CULTURA, CARNAVAL E CINZAS

dez 18th, 2009 | Por | Categoria: Política, Trabalhos Acadêmicos        

Nei Duclós

A mão pesada do Estado na fonte do conceito e das ações da marginalidade

A) Revolta da vacina

No final do século 19, o braço pesado do Estado num país ainda cindido pela herança de quatro séculos de escravidão, a serviço de uma elite com os olhos voltados para o exterior, criou um conceito excludente de povo. A lei, o recrutamento militar forçado, o voto seletivo – reservado aos que tinham posses -, uma inexistente distribuição de renda, entre outros motivos, acuaram a população pobre, forçando-a gerar um universo próprio, avesso ao mundo oficial.
Na cidade do Rio de Janeiro, a política de erradicação dos cortiços e a decisão de sanear a cidade por meio, entre outras iniciativas, da vacina obrigatória, foi o estopim gerador do confronto entre o povo marginalizado e o poder. Esse embate deu-se por meio da arruaça, da baderna, da guerrilha urbana espontânea, que se aglutinava, muitas vezes, em torno dos criminosos, dos capoeiras, dos que detinham o poder nas ruas. Normalmente, esses eram os mesmos que, pela força, em época de eleições, definiam a vitória dos candidatos que pagavam seus serviços

O termo bilontra surge para definir o indivíduo que consegue sobreviver apesar da repressão e se safa dessa presença estatal – ou consegue usá-la em proveito próprio – por meio da esperteza e da falta de escrúpulos. Como foi dito em aula, o bilontra da virada do século, o malandro que domina a cena carioca a partir dos anos 30 e o bandido que se consolida principalmente depois de 64 – que militarizou a sociedade – são, no fundo, o mesmo personagem. A fonte é uma só. Como nota José Murilo de Carvalho: “A lei era desmoralizada de todos os lados, em todos os domínios. Essa duplicidade de mundos, mais aguda no Rio, talvez tenha contribuído para a mentalidade de irreverência, de deboche, de malícia. De tribofe” (trapaça, logro, segundo o dicionário Aurélio).

O bestializado é o termo usado pela elite intelectual, cevada no evolucionismo e no darwinismo social, para expressar seu desencanto em relação ao povo disponível no país.

Na expressão de Silvio Romero, era um povo “apático, sem iniciativa, desanimado, que imitava o estrangeiro, sofria de apatia intelectual, irritabilidade, nervosismo e superficialidade”. A idéia de “melhorar” a raça por meio da imigração européia é antiga, data de 1831, quando o biólogo francês Louis Couty disse que “o Brasil não tinha povo” e era preciso trazê-lo de fora.

Quando o americano grita “power to the people”, ele fala de “nós, as pessoas” (people, sintomaticamente, tem esse duplo sentido unificador) . Quando falamos “povo”, ocorre o contrário, estamos nos referindo a algo exterior a nós. Queremos dizer “pessoas pobres, marginalizadas”, que fazem parte de um universo que não é o nosso. O povo, no Brasil, é formado pelos “brasileiros”, que sempre são os outros.

Só que esse Brasil mestiço, índio e negro, escondido pelas veleidades européias da elite brasileira, estava vivo, batucando, dançando e cantando nas rodas de capoeira, nas festas religiosas, no carnaval, nos botecos. “Essa gente” – como se refere ao povo, até hoje, a elite bestializada pela mídia – opunha baião, xote, fandango, moda, rancho, lundu, maracatu, toadas e cordões ao universo sonoro branco das valsas, polcas, óperas. O batuque e o aboio tomavam conta do povo brasileiro enquanto a elite e os setores médios entregavam-se às operetas de uma belle époque tropical.

Mas essa dissidência não pode ser tomada ao pé da letra. É também uma época, como todas, de sincretismo e transição. O universo sonoro popular, sintetizado na Fita Magnética número 1, do curso, ao interpor valsa e opereta com pregões e modinhas, nos alerta para essa diversidade na escuta, que se expressava e era absorvida de maneira simultânea pelos artistas da época. Um exemplo do resultado são as polcas misturadas com lundús, e os tangos e valsas convivendo com cateretês na pesquisa de campo recolhida por Regis Duprat e reorquestrada por ele e Rogério Duprat. Há neste LP, inclusive, uma polca lundú.

