“OS BONS, COMIGO”

jan 3rd, 2010 | Por | Categoria: Crônicas        

Ser bom está fora de moda, mas não em desuso. Não é valorizado e já vi gente pedindo desculpas por divulgar suas vitórias escolares. Há um medo geral de ser confundido com os nerds. Todos querem ser o boquinha torta da esperteza, a caricatura publicitária do Ligador. O grande crime é ser flagrado como trouxa. Isso diminui as chances para o exercício da bondade, ou pelo menos, sua visibilidade. Esconder-se para fazer o bem é o limbo para onde foram atiradas as pessoas boas, enquanto os vivarachos batem no peito dizendo-se paradigmas da correção.

Lembro quando essa onda começou. Éramos bonzinhos na época em que se amarrava cachorro com lingüiça. Ser mau não pegava bem. Ninguém admirava um canalha. Mas aí foi implantada a cultura da malandragem. No início era uma reação à falsidade geral e começou a ser vista como algo positivo, legal de embarcar. Mas tornou-se hegemônica e hoje é obrigatória. Ou você é malandro ou você é um abombado. Como em terra de escravos todo mundo quer ser senhor, em ambiente de espertos todos são o último grito da sacanagem.

Existem sinais evidentes do sujeito que se esforça em ser o que não é. Um dos vícios mais comuns é dirigir olhando para o lado. Enquanto o carro vai a toda velocidade, o motorista in, por dentro, torce o pescoço e olha para as garotas na parada de ônibus, para as mulheres carregando bebês, para as senhoras ao celular, para as adolescentes indo para a escola. O sujeito pode também estar ao telefone, falando aos berros ou sussurrando alguma cantada. Ele se sente admirado, o mau da turma.

O cara bom sente desconforto em prejudicar qualquer pessoa. Teme pela vida dos outros, é solidário nos momentos mais críticos, não pede reconhecimento e não finge que é o grande amigão para tirar vantagem. Ele faz o bem e não deixa pistas. É possível que o beneficiário, se for um cretino, e normalmente é, esqueça a fonte de sua atual fase de sucesso, coloque na gaveta oculta de desmemória aquele gesto salvador, achando que só ele conta.

Tenho atualmente inúmeras manifestações a meu favor e sempre tive. Fui e sou cercado por pessoas boas. Claro que topei com todo o tipo de traste, de gangsters sem limites, de falsos amigos e tudo mais. Mas a maioria se pauta pela decência. Sofrem na mão dos carrascos e quando tem poder, abrem generosamente as portas. Vimos isso muitas vezes. A quantidade de aproveitadores que cercam alguém de boa índole no poder impressiona. São moscas ao redor do doce. A vítima, que toma os outros por si, não se dá conta. Ou quando enxerga, resolve agir estrategicamente.

Não há estratégia que vença a maldade. A única coisa que funciona é chute na canela. Ou você dá um tranco ou deixa-se enredar pela súcia. Vi várias vezes pessoas boas serem erradicadas de empregos sem se dar conta. Quando viram, estavam na rua. Aí foram fazer a última visita ao local de trabalho e quem estava aboletado na sua mesa? O melhor companheiro, o sujeito amigo de todas as horas. Acontece sempre.

Mas por ser vocação, a bondade não diminui diante das decepções. A pessoa boa continua com sua grandeza diária, encantando tudo o que toca. Por ser humana, ela também comete erros, deslizes e pode até fazer maldades. Mas sente remorso, essa lixa ardida da consciência. Volta atrás, pede desculpas. E assim reforça vínculos muitos antigos, os da amizade e até do amor. Porque o amor é, no fundo, o laço eterno da bondade humana, seu fruto mais nobre.

Que fique entre nós essa percepção de que somos maioria e que não baixamos a guarda por mais que tentem nos transformar em soldados do outro lado. Combatemos daqui, onde nada nos derruba. Deixe que nos chamem de babaca. Nossa esperteza é de outra natureza e tem vida longa. Renasce sempre, rodeada pela inocência. E voa sobre o mundo distribuindo presentes em salas iluminadas por uma alegria infantil. Esse é o mito que alimenta a sobrevivência da espécie, num universo bruto, onde corre bala. Somos esse atalho que surge no meio do tiroteio.

“Por aqui”, dizem os que existem para evitar o pior. “Os bons, comigo”, como diz André Falavigna quando convoca para o pôquer no “Cambuci profundo”. Significa: os melhores, ao meu lado. Somos um timaço. O jogo vai recomeçar. Vale até blefar. Não vale é achar que bandidagem é um royal flush.

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