LIVROS DE MEMÓRIAS

dez 13th, 2009 | Por | Categoria: Crônicas, Livros        

Nei Duclós

Tenho predileção pelos livros de memórias, sejam quais forem. Meu Érico Verissimo favorito é Solo de Clarineta, apesar de O Continente ocupar o pódio das minhas leituras mais importantes. Mas meu favoritismo se inclina menos para os grandes memorialistas. Gosto mesmo é de memórias de pessoas que sumiram do mapa da memória coletiva, principalmente os que enfrentaram alguma guerra. Sinto grande sensação de vitória quando consigo um exemplar de um lutador muito oculto, tenha alcançado a fama um dia ou não.

Gosto de lembrar o dia em que minha professora Nanci Leonzo, da USP (e mais tarde, minha orientadora do doutorado) lamentava que não existia mais em lugar nenhum as memórias de João Alberto, o militar revolucionário dos anos 20 e mais tarde interventor em São Paulo e ministro da Era Vargas. Como eu freqüentava os sebos que existem perto das Arcadas, no centro de São Paulo, garanti que eu possuía o tesouro. A professora Nanci é uma das mais brilhantes e contundentes historiadoras do Brasil (seu livro, jamais publicado devidamente, Forças Armadas no Brasil Colonial, é um clássico). Vi como, com sua figura pequena e aparentemente frágil, ela esmagou com argumentos os historiadores militares de um seminário, sem confrontá-los, apenas exibindo a força do seu conhecimento. Pois bem: ela fez pouco do que eu disse sobre João Alberto. Deves ter o livro do João Neves da Fontoura, falou, certa de si. Esse eu também tenho, repliquei. Então me mostre, disse, me desafiando.

SETEMBRINO – Na aula seguinte levei um xerox vistoso daquelas andanças de João Alberto, o cara que se despediu da esposa e do filho pequeno em Alegrete, onde estava servindo, no ano de 1924, e foi fazer a revolução fora da cidade. Era da Artilharia e apontou o canhão para a cidade, tendo o cuidado para que as balas chegassem bem longe da família. Guardei o xerox na pasta e mostrei o original para ela. Você tem mesmo o livro! exclamou a professora. Você me empreste que eu vou xerocar. Não precisa, já xeroquei, disse eu, enquanto pegava de volta o livro precioso. Quanto custou? perguntou, objetiva. Nada, respondi, fazendo pose de cdf. Esse é um presente para a senhora. É um dos meus orgulhos.

Depois de anos procurando, li, a partir do xerox de um exemplar existente no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP (lá tem tudo!), Memórias: apontamentos para a história do Brasil, do uruguaianense Marechal Setembrino de Carvalho, o ministro da Guerra da República Velha. Sua descrição da estratégia que usou no Contestado é uma aula de História Militar. Gosto também de livros de viagem que são, praticamente, memórias, como Viagem ao Rio Grande do Sul, do Conde D’Eu, que fala detalhadamente sobre a paisagem uruguaianense antes da rendição da cidade, na guerra do Paraguai. A viagem de navio pela Lagoa dos Patos, depois a pé e a cavalo, os detalhes do percurso de Dom Pedro II (que depois usei num poema), tudo é extremamente saboroso, pois o município é visto ali de uma maneira única, e vale a pena ser lido hoje, especialmente pelos conterrâneos. Li um livro de viagens de um estrangeiro que visitou São Paulo, de onde tirei a informação que no Jaraguá, nos arredores da cidade, foi descoberto ouro no Brasil pela primeira vez. São informações que vemos ali, naquelas páginas antigas, pela primeira vez.

REVOLUÇÃO – As memórias de João Neves, que citei acima, é um esplendor: tudo sobre Porto Alegre no inicio do século vinte e final do 19, quando se formou portentosa geração de estadistas. As memórias do Almirante Custódio de Mello são exemplares na descrição de fatos que eu nunca tinha entendido antes direito. O que houve afinal na década de noventa do século 19, quando irrompeu a guerra da degola? Custódio decifra o engima. Um pequeno livro, que me custou uma nota, com fotos sobre a revolução de 1924, escrita por um padre, é uma das minhas raridades. Sob a metralha, narração tendenciosa sobre o mesmo evento, escrito por dois jornalistas, também com fotos incríveis, é outro destaque. Um dia ampliei essas fotos e fiz um seminário na Licenciatura da USP sobre essa guerra. Ninguém sabia de nada. Todo mundo acha que no Brasil nada acontece, é tudo arreglo. Houve guerra adoidado. E as memórias, tão esquecidas, daqueles guerreiros, ainda pulsam, como um sol obscuro irradiando um passado pouco compreendido.

LUSARDO – Faltou dizer o mais importante. Em 1980, quando li primeiro volume de Lusardo, o Último Caudilho, de Glauco Carneiro, é que comecei a ir atrás das memórias. Foi fácil: rastreei a bibliografia do livro de Glauco, a quem agradeci anos mais tarde pelas revelações contidas naquela obra. Para mim, Lusardo inaugura minhas leituras sobre fatos históricos. Descobri nesse livro o quanto eu nada sabia de Brasil. Glauco dá uma bela aula sobre o país na primeira metade do século 20. É claro que quando li Joseph Love em O Regionalismo Gaúcho, citado por Glauco, entre outros livros, entendi melhor o processo revolucionário que levou Vargas ao poder. Mas Lusardo é um livro fundamental, porque descreve com minúcias, num texto maravilhoso, aquele tiroteio todo. Foi muito criticado, claro. Bons escritores, que são grandes repórteres e que se debruçam sobre vidas valorosas, acabam batendo de frente na parede nua da indiferença e da idéia pronta. Mas existem nós, os leitores, gratificados por trabalhos como esse, e é isso o que conta.

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