Outros Lps escutados mostram o universo rural povoando as mentes urbanas, e os sentimentos de saudade e melancolia alternando-se com o ritmo das danças populares. O bilontra está mais relacionado com o batuque e o ritmo sincopado, mas seu isolamento é também território propício para a nostalgia. É o que atestam artistas como Maria Livia São Marcos tocando ao violão “U Capim mais mimoso”, de Catulo da Paixão Cearense, Maria Lucia Godoy e Miguel Proença interpretando “Peregrinos de Joazeiro”, anônimo e Modinha (Xisto Bahia), ou o Grupo de Serestas João Chaves, de Montes Claros interpretando modinhas como “Perdão Emília”, domínio público e “Chuá Chuá”, de Pedro Sá Pereira e Ari Pavão.

O povo brasileiro expressou-se de maneira diferente do que esperava a elite da época, gerando um universo sonoro ao mesmo tempo avesso e complementar ao que fora importada através dos teatros, das partituras e dos artistas estrangeiros. Isso faz parte da natureza do bilontra, que finge ser um bestializado para acabar impondo, por vias transversas, a sua maneira de ver e lidar com o mundo.

O bilontra é a verdadeira face do bestializado. O bilontra é o que vê (ou o que compõe e canta) e o bestializado é o que é visto (ou o que apenas escutae cala). Essa dupla percepção até hoje assombra o universo ideológico e cultural do Brasil.

Fontes:

CARVALHO, JOSÉ MURILO DE – Capítulos 4 – “Cidadãos inativos: a abstenção eleitoral” e 5 – “Bestializados ou bilontras?”, in “Os Bestializados”, SP, Companhia das Letras, 1987, pgs 66-160
LEITE, DANTE MOREIRA – Capítulo 9 “Realismo e Pessimismo”, in “O Caráter Nacional Brasileiro, 5ª edição, SP, Atica, 1992, pg. 178-259.
LP MÚSICA POPULAR BRASILEIRA DO SEC XIX NO VALE DO PARAÍBA – Regis e Rogério Duprat, Som Livre.
LP MODINHAS – Grupo de Serestas “João Chaves”, de Montes Claros, Discos Marcus Pereira.
LP SAUDADES DO BRASIL – Maria Livia São Marcos, RGE-Fermata
ALBUM DUPLO FRUCTUOSO VIANNA na interpretação de Maria Lucia Godoy e Miguel Proença – Obra seleta para canto e piano e Obra seleta para piano solo. Àrsis Promoções Artísticas Ltda.

B) Ideologia da malandragem

A ideologia da malandragem é oposta à ideologia do trabalho. O malandro é o bilontra refinado, que substitui a violência pela manha, o isolamento pelo exibicionismo. Ele justifica seu comportamento porque a nação excluiu o trabalhador nacional e, como diz Wilson Batista em Lenço no Pescoço, “eu vejo quem trabalha andar no miserê”. Seu sonho é ganhar no jogo do bicho, uma contravenção que é porta de entrada para a riqueza. Ele se opõe ao esforço disciplinador do governo em relação ao trabalhadores, que precisam ser encaminhados para a rotina da produção. Pelo menos até o Estado Novo – 1937-45, Wilson Batista e outros sambistas podiam sentir orgulho de ser vadio – e dizer isso em voz alta.

Mas toda ascensão social fundada na seletividade lotérica é fonte de tensão. Wilson Batista sabe disso e portanto cai na real quando confessa que seu grande prêmio no jogo do bicho tinha sido apenas um sonho. Esse contraponto no final da música é também um modo malandro de disfarçar a vadiagem, já que o personagem de Acertei no Milhar é chamado para o batente. Ou seja, o trabalhador tem um sonho malandro, mas continua preso à ideologia do trabalho. Sinal de que Wilson Batista, na época em que compôs essa música, 1940, já estava totalmente entregue aos ditames da censura. Dizer que tudo fora um sonho era uma maneira de driblar a censura.

No mesmo o ano, ele compôs “Ganha-se pouco mas é divertido”, onde conseguia colocar o universo da vadiagem no fim de semana. Sambar era permitido, desde que não atrapalhasse a rotina do trabalho. Vemos assim dois Wilson Batista. Um é anterior ao Estado Novo, quando usava lenço no pescoço, arrastava tamanco, levava uma navalha no bolso e passava gingando, provocando desafio – um retrato falando dos velhos capoeiras, do bilontra bruto do passado. Já em Acertei no milhar e Ganha-se Pouco ele compactuava com a ideologia do trabalho, mas de maneira malandra, pois acabava passando o seu recado. O povo trabalha, mas gosta mesmo é do fim-de-semana, pois o trabalho é fonte de desprazer, de opressão, de miséria. E também sonha em viver sem trabalhar, como os ricos. A loteria é a maneira rápida de adquirir o status que o oprime.

