arena, e a esperança pendia de um fio tênue! (242).
Cortou-lho rapidamente a morte, e o marquês, perdido o filho, luz da sua alma e ufania de suas cãs, (243) não proferia uma palavra, não derramou uma lágrima; mas os joelhos fugiram-lhe trêmulos, e a elevada estatura inclinou-se, vergando ao peso da mágoa excruciante.
Volveu, porém, em si, decorridos momentos. A lívida palidez do rosto tingiu-se de vermelhidão febril, subitamente. Os cabelos, desgrenhados e hirtos, revolveram-se-lhe na fronte inundada de suor frio, como as sedas da juba de um leão irritado. Nos olhos amortecidos faiscou instantâneo, mais terrível, o sombrio clarão de uma cólera em que todas as ânsias insofridas da vingança se acumulavam.
Em um ímpeto, a presença (244) reassumiu as proporções majestosas e erectas, como se lhe corresse nas veias o sangue do mancebo que perdera. Levando por ato instintivo a mão ao lado para arrancar da espada, meneou tristemente a cabeça. A sua boa espada cingira-a êle próprio ao filho neste dia, que se convertera para a sua casa em dia de eterno luto!
Sem querer ouvir nada, desceu os degraus do anfiteatro, seguro e resoluto, como se as neves de setenta anos lhe não branqueassem a cabeça.
— Sua Majestade ordena ao marquês de Marialva que aguarde as suas ordens! disse um camarista detendo-o pelo braço.
O velho fidalgo estremeceu como se acordasse sobressaltado, e cravou no interlocutor os olhos desvairados, (245) em que reluzia o fulgor concentrado de um pensamento imutável. Desviando depois a mão que o suspendia, baixou mais dois degraus.
— Sua Majestade entende que este dia já foi bastante desgraçado, e não quer perder nele dois vassalos… O marquês desobedece às ordens de el-rei?…
— El:rei manda nos vivos e eu vou morrer! atalhou o ancião em voz áspera, mas sumida. Aquele é o corpo de meu filho! E apontava para o cadáver. Está ali! Sua Majestade pode tudo, menos desarmar o braço do pai, menos desonrar os cabelos brancos do criado que o serve há tantos anos. Deixe-me passar, e diga isto.
D. José vira o marquês levantar-se e percebera a sua resolução. Amava no estribeiro-mor as virtudes e a lealdade nunca desmentida. Sabia que da sua boca não ouvira senão a verdade, e a idéia de o perder assim era-lhe insuportável. Apenas lhe constou que êle não acedia à sua vontade, fêz-se branco, cerrou os dentes convulso, e, debruçado para fora da tribuna, aguardou em ansioso silêncio o desfecho da catástrofe.
A esse tempo já o marquês pisava a praça, firme e intrépido como os antigos romanos diante da morte. Dentro do peito o seu coração chorava, mas os olhos áridos queimavam as lágrimas, quando subiam a rebentar por eles. Primeiro do que tudo queria a vingança.
Por impulso instantâneo, todo o ajuntamento se pôs de pé. Os semblantes consternados e os olhos arrasados de água exprimiam aquela dolorosa contenção do espírito em que um sentido parece concentrar todos.
Deixai-o ir, ao velho fidalgo! A mágoa, que o traspassa, não tem igual. O fogo, que lhe presta vida e forças, é a desesperação. Deixai-o ir, e de joelhos! Saudai a majestade do infortúnio!
O pai angustiado ajoelhou junto do corpo do filho e pousou–lhe um ósculo (246) na fronte. Desabrochou-lhe depois o talim e cingiu-o, levantou-lhe do chão a espada, e correu-lhe a vista pelo fio e pela ponta de dois gumes. Passou depois a capa no braço e cobriu-se. Decorridos instantes, estava no meio da praça e devorava o toiro com a vista chamejante, provocando-o para o combate.
Cortado de comoções tão cruéis, não lhe tremia o braço, e os pés arraigavam-se na arena como se um poder oculto e superior lhos tivesse ligado repentinamente à terra.
Fêz-se no circo um silêncio gélido, tremendo e tão profundo, que poderiam ouvir-se (247) até as pulsações do coração do marquês, se naquela alma de bronze o coração valesse mail do que a vontade.
O toiro arremete contra êle… Uma e muitas vezes o investe cego e irado, mas a destreza do marquês esquiva sempn-a pancada.
Os ilhais da fera arfam de fadiga, a espuma franja-lhe a boca, as pernas vergam e resvalam, e os olhos amortecem (248) de cansaço. O ancião zomba da sua fúria. Calculando as distâncias, frustra-lhe todos os golpes sem recuar um passo.
O combate demora-se.
A vida dos espectadores resume-se nos olhos. Nenhum ousa desviar a vista de cima da praça. A imensidade da catástrofe imobiliza todos.
