O NOME DA INFÂNCIA É VERÃO

dez 13th, 2009 | Por | Categoria: Crônicas, Memórias        

Nei Duclós

Naquele tempo, havia paz no Brasil soberano. O calorão tomava conta das tardes à espera da carrocinha do picolé e os parentes vinham de longe para encher a casa. Os pais nos olhavam de maneira diferente, pois pegavam carona nos comentários dos que chegavam e que estavam longe das rotinas do ano enfim entregue aos braços do destino.

As noites tinham todas as estrelas e reproduzíamos no chão, com buscapés, os cometas que às vezes cruzavam o céu. Eram estrelas cadentes, mas nós gostávamos de acreditar que eram cometas. A grande eletrola tocava Liberace interpretando clássicos, música mexicana da boa, bem gritada por Miguel Aceves Mejia e música orquestrada com todas as canções maravilhosas que se perderam no espaço.

O verão era a vez da infância, que dominava as árvores, as praças e os quintais. Pés no chão, bola de meia ou de couro e roupa de linho branco para celebrar os domingos.

GUARANÁ – A casa virava um acampamento. Dormíamos em colchões dispostos como num quartel, sob chuva de travesseiros. Os quartos perdiam a identidade e a copa se enchia de muitas sessões de almoço e jantar. Falava-se alto e quando chegava a noite de Natal comíamos salada de fruta com guaraná champagne, gelatina recheada com doce de pêssego e merengue em cima (a sobremesa predileta de minha mãe), taças de vinho e quando ficávamos mais taludos, uns tragos no uísque Cavalinho Branco (vulgo White Horse) importado da Argentina, servidos em copos de cristal com finas marcas vermelhas das doses sucessivas.

A Lua gigantesca levantava-se no final da rua Bento Martins e subia lenta e pesada, até ficar do tamanho de uma moeda de dez centavos ou um cruzeiro, não lembro bem. As manchas da Lua formavam o mapa do Brasil virado de ponta cabeça. Quando me falaram mais tarde que elas lembravam o dragão atacando São Jorge, achei um absurdo. A lua cheia do verão, quando estava no zênite, era a imagem da moeda que regia o país que nos criou.

Nossa casa era a última da rua asfaltada. Depois de nós, o povaréu, nosso amigo. Lutávamos, jogávamos, corríamos. Os calções largos, as cabeças peladas (pois criança não podia deixar cabelo crescer, era a marca da submissão da infância). Mas éramos livres com nossos cocos raspados e voltávamos tarde da noite, levando bronca porque a janta esfriava e meu pai não permitia que as refeições fossem feitas sem que todos estivessem juntos. Herança da formação militar, a hora do rancho era sagrada. Tomar banho, colocar a camisa, se pentear, para só então sentar na grande mesa onde se compartilhava a comida generosa.

ALGAZARRA – Não lembro dos meus pesadelos nas noites de verão. Talvez nunca os tenha tido. Acordava com os pássaros fazendo algazarra no cinamomo do pátio e havia sempre um convite para um programa imperdível. Descer até o rio e catar pedras redondas, pescar as piavas que assobiavam na linha ao serem fisgadas, ou mesmo acumular lambaris que mais tarde eram escamados, limpos e fritos em frigideira quente.

Passeios até a Gruta, puxando carrinho com os víveres para passar o dia. Caminho puxado que pegava cinco quilômetros de estrada e guardava lá o banho proibido, porque era perigoso, segundo minha mãe, que tinha medo de água a céu aberto, fonte de tantas aflições naquela rede hidrográfica que engoliu pescadores, maridos, filhos e todos que se aventurasse não só em corredeiras, como em sangas e águas paradas de lagoas lodosas.

Na Gruta comíamos bolacha Maria com goiabada e refrigerante. Pescávamos alguma coisa e voltávamos já no escurecer. Está escurando, dizia eu, medroso diante do mistério da noite e seu breu eterno. O verão só fazia sentido com um monte de gente. Se alguém viajasse, era tido como traidor e muito mal recebido na volta. Eu mesmo quando fiquei fora um janeirão inteiro para conhecer o mar, ao retornar fui espancado para aprender o que era bom para a tosse.

As brigas se sucediam sem parar. Socos, pedradas, rasteiras, choros, gritos e macheza sem fim. Terra de meninos ingratos, duros, violentos, que se reuniam em bandos e se enfrentavam para disputar os territórios violados. Mas não havia transgressão. Os bandidos ficavam em outro lugar, longe, e eram recolhidos pelo jipe da polícia que, diziam, enterrava gente viva. Nasceu aí meu medo de policial. Ficava imaginando a terra descendo sobre meus gritos, o socorro que não vinha e aquelas fardas que faziam o pior dos serviços. Esse terror tornou-se real mais tarde, quando 1964 acabou com o país.

FAÍSCAS – Desse pesadelo ainda não acordamos. Aguardo a volta do Brasil, que será recebido no portal por minha mãe, sempre tão carinhosa na sua inteligência falante e prudente. O país será eu, filho pródigo de volta à bonança da memória, a espargir pequenas faíscas de estrelas na calçada tomada pela infância. A Lua também me receberá como a um filho. E estaremos ainda todos vivos, libertos da fúria que nos cercou e que fez uma guerra inútil por todo esse tempo. Porque o Brasil é o que foi criado pelas gerações que doaram seus corpos insubmissos à terra que tornou-se uma nação eterna.

Volta, Brasil, junto com as crianças que nascem agora. Devolve essa alegria ao homem feito, que se aproxima do norte da própria vida escutando ainda as canções que jamais morrerão.

Deixar comentário