INDIGNAÇÃO É LINGUAGEM
fev 9th, 2011 | Por Nei Duclós | Categoria: PolíticaNei Duclós
A explosão da indignação popular no Egito e na Tunísia não pertence às oposições partidárias, às ONGs, ao fundamentalismo e nem às mídias sociais ou à internet. Isso não significa que esteja desvinculada do real. Só que essa relação é mais profunda do que aparenta e projeta o futuro das revoltas. O que existe são linguagens individuais sintonizadas num poder coletivo de pressão contra os governos. Porque tudo é linguagem e nada existe fora dela. Se você reproduz a fala do poder, de qualquer lado, do governo ou não, você está aparelhado. Se você desmascara, descostura, denuncia e gera outras soluções de linguagem fora desse circuito você tem chance de ser livre.
O indivíduo se insurge quando gera uma fala de insurgência. Não algo quem remeta a metas, a grandes objetivos, ao paraíso terrestre, à utopia ou à mudança. A indignação, como se apresenta atualmente, é a quebra do jugo imposto pela linguagem. Uma ditadura é um conjunto de leis, normas, hábitos, tradições e planos. Se manifesta pela força, mas hegemonicamente pela linguagem, muito menos do que pela ação física. As pessoas estão confinadas a uma situação e não conseguem romper o círculo que ela forma ao redor de todos.
Vemos isso na situação brasileira. Temos uma ditadura, um sistema político engessado, que valoriza o voto do grotão para derrotar a opinião pública concentrada nas grandes aglomerações urbanas. Os quadros políticos não mudam e anexam novos contingentes para repartir o butim, o dinheiro público. Para o eleitor, é oferecido duas opções: ou você vota no Sarney ou então no Sarney. Como você anula o voto ou vota a favor ou contra o Sarney, dá Sarney na ficha. Não tem erro. Tem alguém batendo em você nesta ditadura? Não. Mas o circulo se fecha cada vez mais. Não há saída. É porque a linguagem toma conta de tudo.
As revoltas antigas tinham a percepção de que é aí que mora o perigo e onde o conflito se resolve. Não é por nada que os comunistas inventaram o agitprop, sigla de Agitação e Propaganda, para convencer as massas de suas teses. As ditaduras impõem suas realidades por meia da publicidade massiva, como acontecia no tempo de Hitler e como acontece hoje no Brasil. Carros em estradas vazias comprados a prestações a perder de vista é um exemplo. A campanha Brasil para Tolos é outro. Ou aquela antiga do Brasil grande. E se há uma erupção da revolta, tome mais linguagem: caras pintadas, plano cruzado, ficha limpa, tudo cai no rema-rema da palavra e da imagem.
No Egito,o governo cortou os laços com a internet, mas parece que o Google encontrou uma janela para continuar havendo comunicação. O celular, o twitter, o facebook são importantes para a revolução das ruas, mas não é a essência dela. O núcleo do drama é a indivíduo rompendo com o circulo de poder imposto pela linguagem ditatorial. Esse laço se rompe por meio de uma decisão pessoal ou pelo exemplo alheio, na busca de pontes com os contemporâneos. Como vivemos numa sociedade de massas, conectada, o fogo se espalha de um dia para outro. Os jovens migrantes de Paris, quando incendiaram por meses os carros, também se comunicavam assim. Mas a insurgência não estava nos bits e bytes, mas nessa relação conflituosa entre a linguagem imposta e a linguagem que quer se libertar.
Fico sabendo de movimentos de indignação nacional que estão se agrupando. Se fizerem como no final da década de 70, quando a revolta gerou o PT, irá tudo por água abaixo de novo. A insurreição precisa ser radical e profunda: dentro de nós e junto com todos os que procuram rasgar as vestes que nos impuseram. Vale tudo: piada, sarcasmo, poesia, artigo, blog ou recontrablog. Pois somos o que dizemos. O que fazemos fora da linguagem perceptível não existe, não conta para a revolução.
O perigo é, feito o movimento, um grupo aguerrido ditatorial tomar as rédeas da indignação e impor outra ditadura. Por isso a briga precisa ser feia: dentro do coração bruto da palavra e seus desdobramentos. É onde se corporifica o mundo em que vivemos.