Numa composição interessante para esta análise – “Malandro Medroso” – Noel Rosa destaca a figura do malandro que também está presente em Lenço no Pescoço. A letra enfoca o malandro que explora mulheres, joga fora o dinheiro com jogo e bebida e foge do “coronel” – o protetor da moça. Gravado em 1930, esse samba ficou esquecido porque era o outro lado do mega- sucesso “Com que roupa.”. Diz Noel: “Eu devo, não quero negar/ mas te pagarei quando puder/ se o jogo permitir/ se a polícia consentir/ e se Deus quiser. Em 1931, João de Barro pôs letra em outro samba de Noel, “Samba da Boa Vontade”, onde diz: “Viver alegre hoje é preciso/ conserva sempre o teu sorriso/ mesmo que a vida esteja feia/ e que vivas na pinimba/ passando a pirão de areia.”

Ou seja, até 1937, o malandro pode aparecer. Começa então a atrapalhar o projeto modernista, que não contava com o surgimento da malandragem na manipulação que fazia do universo sonoro popular. O malandro escapava da ingenuidade, matéria-prima para a erudição modernista. O que chama a atenção é o descaramento do malandro, que anunciava sua vadiagem, assumindo a imagem grotesca que a elite fazia do povo.

O malandro, portanto, foi o personagem que transformou uma desvantagem numa espécie de virtude. Vale destacar que a maneira de cantar, debochada, reforçada pela oscilação do som dos metais como eterno contraponto definiu o clima de uma época, praticamente batizou Lamartine babo, salpicou de molho a voz de Mário Reis e chegou até nós, feitas as devidas ressalvas, através de João Gilberto. Há malandragem no tom que João usa para cantar.

É preciso também falar que o tema ocupou a música popular até recentemente, com a “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque e Ruy Guerra, com o sambão-jóia dos anos 70, com o sambinha chôcho de João Nogueira etc. Hugo Carvana, autor de dois filmes chamados “Vai Trabalhar Vagabundo I e II”, confessou que não teria ambiente nem clima para repetir a dose porque os anos 90 acabaram com a figura do malandro. É que ele foi substituído pelo traficante, pelo bandido com AR-15, que dita a lei na favela abandonada pelo Estado. O malandro também tentou fugir do braço pesado do Estado, mas quem partiu para a guerra foi o traficante.

Fontes:

MATOS, CLÁUDIA – ”O Samba e Seu Lugar” In “Acertei no Milhar – Malandragem e Samba no Tempo de Getúlio. RJ, Paz e Terra, 1982, pgs. 25-59.
LP O FINO DA MALANDRAGEM – com a música “Acertei no Milhar” (Wilson Batista) cantada por Jorge Veiga. Warner.
CD NOEL ROSA – FEITIÇO DA VILA – com a música “Malandro Medroso” (Noel Rosa), Selo Revivendo.
CD NOEL ROSA – INÉDITO E DESCONHECIDO” – com a música “Samba da Boa Vontade” Noel Rosa, Estúdio Eldorado M, série Memória. em A M

C) O gênio da chanchada

A paródia era um instrumento teatral comum no Brasil do século 19. A carnavalização do poder manifestava-se em relação à política e aos costumes. A música sempre ocupou posição de destaque nesse mimetismo debochado da cultura importada da Europa. As grandes companhias teatrais francesas, que estocavam a moral da época com suas ousadias, deixavam um rastro de ambigüidade num mercado cultural movimentado. Esse aspecto do teatro foi transplantado para o cinema, que dele importou artistas e idéias. A chanchada brasileira nasce dessa herança do teatro de costumes, dos espetáculos circenses e do carnaval.

A cena de Romeu e Julieta com Oscarito e Grande Otelo é um exemplo tão impactante do talento como isso foi feito que chega a ofuscar muitas outras cenas célebres da dupla. Praticamente, toda vez que se enfoca a chanchada, essa cena é obrigatoriamente lembrada. Parodiando Shakespeare – ou melhor, debochando do espetáculo dito sério sobre Shakespeare (do qual o filme de Franco Zefirelli, embora feito muitas décadas depois, é um exemplo típico) Oscarito e Grande Otelo começam introduzindo um elemento vital para a carnavalização: o homem vestido de mulher. Grande Otelo no papel de Julieta, além do mais, é negro, contrariando assim – muito tempo antes que os politicamente corretos entrassem na moda – os fetiches da cultura branca, que tem em Shakespeare seu monstro sagrado.

