Kant e Hume nos limites da razão

  Hume e Kant nos limites da razão




             Por
Miguel Duclós


Trabalho originalmente feito para
a cadeira de Introdução à  filosofia I, da FFLCH
da USP, corrigido por Márcio Suzuki

 


1-Introdução

           
Esse trabalho tem o objetivo de mostrar como as questões que Hume
levanta em suas investigações, como o problema da causalidade
(que Kant chama de crux metaphysicorum de Hume) são levantadas de
forma penetrante e respondidas de forma ampla e arguta por Kant em parte
de sua obra. Sendo que para isso será necessário abordar
aspectos diversos da obra desses autores, respeitando o limite de espaço
do presente trabalho.

                                                                       2-Hume

          
A seção IV das Investigação sobre o entendimento
humano é uma parte da obra em que o ataque à razão
e à metafísica é feito de maneiras clara por David
Hume. Uma das questões cruciais da  existência é
o suceder dos acontecimentos. Hume diz que não se pode basear em
nenhuma espécie de raciocínio formal a inferência e
as analogias que fazemos em relação aos efeitos de causas
semelhantes nas questões de fato. Ele ilustra isso com alguns exemplos,
como o dos ovos e o dos pães. Que argumento seria esse, diz Hume,
que nos leva a pensar que um corpo semelhante a um pão que outrora
me nutriu, vai estar dotado do mesmo poder secreto da alimentação?
A experiência é a fonte de tudo o que temos na mente, diz
Hume logo no início do livro. De modo que nenhum raciocínio
a priori pode garantir a falsidade de um contrário de uma questão
de fato ou de um raciocínio moral. Esse contrário é
sempre possível, desde que seja inteligível, como nos ilustra
o famoso exemplo do sol. As relações de Idéias, pelo
contrário, se baseiam em conceitos criados pelo homem, de modo que,
pelo princípio da não-contradição, essas Idéias
não devem ser contrárias. Talvez Hume estivesse mostrando,
com sua nova forma de ver a causa e o efeito, que todas as teorias gerais
a respeito da realidade são da ordem da probabilidade.

        
Não há como saber uma coisa antes que ela aconteça.
Hume ataca o pensamento que vai para além dos testemunho presente
dos sentidos e registros da memória. Na seção V, 
Hume apresenta duas soluções para as dúvidas acima
mencionadas. A primeira diz não ser  nenhum argumento que nos
leva a inferir  de qualidades sensíveis semelhantes efeitos
semelhantes, mas sim o hábito e a experiência. Como fonte
de tudo que há em nosso pensamento, são esses “grandes guias
de tudo o que acontece na vida humana” que sedimentam e dão origem
a nossa preferência de uma probabilidade por  outra. O interessante
é notar que o pensar e o sentir estão ligados e se afetam
de forma recíproca, visto que nunca estamos apenas pensando ou apenas
sentindo, mas sempre fazendo os dois ao mesmo tempo, embora em graus diferentes
que se alteram. Quanto à segunda dúvida, a do que nos leva
a ir para além do presente e da memória, Hume aponta como
resposta as analogias suscitadas por algum objeto ou pessoa presente. Estamos
sempre associando idéias (por causa e efeito, semelhança
ou continuidade no espaço e tempo) de modo que ao ver algo (no presente)
que nos é similar, ligamos a experiência passada que tivemos
com esse objeto (memória), e supondo que o futuro é irremediavelmente
criado pelo passado.

         
Mas esse erro que parece ser imperdoável é na verdade, diz
Hume, uma operação da alma, onde conjugamos o que está
presente com  experiências passadas. Para explicar melhor isso,
Hume introduz o conceito de crença. A crença seria um forte
sentimento involuntário que nos faz preferir uma hipótese
a outra, durante a conexão causal dos acontecimentos. É essa 
força a responsável pela ligação de um acontecimento
a outro de forma a parecer uma lei, tornando contínua, e não
fragmentada, a sucessão dos acontecimentos. Esse sentimento difere
da imaginação por ser mais forte e vívido que ela,
e  não acontecer voluntariamente, mas antes  ser excitado
pela natureza. A sucessão dos fatos no tempo segue sempre uma harmonia
pré-estabelecida entre  o homem e a natureza. E, para Hume, 
os verdadeiros desígnios e o curso da natureza  vão
sempre permanecer incognoscíveis para nós. E essa problemática
levantada por ele não chega constituir  um problema  prático,
pois a natureza sempre imporá “sua vontade” sobre nós. É
por isso que há a separação entre o mundo teórico
e o prático.

