AS VERDADES DEFINITIVAS

dez 14th, 2009 | Por | Categoria: Crônicas        

Nei Duclós

Guardamos como tralha no quarto de despejo nossas verdades definitivas. Exauridas de tantas certezas, elas guardam um remorso, uma indignação, uma incompreensão que só a nós pertence. De vez em quando as retiramos do baú para expor nossa escassez teórica, brandida como algo irreversível. Ninguém dá bola para o que acreditamos. O que dizemos por um tempo nos parece original e profundo, mas depois vemos nossa obra disseminada e distorcida em inúmeras manifestações. Ficamos então nos perguntando: o que viemos fazer nesta passagem pela terra? Qual nossa contribuição? Nem deveríamos ter vindo, tanta é a indiferença e tantas são as provas desta precariedade.

Na literatura a dúvida nos ronda como um cão. Ele vem rosnar a nossos pés enquanto procuramos o caminho não trilhado. Passamos ao largo, como brigue mal visto em qualquer porto. Por isso, com as velas rebentadas de vento, nos deixamos levar pelas correntezas até o fim do mundo. Não há ilha que nos receba, não há navio que nos recolha, não há Netuno que suba na onda mais alta para nos vislumbrar.

Nos agarramos a um tonel de verdades acumuladas e com ele boiamos até a exaustão final. As sereias cantam para ninguém. Ulisses está olhando o horizonte e some entre os sargaços. Do tonel fazemos um tambor e nossa voz rouca imita o som dos berrantes. Um leão marinho egresso das geleiras está navegando um iceberg e parece que seu desespero é o eco de nossa voz. Desesperados, pedimos socorro. Então novamente as tribos do Mal cercam nosso corpo ferido e tiram mais um pedaço. Levam para seus rituais e incorporam o que era somente nosso à poeira estelar que forma o mundo pelo avesso. É uma longa viagem, meu irmão.

Quem disse que poderíamos imitar os deuses e fazer parte da Criação? Reproduzimos as gerações que povoaram a terra e nenhum rebento iluminado irá resgatar o que tentamos fazer neste ofício sem dono, espalhado como roupas de um varal que se partiu, no campo minado da brutalidade do Tempo. A metáfora é nosso refúgio, mas ela tem um rasgo no teto bem acima da nossa cabeça, e por ele se infiltra a tempestade interminável. Sonhamos em fazer parte do corisco que ilumina a noite e tentamos provar que somos também o trovão que atordoa o espaço. Mas em vão, somos o Silêncio, aquela palavra muda que nos acompanha desde a infância.

Para quê, meu Deus? Curvado pelo peso da idade, arrastamos os pés em corredores infinitos. Levamos embaixo do braço um poema perdido, um conto esdrúxulo, uma crônica datada. Batemos numa das portas envernizadas e ela se abre de maneira sinistra. Não há móveis dentro daquela sala e alguém lidera a tarefa dos carregadores. Eles estão dobrados sob o peso de coisas inexistentes. Estão, no fundo, arrumando nosso quarto de badulaques. Lá depositam algumas frases, alguns versos, trechos mal costurados de romances inacabados.

Fico então só cercado pelo que me restou. São as verdades definitivas que deveriam nortear minha vida. Não consigo abrir a tampa da caixa, arrancar a porta do armário, despencar o que se gruda no teto. Está tudo no seu devido lugar e me deixo ficar no piso de parquê vencido. Os tacos estão carcomidos e se tento caminhar sobre eles acabo arrancando peças do lugar, derrubando cestas cheias de miudezas. As sílabas se entretém se desmanchando sob uma goteira. Eu estava guardando esta peça para minha permanência, mas ela não dura até a próxima guerra.

Será tudo destruído por um míssil perdido. Irei junto, galopando o cometa da minha perdição. Não deixo cartas, deixo esse esforço de ser uma presença no planeta já resolvido antes e depois de mim. Nem mesmo quando visitarem as ruínas dos templos abandonados verão que me escondo sob uma enorme pedra. Lá ficarei, como um fio de cabelo amassado, um fóssil indecifrado, uma célula estéril.

Tanta aventura e nenhuma sinfonia que vibre no chão mortal da eternidade.

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