ABRAÇOS PARTIDOS: A GRANDE ARTE DE ALMODÓVAR
mar 21st, 2010 | Por Nei Duclós | Categoria: CinemaNei Duclós
O cinema foi destruído, feito aos pedaços. Seus restos jazem na amargura da memória, mutilada pela dor e o esquecimento. Precisa ser reconstituído, mesmo tardiamente e às cegas. As pistas são as fotos rasgadas numa cesta, os negativos escondidos num armário, um making of rodado à revelia do diretor, um roteiro esboçado por alguém que ressurge do passado, uma cena fora de sintonia, o número de um telefone guardado na gaveta.
Take 1: Um diretor que já não enxerga busca sua identidade perdida ouvindo os clássicos e reencontrado a imagem em movimento do último beijo dado na mulher amada que se foi. Suas mãos enquadram a cena granulada e distorcida. Take 2: Um produtor espiona a amante gravando suas conversas de longe e pedindo para uma leitora de lábios que faça a dublagem. Seu rosto disforme é a senilidade traída. Take 3: Uma agente desvirtua o filme do pai do seu filho e esconde o copião por 15 anos. Sua confissão mostra uma vida desperdiçada.
O filme a ser resgatado é uma comédia kitsch, a exemplo dos primeiros filmes de Almodóvar. O drama do triângulo entre o produtor, o diretor e a estrela é puro Hitchcock e filme noir, o sintoma de sua maturidade, em que vê o cinema como um soberbo espetáculo de mistério e suspense. Os raros momentos de amor são referências a grandes filmes românticos. O mais impressionante é que não se trata de uma colagem, mas de uma narrativa orgânica, que assume todos os riscos, como já foi notado pela crítica.
A grande arte de Pedro Almodóvar estabelece as camadas deste filme sobre cinema. Você vê Abraços Partidos, que por sua vez produz Garotas e Malas, com filmagens capturadas por um documentarista onipresente. O filme dentro do filme é desvirtuado, por vingança, pelo produtor traído. Mas é recuperado no final pelo autor que perdeu tudo, menos a capacidade de continuar trabalhando. Por um tempo, ele assumiu a personalidade de um roteirista com outra identidade, mas as revelações o levam de volta ao seu destino.
Assim, a obra perdida, humilhada, é a representação do cinema fundamental de Almodóvar, que busca a realização apesar do assédio da mediocridade e da superficialidade, que mantém-se fiel ao que é, um cineasta de alta voltagem, capaz de se superar a cada lançamento. Penélope Cruz detona como a secretária pobre que sobe na vida por meio da entrega a um milionário e que busca no cinema a realização que o vazio da sua vida nega. É uma grande atriz, que faz passar por sua performance os rastros de Marilyn Monroe e Audrey Hepburn, sem se entregar às imitações. É uma performática com pleno domínio do seu ofício.
Veja Abraços Partidos. Faz parte do grande cinema do nosso tempo.
Os loucos roteiros narradas por Almodóvar se encaixam muito bem na vida real…Sua sensibilidade e arte nos proporciona um olhar em que as emoções e vivências emergem ora com prazer ora com sofrimento.
Bela sacada, Mario Antonio. A criação livre se identifica mais com a realidade do que o chamado “realismo”, que não passa de alucinação.