         
Pois bem, esse desfecho irracionalista e consistente do empirismo parecia
jogar um balde de água fria nos que procuravam encontrar a mesma
certeza apodíctica da ciência da natureza newtoniana nas questões
morais. O desafio de Hume precisava ser respondido à altura. Foi
então que Kant escreveu.

 

                                                                      3- Kant

         
Analisarei brevemente a reação de Kant a alguns aspectos
abordados por Hume, principalmente a partir do livro Prolegômenos
a toda metafísica futura que queira se apresentar como ciência.
(capítulos 27 a 29 e anteriores) e na primeira parte da Crítica
da razão pura. Kant disse certa vez que estava destinado a ser apaixonado
pela metafísica. E uma das questões que abordou na sua longa
e profunda obra foi a maneira de como se deve proceder para dar a metafísica
o status de ciência. Despertado de seu sono dogmático pela
leitura de Hume, Kant procura explicar por que os metafísicos não
haviam apresentado nada de indubitável. E chega à conclusão
de que a teoria destes era como um sonho, pessoal e intransferível.
Em obras pré-críticas, Kant manifesta a intenção
de aproximar a metafísica da geometria, e apresenta quatro princípios
metafísicos: o da identidade, o da razão suficiente, o da
sucessão e o da coexistência.

          
Uma das características da razão é ser a faculdade
de julgar. Um juízo é a reunião de dois conceitos
no qual um cumpre o papel de sujeito e o outro de predicado. Kant classifica
os juízos em analíticos e sintéticos. (que não
são as formas do juízo, mas são válidos mesmo
para as doze formas de juízos e categorias de Kant) Os primeiros
são a priori por serem tautológicos, e os segundos são
a síntese de dois conceitos em algo que não foi apresentado
antes. Portanto, são os últimos que a ciência deve
se utilizar, por acrescentar algo ao conhecimento. Os juízos sintéticos
podem ser derivados da experiência ou a priori. O problema a resolver
então é: Como é possível uma ciência
pura, ou o juízo sintético a priori?

          
Para entrar nesse assunto, vou ter de falar da revolução
copernicana de Kant, de forma absurdamente breve. A diferença entre
o conhecimento sensível e o inteligível, é que o sensível
é imediato, intuitivo e passivo. As sensações só
conhecem fenômenos (phainesthai, phainomenon), ou seja, o modo como
as coisas se apresentam. O conhecimento intelectivo propõe conceitos
e representa coisas, usando-se à larga da linguagem para significar
o que é dado pelos sentidos. Kant mostra a metáfora da ilha,
onde estamos presos em uma ilha que conhecemos muito bem (a experiência)
e tudo o que possa existir além dela se encontra desconhecido em
oceano sombrio e vasto. Quando  a razão tenta ir para além
da experiência, cai em erros e antinomias inevitáveis, involuntários.
E para Kant  o que é involuntário é estrutural.
O conhecimento sensível apresenta estrutura porque tem como condição
estrutural para acontecer o espaço e o tempo, que são subjetivos.
O espaço e o tempo são formas como sujeito capta a realidade.
E são a  priori, pois são necessários. Para Kant,
nós devemos estar na frente e obrigar a natureza a responder nossos
desígnios, concluindo dela aquilo que nós mesmos colocamos.
O desdobramento dessa maneira de ver tem uma conclusão inevitável:
Não é apenas  o sujeito que é afetado pelo objeto,
mas sim  o objeto que se adapta à estrutura do sujeito até
ser delimitado e se tornar a representação perceptiva deste.
Transcendental seria então, grosseiramente falando, aquilo que o
sujeito põe nas coisas no ato de conhecê-las. Da mesma forma
que Copérnico tirou a Terra da sua imobilidade do centro do Universo,
Kant moveu a perspectiva da relação sujeito-objeto, acrescentando
de sobra uma espécie de conhecimento a priori que são, como
foi visto, as formas a priori  da sensibilidade, o espaço e
o tempo. Além dessa explicação para a questão
do juízo sintético a priori, Kant mostra mais uma.