O homem negro no papel da Julieta branca introduz também outro elemento detonador: a personagem mulher com opinião própria. “Ela” contraria seu amado num bate boca, esculhambando de vez uma cena pretensamente amorosa. O tombo do falso casal, os trejeitos exagerados, as vozes estridentes completam a palhaçada. É importante destacar que, no contexto do filme, os dois personagens eram marginalizados do mundo teatral e faziam essa cena para provar que entendiam do riscado, pois queriam ser aproveitados no espetáculo que estava sendo encenado. Fica assim evidente que o povo, fora do circuito da cultura, força a barra por meio da carnavalização para se impor. É a sua saída.

Se em Romeu e Julieta Oscarito era apenas um “escada” de Grande Otelo, em “Melvis Prestes” ele é a estrela principal. O alvo dessa dança alucinada de um ator com mais de 50 anos é a indústria cultural, que importava música, modismos, ídolos sem nenhuma barreira. Melvis Prestes é uma paródia que afirma a nacionalidade. O estrangeiro é exposto ao ridículo, ao mesmo tempo em que o brasileiro que imita o americano também é colocado no miolo do deboche.

Não se pode chamar isso de arte vulgar. É arte da cultura da escassez, é sofisticação exposta sob o invólucro do improviso, é profundidade não reconhecida – o que é mais um elemento para a paródia e o deboche. Não é também popularesca porque não é alienada na sua apelação explícita. Ela é crítica apelando para o excesso, ela desdramatiza o consumo usando o distanciamento ator/personagem, que é feito de maneira consciente por esse gênio que é o Oscarito. A cultura acadêmica deve, portanto, render-se a ele e jamais acusá-lo, procurar entender sua arte e seu talento e não renegá-lo como artista menor.

A chanchada – um dos tantos termos criado pelos inimigos e que foi incorporada pelos que eram criticados – era um modelo a ser destruído pelo chamado cinema de arte do Cinema Novo. Lembro até hoje a reação do público que foi assistir Deus e o Diabo na Terra do Sol na minha cidade, nos anos 60 (interior do Rio Grande do Sul). Era um público cativo da chanchada e que foi assistir mais um filme brasileiro. Só que saiu berrando no meio das sessões.

Foi uma oposição brutal que espantou as platéias, as mesmas que nos anos 40 e 50 lotavam os cinemas. O Cinema Novo foi uma revanche do modernismo traído pela malandragem, que via na carnavalização um elemento de dominação das elites e dos estrangeiros sobre um povo indefeso e ingênuo. Isso não tira o mérito do melhor filme brasileiro de todos os tempos, Deus e o Diabo na Terra do Sol.

As chanchadas musicais parodiavam o cinema americano, mas era um produto tipicamente nacional. Muitas delas até hoje conservam a graça original. Muitas eram grossas, apelativas e sofriam de uma crônica indigência intelectual. Mas grandes artistas, como Oscarito e Grande Otelo, souberam, em alguns momentos, colocar a chanchada entre a grande arte da cultura brasileira.

Fontes:

Chanchadas vistas nos anos 50 no Cine-Teatro Carlos Gomes, de Uruguaiana (RS) e aulas expositivas do curso.

D) Tom e os etnocêntricos

Quando Tom Jobim morreu, as televisões americanas e européias destacaram o compositor brasileiro que tinha se inspirado na selva amazônica para fazer canções conhecidas em todo o mundo. Esse enfoque, tipicamente etnocêntrico, revela como a cultura dos países mais ricos é impenetrável em relação à complexidade cultural existente fora dos seus domínios, especialmente no Brasil. Tom Jobim foi o único compositor com quem Frank Sinatra – fetiche da mídia internacional – arriscou fazer um álbum exclusivo. Sua música, a Bossa Nova, influenciou a música americana, um fato reconhecido pelos próprios artistas de lá. Mas na hora do necrológio, ele é apenas o índio que cruzou o mar.

Essa eterna visão do paraíso é que está presente no depoimento de Henry Barraud no filme sintomaticamente intitulado “Índio de Casaca”. O mais chocante é que ele pensa estar elogiando Villa-Lobos, um compositor que não pode se equiparar a uma força da natureza, já que sua vasta obra, numerosa e complexa, é fruto de uma civilização – não reconhecida no chamado Primeiro Mundo. Comparar a aparição de Villa-Lobos à carroça de feno do filme Le Chien Andalous é de uma limitação atroz. Um francês não poderia levantar a hipótese de que Villa-Lobos não estava na carroça de feno – nem com ela se confundia. Ele estaria entre os convidados – usando, talvez, um bom chinelo para amenizar a gota.