De súbito solta el-rei um grito e recolhe-se para dentro da tribuna. O velho aparava a peito descoberto a marrada do toiro, e quase todos ajoelharam para rezarem por alma do último marquês de Marialva.
A aflitiva pausa apenas durou momentos. Por entre as névoas, de que a pupila trêmula se embaciava, viu-se o homem crescer para a fera, a espada fuzilar nos ares, e logo após sumir–se até aos copos entre a nuca do animal. Um bramido, que atroou o circo, e o baque do corpo agigantado na arena encerraram o extremo ato do funesto drama.
Clamores uníssonos saudaram a vitória. O marquês, que tinha dobrado o joelho com a força do golpe, levantava-se mais branco do que um cadáver. Sem fazer caso dos que o rodeavam, tornou a abraçar-se com o corpo do filho, banhando-o de lágrimas e cobrindo-o de beijos.
O toiro ergueu-se, e, cambaleando com a sezão da morte, veio apalpar o sítio onde queria expirar. Ajuntou ali os membros e deixou-se cair sem vida ao lado do cavalo do conde dos Arcos.
Nesse momento os espectadores, olhando para a tribuna real, estremeceram. El-rei, de pé e muito pálido, tinha junto de si o marquês de Pombal coberto de pó e com sinais de ter viajado depressa.
Sebastião José de Carvalho voltava de propósito as costas à praça, falando com o monarca. Punia assim a barbaridade do circo.
— Temos guerra com a Espanha, senhor. É inevitável. Vossa Majestade não pode consentir que os toiros lhe matem o tempo e os vassalos! Se continuássemos neste caminho. .. cedo iria Portugal à vela.
— Foi a última corrida, marquês. A morte do conde dos Arcos acabou os toiros reais, enquanto eu reinar.
— Assim o espero da sabedoria de Vossa Majestade. Não há tanta gente nos seus reinos que possa dar-se (249) um homem por um toiro. (250). El-rei consente que vá em seu nome consolar o marquês de Marialva?
— Vá. É pai. Sabe o que há de dizer-lhe.. .
— O mesmo que êle me diria a mim, (251) se Henrique estivesse como está o conde.
El-rei saiu da tribuna, e o marquês de Pombal, entrando na praça com toda a majestade de sua elevada estatura, levantou nos braços o velho fidalgo, dizendo-lhe com voz meiga e triste:
— Senhor marquês! Os portugueses como Vossa Excelência são para darem exemplos de grandeza d’alma e não para os receberem. Tinha um filho e Deus levou-lho. Altos juízos seus! A Espanha declara-nos guerra e el-rei, meu amo e meu senhor, precisa do conselho e da espada de Vossa Excelência.
E, travando-lhe da mão, levou-o quase nos braços até o meterem na carruagem.
D. José I cumpriu a palavra dada ao seu ministro.
No seu reinado nunca mais se picaram toiros reais em Salvaterra.
(Contos e Lendas, p. 171).
Notas e comentários
(223) donaires = enfeites, adornos; tufados — folhos, pregas do vestido. Donaire significa também graça, garbo, elegância.
(224) O determinante oval está aí substantivado por omissão do substantivo determinado, que pode ser contorno, forma, desenho, conjunto etc. É um caso de braquilogia, ou simplificação da expressão, tão comum em todas as línguas: — um transatlântico, a Central, o rápido, uma reta, as credenciais, o temporal, uma cir-cular, o voluntário (soldado), a pátria (terra: terra dos pais), a batina (veste abatina: do abade), o vernáculo (idioma), uma pernambucana afiada (Faca): "levou a mão ã cinta. Buscava a sua boa toledana" (espada; feita em Toledo) Herculano, ap. M. Barreto.
(225) e vê-se — Essa oração, apassivada pelo se, tem por sujeito a infinitiva do verbo ondear, da qual um oceano de cabeças e plumas é o sujeito.
(226) charamelas e timbales — instrumentos musicais: o primeiro, do fr. antigo chalemelle, no lat. calamellus, derivado de calamus, caniço. O francês palatiza o — e — duro inicial latino, e os vocábulos que nos vieram através desse idioma conservam esse ch palatal: chaminé, chanceler, chantre, chapéu, charrua, chefe, chino, que no lat. eram caminata, cancellarius, cantor, *cappellus, carruca, caput e *cate-nione. Timbales parece ser a contaminação do gr. tympanon, tambor, com atabale, do ár. tabl (tabal).
(227) Conto = extremidade inferior da lança, ponteira; do gr. kóntos, pelo lat. contus: "o conto do bastão". (Lus., I, 37). Locução: às contoadas (Fr. Luís de Sousa). Conto significa também narração, pequena história; e quantidade, ora valendo número (um sem-conto de cousas), ora valendo dez vezes cem mil, empregados para indicar valor monetário: um conto de réis z= um milhão de réis.
(228) cocares, pl. de cocar = tufo de penas ou penacho. Do francês cocarde, velho fr. coquarde, de coq, galo.