            
No ato de representar, necessário à percepção
das coisas da forma como vemos,  unimos as coisas em uma consciência
una,  transformamos sua multiplicidade em uma percepção
consciente, de acordo com o nosso sujeito. Esse ato de sintetizar, unificador
e necessário, é também  a explicação
para a possibilidade de existência dos juízos que estamos
estudando. Mas mesmo Kant acreditava que o intelecto por si só não
pode conhecer nem determinar um objeto, necessitando sempre do auxílio
da experiência e do sensível. O intelecto só pode antecipar
a forma de uma intuição sensível em geral, nunca substituir
os dados dos sentidos.

         
Mas o intelecto é capaz de pensar objetos, chamados seres inteligíveis
(noumena). Se o fenômeno é a coisa tal como ela aparece para
nós, obviamente as coisas não são apenas o que aparece,
mas também são “em si”, isto é, são de uma
maneira que nossas condições subjetivas necessárias
à percepção não as afetam. Para Kant e a tradição
metafísica, os objetos em si são inteligíveis, podendo
ser conhecidos apenas pelo intelecto puro, guardada a devida proporção,
pois não é possível uma intuição intelectual.

         
A representação  era a chave para a resposta à
dúvida de Hume. Visto que só conhecemos as representações
(quando tomo contato com uma coisa, “penso” ela), é natural que
admitamos que exista, em relação à causalidade, “o
conceito de uma tal conexão das representações no
nosso entendimento e nos juízos em geral”. O conceito de  juízo
como a união de sujeito e predicado pode ser determinado a priori.
Também é sabido a priori que não conhecemos o objeto
tal como ele é em si, mas tão somente a nossa representação
deste. Se suprimíssemos essa noção de representação,
e tentássemos perceber o objeto, não teríamos como
reconhecer nos objeto ligações entre eles. A problemática
de Hume em relação a causa-efeito é respondida com
a afirmação de que a causa e feito só é válida
no âmbito dos juízos hipotéticos, podendo ser entendido
como parte da experiência e dos fenômenos. Os juízos
racionais são universais e necessários apenas no nível
fenomênico.

 

 

 

                                                                       4-Conclusão

         
Procurei abordar, nesse breve trabalho, os principais elos de ligação
entre a problemática humeana e a interpretação kantiana,
com aspectos que foram vistos nos seminários sobre Hume do professor
Roberto Bolzani, nas aulas teóricas do professor Márcio Suzuki,
e na leitura da bibliografia exigida para o curso, além de algumas
leituras auxiliares. Espero ter mostrado os aspectos necessários
nos trechos escolhidos, o parágrafo 44 das Investigação
sobre o entendimento humano e nos capítulos 27, 28  e 29 dos
Prolegômenos a toda metafísica futura que queira se apresentar
como ciência, mas sem separar tais trechos do restante das obras.
Procurei explicitar os pontos onde a teoria de nossos autores se cruzam.
E onde encontram um limite, como por exemplo, a impossibilidade da metafísica
na visão humana (por ser impossível conhecer as causas últimas
da natureza), e a impossibilidade humana que a crítica da razão
de Kant aponta (a de não podermos ter intuição intelectual
nem conhecer as coisas-em-si-mesmas).

 

 


 
                                                                   5- Bibliografia

1. Hume, David. Investigação
sobre o entendimento humano. Coleção textos filosóficos.
Edições 70. Lisboa, Portugal. Tradução de Morão,
Artur.

2. Hume, David. Resumo de um tratado
sobre  a natureza humana, edição bilíngue. Editora
Paraula.  Tradução de Gutiérrez, Rachel e Caio,
José Sotero.

3. Kant, Immanuel. Crítica
da razão pura. Coleção Os Pensadores. Editora Nova
Cultural. São Paulo. Tradução de  Rohden, Valério
e Moosburger, Baldur.

4. Kant, Immanuel. Prolegômenos
a toda metafísica futura que queira se apresentar  como ciência.
Coleção Textos filosóficos. Edições
70. Lisboa, Portugal. Tradução de Morão, Artur.

5. Reale, Giovanni e Antiseri, Dario.
História da filosofia. Volume 2- Do Renascimento a Kant. Capítulo
XXIII- Kant e a revirada “crítica” do pensamento ocidental. Editora
Paulus. São Paulo.

 



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