ALÉM DA VIDA: OS OUTROS SENTIDOS DO CINEMA
mar 4th, 2011 | Por Nei Duclós | Categoria: CinemaNei Duclós
Não importa ver, mas sentir. Para isso existem os outros sentidos, como o tato, que serve para o médium interpretado por Matt Damon conseguir conexão com os espíritos; o paladar, como na cena em que o casal troca impressões sobre molhos fazendo rodízio de olhos vendados; a audição, em que se escuta os diálogos que estão sendo ditos além da vida; e o olfato, da morte depois do tsunami, ou das flores no encontro final. A visão se desdobra com a luz que a pessoa enxerga ao cruzar o umbral e os vultos que lhe aparecem quando está flutuando fora do corpo.
A visão do chamado mundo real, longe dos outros sentidos (pelo menos do uso livre da comercialização), é colocada como a prisão do cinema. Talvez por isso o visual do novo filme HereAfter (2010) de Clint Eastwood seja tão comum e recorrente. É o que o eterno presente do consumo tem a oferecer: a notícia, o evento, a cobertura, a indústria audiovisual, a sociedade do espetáculo, o turismo, as ruas, os prédios, os automóveis. A repórter de TV (Cécile De France), ao ser colhida pelo tsunami, abre a percepção para o que há além do espelho ao qual está acostumada. Não se trata mais de vídeo, mas de vida e ela não está mais disponível para a obviedade e a mesmice.
Para romper o silêncio contra tantas revelações, a repórter resolve escrever um livro sobre o cerco aos relatos e experiências da vida além da morte. A palavra reinstaura verdades omitidas pelo ilusionismo ao redor: esse enfoque é ilustrado pela presença constante de Charles Dickens, paixão literária do médium, que através do célebre autor acaba encontrando o que sempre procurou, uma companheira para que seu dom deixe de ser uma maldição. Porque o verdadeiro sofrimento é a solidão: do homem que não suporta seus poderes de contatar os mortos, do gêmeo que perde o irmão, da mãe viciada sem a guarda do filho, da ex-famosa que se vê atirada na vala comum do desemprego.
O selo da morte, a solidão maior, é rompido no momento extremo, quando a mente se liberta do corpo agonizante e penetra numa fantasmagoria de visões e sinais. O que de real há nesse mundo oculto e o que de ilusório há no mundo hegemônico que nos rodeia são os elementos que compõem a história, escrita pelo brilhante Peter Morgan (o mesmo de Frost/Nixon, A Rainha e O Último Rei da Escócia). Trata-se da disseminação de um poder que está travado em todos, já que a jornalista também vê os mortos quando é colhida pelas águas do tsunami e o garoto interage com o irmão que se foi ao capturar o boné perdido no metrô e se salvando assim de um acidente.
Os indivíduos entregues à própria sorte enfrentam a demissão num sistema econômico excludente e gerador de miséria . Os sinais dessa exclusão podem ser lidos na publicidade, quando os posters da profissional agora desempregada são substituídos por outra modelo. Os sinais exteriores de miséria espiritual estão por toda parte, enquanto as pessoas tateiam suas sensações cercados pela pressão contra o espiritualismo, ou pela diluição proporcionada pelo charlatanismo. Clint/Morgan trabalham o tema com cuidado, para não incorrer na vala comum dos preconceitos. Cercam as vivências por meio de performances sólidas dos atores encarnando protagonistas intensos e com um script que, se não aprofunda o tema, pelo menos não o desmerece.
“ Além da vida” é, como todos (desculpem a insistência), sobre cinema: quando olhar não é suficiente, é preciso apelar para os outros sentidos, tão fora da ordem quanto as experiências com a morte. O sabor de uma culinária aprendida com um mestre ou o toque revelador de outros mundos levam vidas imersas na mediocridade visual e sensorial para o choro, o desespero e finalmente o amor. Num mundo padronizado, que aprisionou o olhar, as pessoas escapam pelo que ainda está oculto, a legítima experiência sensorial da vida fora da vida. É a metáfora do que devemos perseguir: algo que transcenda o mundano e assim faça surgir um caminho mais próximo da nossa riqueza cultural, sufocada pelo comércio e a indiferença.
Pois não há consolo neste universo duro: o garoto que perde o contato da mãe não encontra conforto espiritual nem no espiritismo nem no catolicismo; o médium que tenta recompor a vida sem exercer seu dom acaba sempre sendo envolvido pelo interesse das pessoas em querer saber o que se passa com elas; o irmão do médium que quer enriquecer com a consultas é o retrato do descompasso permanente entre o status e a necessidade de ascensão social; e a jornalista bem sucedida acaba se enredando na exclusão quando tenta ser sincera. Para resgatar o que perdemos, e que se situa além dos cinco sentidos, é preciso recuperá-los, mas transformados pela decisão pessoal e a coragem.
O melhor é que tudo isso não é contado com bons sentimentos, mas com a competência de Clint, hoje um dos cineastas mais importantes do mundo. Ok, é um projeto comercial que aborda um tema que está fazendo sucesso. Mas não é só isso. Na região confusa da morte em vida, nasce a possibilidade de reencontrar o que foi para sempre perdido. Nosso olhar liberto de tanta tralha, talvez. Nossos sentidos recuperados e prontos para interagir mais com as coisas que deixamos de lado. Não mais a máxima zen do aqui e agora, mas o aqui e depois (HereAfter), pois só assim nos libertamos da presentificação imposta e poderemos palmilhar outras paragens com nossa transcendência.
Grande Clint. Sempre um bom filme para nos fazer companhia.