O que não é reconhecido é que existem artistas do Terceiro Mundo capazes de fazer um trabalho de apropriação e de alta elaboração erudita a partir de uma vasta matéria-prima da realidade e da cultura popular. Isso, naturalmente, na visão etnocêntrica, é exclusivo de quem nasceu e foi criado numa nação rica. Quem, do lado de baixo do Equador, resolver trabalhar o folclore como fez Villa-Lobos, acaba sendo confundido com o próprio material que magistralmente manipula.

O tom respeitoso dos folcloristas românticos – matriz dessa visão etnocêntrica – estava relacionado apenas com os próprios povos e, em parte, com os povos do Oriente, reconhecidamente detentores de uma cultura muito mais antiga e complexa. Em relação à América, respeitava-se apenas a diversidade da fauna e da flora. Índio, povo ou elite tupiniquim jamais poderiam alcançar status cultural. A antropologia ainda não tinha irrompido com suas análises relativistas.

O toque essencialmente brasileiro dessa pequena tragédia é que Villa-Lobos assumiu o papel que lhe imputaram na França – na época, ainda uma espécie de capital da civilização ocidental. Villa-Lobos tinha berço: era filho de classe média pobre, tinha tocado em cinema para sobreviver e também fazia parte, portanto, desse universo brejeiro do Brasil do começo do século, de um povo que procurava fugir das amarguras por meio da música. Ele gostava de assustar as senhoras francesas descrevendo o prazer que sentia em comer as mãos dos macacos – uma alegoria da antropofagia exaltada mais tarde por Oswald de Andrade. Aí está um compositor erudito misturado com o mais refinado deboche popular.

Talvez Villa reconhecesse a ironia de ser tratado como índio quando tinha um sentimento de ascendência sobre o povo, como todo elitista. Ele confessou sentir inveja dos outros países que conseguiam disciplinar as massas e chegou a desenvolver e a implantar um projeto – o do canto orfeônico – que revelava essa preocupação. Mas era também de natureza ambígua. Ele conhecia o povo e se identificava com ele. Sua defesa apaixonada da inteligência dos compositores populares, numa cena mostrada no curso – quando reconheceu que eles não eram cultos, mas tinham criatividade – revela esse fato.

Também a memória emocionada de D. Nelma, da Mangueira, lembrando que ele sentava no barraco para escutar samba, é sinal dessa identificação. Era uma identificação autêntica , pois Villa tem força e permanência. O verdadeiro gênio não é fundado na mentira.

Fontes:

ORTIZ, RENATO – Notas Históricas Sobre o Conceito de Cultura Popular in “Cultura Popular – Românticos e folcloristas”, SP, PUC/SP, 1985, pgs. 1-29.
RENAULT, DELSO – A Transição Social – O Fluminense Foge à Amarguras in “Rio de Janeiro: A Vida da Cidade Refletida nos Jornais”. RJ, Civilização Brasileira,1978, pg. 15-27.
LP VILLA-LOBOS – OS DOZE ESTUDOS PARA VIOLÃO – Suite Populaire Brésilienne, com Julien Brean, RCA.
LP VILLA-LOBOS E AS CRIANÇAS VOLs.1 e 2 – Alberto Boavista, piano. Associação Brasileira dos Produtores de Disco- MEC/Funarte/ INM, EMI-Odeon. LP TONI BESSES PIANO VILLA-LOBOS, RGE-Fermata.

E) Zé Kéti foi à luta

Em 1989, Zé Kéti tinha um sonho: remontar o show Opinião. Chegou até a apresentar algumas sessões da versão tardia daquele que foi um marco da cultura brasileira. Mas Zé Kéti não tinha mais dinheiro, apoio ou prestígio, apesar de estar com a gaveta e a memória cheia de novas composições – que mantêm aquela força antiga, que foi esquecida pelas gravadoras e pelo público. Tentava mesmo arranjar financiamento. Quando ligava para as empresas, se identificava:

– Aqui é o Zé Kéti.
– Da onde? perguntava mecanicamente a secretária.
– Da música popular.

