THE FRONT PAGE: ATUALIDADE DE UM CLÁSSICO

jul 27th, 2011 | Por | Categoria: Cinema        

Nei Duclós

Peças de teatro dão bons filmes. O principal está garantido: diálogos e roteiro. Basta criar em cima e isso na mão de um mestre como Billy Wilder se transforma num material explosivo e de grande atualidade. A peça A Primeira Página, de 1928, de Ben Hecht, já tinha gerado um filme em 1931, dirigido por Lewis Milestone e indicado para três Oscar, quando o Mestre decidiu refilmá-la em 1974. Convocou uma dupla que ficou antológica no cinema, Jack Lemmon, como o repórter Hildy que tenta escapar, em vão, do ogro,seu editor Walter Burns, interpretado por Walter Matthau.

Hoje, quando os jornais fuleiros de Robert Murdoch são flagrados no crime dos grampos, este filme sobre jornalismo marrom ganha sobrevida como referência obrigatória. Com um detalhe: para Billy Wilder não existia jornalismo marrom, as barbaridades que se cometem no filme são a imprensa, ponto. Seus profissionais são cuspidos por uma prostituta e todas as versões são distorcidas até o escândalo total, compactuado pelo sistema de poder que a usa, mas é também sua vítima e sofre de chantagem. A falta de escrúpulos para obter a informação é a mesma que se dá o direito de desvirtuá-la, conforme o veículo.

Esse enfoque destaca não a matéria, mas a manchete e o lead, ditados aos berros pelo chefe da redação. Hoje seria a notinha ou a chamada na rede, divulgada com pressa para superar a concorrência. “Isso vai dar capa” seria uma tradução mais apropriada do que “A Primeira Página”. O repórter serve para dourar a pílula com seu talento histriônico e fornecer o mote para a chamada principal. O editor precisa do talento do seu profissional que tenta escapar para a publicidade (hoje não precisa, já que o jornalismo foi devorado pelo marketing), e faz de tudo para romper seus planos de casamento com uma pianista de cinema, interpretada por uma jovem e bela Susan Sarandon. O Examiner precisa algo exclusivo sobre o enforcamento de um assassino que matou um guarda negro em véspera de eleições e isso só Hildy poderá conseguir.

Baixaria, falta de coleguismo, transgressão da lei, perseguição política, uso da mídia para as eleições, mentiras, calúnias, ficções, ao contrário do que é estampado nos jornais, são a verdade dos fatos, que se desenrolam nos bastidores e que é a matéria do filme. Temos então a reportagem, que é o cinema diante de nós, flagrando a falcatrua, a imprensa e suas artimanhas para conseguir ludibriar o público (donas de casa e esposas de taxistas, segundo o script) e vender jornal. Existe algo mais atual? Vamos lembrar que até títulos tradicionais e que gozavam de grande prestígio foram engolfados pela miséria murdochista e tudo se transformou numa mixórdia sem fim que desaguou no crime de grampear personalidades e celebridades em função do aumento da tiragem.

O destino dos personagens, estampado no final do filme, revela muita coisa sobre as intenções de Billy Wilder. O casal formado pelo bandido (hilário e romântico, interpretado pelo baixinho magricela Austin Pendleton), que conseguiu o indulto, e a prostituta (Carol Burnett, talvez a maior performance de overacting do cinema) que o acolheu quando estava ferido, monta um restaurante de comida natural. Hildy não casa e volta ao Examiner para ser editor-chefe, enquanto sua noiva casa e tem três filhas, uma chamada… Hildy. O casal gay formado pelo colunista social veterano e o jovem foca vai dividir um teto. Os repórteres acabam mesmo no copy-desk, como tinha previsto Hildy quando tentou fugir da redação. E o editor salafrário vira professor de ética na Universidade de jornalismo. Bingo! Aí temos os modismos (comida natural e aulas de ética), a eterna presença do homossexualismo nos filmes de Wilder e o triste fim dos jornalistas, aqui tratados como gado.

Mas alguma coisa se salva. A paixão pela profissão nunca foi retratada de forma tão veemente e encantadora. O editor que dorme no sofá da sua sala no jornal, o repórter que se deixa engolfar pelos acontecimentos, a contundência da imprensa diante do poder, a camaradagem, apesar das diferenças, consolidada pelo mesmo destino, que é um front de batalhas quase sempre perdidas desfilam diante de nós, veteranos deste ofício, até a lágrima total. Não existe vocação mais avassaladora, que se destaca da literatura e se identifica mais com os folhetins do que com os grandes escritores (em “A Primeira Página”, debochados até o osso). Esse sabor ameniza o travo amargo do filme, um clássico em todos os sentidos, ou seja, uma obra que merece ser estudada em classe, conceito explicado pelo professor Fernando Novais numa aula da USP.

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