HERANÇA

dez 23rd, 2010 | Por | Categoria: Crônicas        

Nei Duclós

Preocupadas com a aparência, pessoas chegadas sugerem que uma lipoaspiração não iria mal. Retribuo a gentileza dizendo que elas estão cada vez mais jovens e daqui a pouco poderão aprimorar o porte apolíneo, o nariz aquilino e a postura heráldica, preparando-se para algum cargo importante, como o de Imperador. Sou equilibrado com meus pares: vejo o melhor para contrabalançar o que eles enxergam de pior em mim.

Como evito baladas para não provocar assombros, acabo recebendo em casa a visita interessada dos velhos amigos, que chegam de olhos arregalados e saem sacudindo a cabeça. Imagino que seja a soma da angústia provocada pela curiosidade e a certeza de que não tenho mais jeito.

O mais trabalhoso é evitar que me fotografem. Quando eu estava na faixa dos 30 anos, todas as lentes fugiam de mim, agora parece que não querem mais me largar. Alguém me propôs colocar uma fantasia de panda gigante, subir numa árvore e fazer roar portando uma placa contra o aquecimento global. O objetivo seria ilustrar o cartaz de um evento em Copenhague. Expliquei que galho nenhum suporta mais a intensidade da massa corpórea. Fui aconselhado a fazer trabalho voluntário como Papai Noel, mas sou alérgico a renas.

Não posso perder minha forma tão arduamente conseguida em muita quilometragem de rede na varanda, porque sem ela não poderia curtir os Simpsons no final das manhãs. Minha neta faz questão da companhia do avô tão parecido com o trapalhão Homer. No final do episódio do dia, a graça é lembrar as cenas em que palavras hilárias relacionadas com a cintura ocupam lugar de destaque. Isso me aproxima da nova geração para desfrutar do carinho debochado de quem pesa um pouco mais de 20 quilos e treina para ser bailarina no futuro.

A vida é assim, cheia de truques. Passamos décadas acumulando o que não tem serventia, mas um dia vemos nossa descendência riscar o ar com a graciosidade do gesto. Éramos parecidos quando vislumbrávamos as maravilhas do século 21. De todos os sonhos, o menos prestigiado era exatamente o de cuidar dos rebentos da nova linhagem. Mas é ele que nos sustenta hoje com sua leveza que desfaz o peso de tanta vida, graças ao sorriso aberto na evolução de um pas de deux.

Crônica publicada no dia 14 de dezembro de 2010, no caderno Variedades do Diário Catarinense

Deixar comentário