Para um empresário a quem foi visitar numa feira de negócios, apresentou-se cantando Máscara Negra. O timbre poderoso da sua voz, nos ensaios para sua versão do show, lembrava: “Foi o jornal que me disse…” Às vezes convidam Zé Kéti para dar depoimentos, mas ele não gosta de ser História, ele gosta de fazer. Por isso é malcriado, como aconteceu num especial da Cultura durante o carnaval.

Zé Kéti não pertence à pós-modernidade dos anos 90. Ele foi um artista engajado, cantou musica de protesto, colocou a cara para bater no palco na época da ditadura, quando os que hoje se dizem democratas nem eram nascidos ou se eram, estavam calados.

No meio de uma feijoada, Zé Kéti confessou-se duro, sem dinheiro e levou as mãos ao rosto.

– Minha vida é muito sofrimento.

Não foi o jornal que me disse. Foi o que aconteceu naquele ano, véspera da grande crise desencadeado por Collor, que acabou sepultando todas as esperanças de financiamento para o show de Zé Kéti, da música popular.
Mas o show não podia ser remontado. Faz parte de uma época (1964-65), quando surgiu a música de protesto. Opinião, sucesso de Zé Kéti, tinha sido feita antes e foi aproveitada de maneira que não correspondia ao seu sentido original. O personagem que canta a música não muda de opinião porque não quer sair do morro. Ele vive pertinho do céu, numa espécie de paraíso, ou seja, longe do braço pesado do Estado. Desse não-lugar ele não sai, porque uma vez, no século passado e início deste, ele foi arrancado do seu cortiço e foi preciso subir o morro para escapar da polícia. Agora ele não muda mais, tornou-se imóvel.
A cultura da esquerda identificou-se com essa imobilidade. Permanecer no mesmo lugar, não ser deslocado por um poder ilícito, que se impôs pela força, é sinal de resistência e de luta. Mas a música de Zé Kéti faz parte da linhagem romântica da música popular. Como em “Ave Maria do Morro” (Herivelto Martins), ele vive pertinho do céu. Mas a música era apenas um mote para o protesto que vinha no resto da peça, que era dito, gritado, colocado com todas as letras.

Carcará, de João do Vale, é mais explícita. O gavião do sertão não morre de fome, ele pega, mata e come. Ou seja: é um recado para o povo revoltar-se, pegar em armas, tomar posse do que é seu. Comer os borregos da baixada é como saquear um supermercado, ação que aconteceu de fato nos anos 80 em todo o Brasil.

A música de protesto inaugura uma fase idealista revolucionária na música popular, convocando as pessoas para a luta. Na época da ditadura, era proibido manifestar-se. A política estava erradicada da cidadania, que só podia se existir no teatro fechado. Mobilizar as massas pela canção era a saída. Por isso que a canção, metáfora de luta, durante o resto da década serviu para esse propósito, até explodir com “Caminhando”, de Geraldo Vandré, um hino-síntese desse movimento. O dia virá pela força da mobilização da massa, que se concentra em torno da música de protesto.

Canção é luta e foi a música popular que serviu para mobilizar a massa nos anos 80, na época das Diretas Já, quando cantou-se “Caminhando” até a exaustão. E a canção realmente abriu caminho para a redemocratização. Essa análise contradiz frontalmente o texto de Walnice Galvão – “Saco de Gatos “. Ela sustenta que a mitificação da canção propõe uma alienação e uma falsidade ideológica. “Quem sabe o canto da gente seguindo na frente prepare o dia da alegria”, previu Vandré e por essa previsão pagou caro. O dia certo e preciso de toda a gente cantar (“Louvação”, de Gilberto Gil), a canção que chama a primavera (também de Gil) é ação, é proposta de luta.

O dia que viria, anunciado e preparado pela canção popular, chegou. Mas a canção de protesto continua ativa. Quando morre Paulo Freire, canta-se “Caminhando”. E o líder dos Sem Terra propõe para o povo pegar, matar e comer (não com essas palavras, mas com o mesmo sentido). Esse é um universo sonoro que ainda pede uma análise mais detalhada e mais atualizada. Ele é mais complexo do que ao primeiro ouvido pode parecer.
Para começar, quem vai abrir a gaveta do Zé Kéti? As novas canções são de arrepiar.

Fontes:

GALVÃO, WALNICE NOGUEIRA – MMPB: Uma análise Ideológica” in “Saco de Gatos – Ensaios Críticos. SP, Duas Cidades, 1976, pg. 93-119.
Conversas pessoais com Zé Kéti, 1989.

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