(229) O verbo antecede o sujeito composto e concorda no singular com o primeiro termo deste, tanto mais quanto os substantivos são sinônimos.
(230) corsel. V. n. 154.
(231) Todos têm assistido a elas — O v. assistir com a significação de estar presente, comparecer, não aceita o complemento lhe, lhes, mas a êle(s) ou a ela(s). Seria inaceitável escrever-se acima: Todos lhes têm assistido. "Lá vão os frades celebrar um auto! Não serei eu que assista a êle". (Herculano, ap. Franc. Fernandes, Dicion., s. v.).
(232) — Investiu com a praça = acometeu-a, atacou-a. Com este sentido aceita as regências: investir a praça, com a praça, para a praça e contra a praça.
(233) armas = chifres.
(234) deslumbrar — ofuscar a vista pela ação de muita luz. Guarda a raiz do lat. lumine, pelo esp. lumbre (< lumre < lumne). Corradical é vislumbre (de vis, por bis, com sentido pejorativo, e lumbre: luz fraca, frouxa, clarão. O alumbrar castelhano corresponde a nosso alumiar.
(235) Mugir, voz dos bovídeos, do lat. mugire, onomatopaico, e mungir, ordenhar, do lat. mulgere > muigir > mugir e mungir) são parônimos.
(236) breve — pequena. Na expressão em breve subentende-se tempo; Camões usou em tempo breve (III, 26, 33; VII, 65) e em breve (III, 81).
(237) quando, assentando-lhe as patas sobre o peito, — pronome átono, compulsoriamente enclitico junto ao gerúndio independente.
(238) emudeceu o circo, isto é, emudeceu os espectadores (o continente pelo conteúdo — metonímia).
(239) fitavam a praça por fitavam os olhos na praça. Houve abreviação da frase; e hoje tanto se diz fitar os olhos em alguém como fitar alguém. E o mesmo se dá com o verbo fixar, ambos com o sentido de olhar. Camilo usou as duas construções e Rui igualmente. Deste há vários exemplos; daquele uma dezena de abonações carreadas por Mário Barreto às pp. 199 e 200 do tomo 2.° da obra De Gramát. e de Linguagem.
(240) dobado no ar = volteado, arremessado no ar. Verbo dobar, antigo debar, do Iat. *depanare. Dobrar o fio = enovelar o fio com a dobadoura ou sem ela; dobar a seda, o linho. Por extensão, mover em roda, voltear, rodopiar: andar numa dobadoura.
(241) a todos = de todos.
(242) tênue — fino, delgado, leve, frágil, do lat. tenue. Ê vocáb. paroxítono, como todos os que terminam em âitongo crescente: sábia, rádio, cárie, náusea, mágoa, plúmbeo, crânio, vénia, princípio, notícia, ignorância, extraordinária etc. Tais palavras não são esdrúxulas; e, pois, o acento visa tão somente a evitar que na pronúncia se transmude o ditongo crescente em hiato: o que daria à cada um desses termos mais uma sílaba. Cfr. providência, com quatro sílabas e providencia, com cinco; contínua com três e continua com quatro, mágoa com duas e magoa, com três.
(243) Cãs pl. femin. de cão, do lat. canu (canus, a, um), branco, em referência a pêlos, cabelos e penugens. O termo reduziu-se apenas ao pl. fem. cãs, do lat. canas, brancas, em que se subentende o subst. barbas ou o are. crenchas, cabeleira. Diz-se as cães, como se diz as brancas: …"a verdade nos mostra… as últimas brancas daquela cabeça… piamente recolhidas até o último cabelo, como relíquias sagradas…" (Rui, Swijt, in Orações do Apóst., p. 154). O verbo é encanecer.
(244) a presença — o aspecto, a aparência, o semblante.
(245) desvairados — metátese, ou, mais propriamente, hipértese de desvariados; coexistem com o mesmo sentido. Cfr. desvario e desvairo.
(246) ósculo = beijo; osculu — é diminutivo do lat. os, oris, boca; na linguagem familiar afetiva, o beijo é boquinha.
(247) que poderiam ouvir-se ou que se poderiam ouvir.
(248) Da raiz mor do verbo lat. morior e do subst. morte — decorrem os verbos morrer, amortear, amortecer, mortificar, amortizar, amortiçar, amortalhar, mortalizar, esmorecer.
(249) ou que se possa dar. (250) Toiro e touro — formas sincréticas, a primeira, mais lusitana; a segunda, nossa. O lat. tauru deu touro, que lá se alterou em toiro, como causa deu cousa que também se escreve coisa, e coriu e biscoctu produziram coiro e couro, biscoito e biscouto. Essas formas poderiam ter-se fixado consoante à voz originária, mas tal não se deu, e tão somente o uso lhes marca a preferência. (251) êle me diria a mim — objeto indir. reforçado pleonàsticamente.
Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte: Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.
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