O Castelo de Faria – Alexandre Herculano

O castelo de Faria

(Exemplo de fidelidade ao juramento dado)

Reinava em Portugal D. Fernando. Êste príncipe, que tanto degenerara de seus antepassados em valor e prudência, fôra obri­gado a fazer paz com os castelhanos depois de uma guerra infeliz, intentada -) sem justificados motivos, e em que se esgotaram 3) inteiramente os tesouros do Estado. A condição principal com que se pôs têrmo a esta luta desastrosa, foi que D. Fernando ca­sasse com a filha del-rei de Castela: mas, brevemente, a guerra se acendeu de novo, porque D: Fernando, namorado de D. Leonor Teles, sem lhe importar o contrato de que dependia, o repouso dos seus vassalos, a recebeu por mulher com afronta da princesa caste­lhana. Resolveu-se o pai a tomar vingança da injúria, ao que o aconselhavam ainda outros motivos. Entrou em Portugal com um exército e, recusando D. Fernando aceitar-lhe batalha, veio sôbre Lisboa e cercou-a. Não sendo nosso propósito narrar os sucessos deste sítio, volveremos o fim do discurso para o que sucedeu no Minho.

O adiantado x) de Galiza, Pedro Rodrigues Sarmento, entrou pela província de Entre-Douro-e-Minho com um grosso corpo de gente de pé e de cavalo2), enquanto a maior parte do pequeno exército português trabalhava inutilmente ou por defender ou por descercar Lisboa. Prendendo, matando e saqueando, veio o adiantado até às imediações [1]) de Barcelos, sem achar quem lhe ata­lhasse[2]) o passo; aqui, porém, saiu-lhe ao encontro D. Henrique Manuel, conde de Ceia e tio del-rei D. Fernando, com a gente que poude ajuntar. Foi terrível o conflito, mas por fim foram desbaratados os portuguêses, caindo alguns nas mãos dos adversários.

Entre os prisioneiros contava-se o alcaide-mor [3]) do castelo de Faria, Nuno Gonçalves. Saíra êste com alguns soldados para socorrer o conde de Ceia, vindo assim a ser companheiro na co­mum desgraça. Cativo, o valoroso alcaide pensava em como sal­varia o castelo del-rei, seu senhor, das mãos dos inimigos. Go­vernava-o em sua ausência um seu filho, e era de crer que, vendo o pai em ferros, de bom grado desse a fortaleza para o libertar, muito mais quando os meios de defensão escasseavam. Estas con­siderações sugeriram um ardil 4) a Nuno Gonçalves. Pediu ao adiantado que o mandasse conduzir ao pé [4]) dos muros do castelo, porque êie, com suas exortações, faria com que [5]) o filho o entre­gasse sem derramamento de sangue.

Um trôco 5) de besteiros[6]) e de homens d’armas subia a encosta do monte da Franqueira, levando no meio de si o bom alcaide Nuno Gonçalves. O adiantado de Galiza seguia atrás com o grosso da hoste *), e a costaneira ou [7]) ala direita, capitanea« por João Rodrigues de Viedma, estendia-se, rodeando os muro pelo outro lado. O exército vitorioso ia tomar posse do castel de Faria, que lhe prometera dar nas mãos o seu cativo alcaide.

De roda da barbacã alvejavam as casinhas da pequena povo ção de Faria, mas silenciosas e ermas. Os seus habitantes, apenas enxergaram ao longe as bandeiras castelhanas, que esvoaçava sôltas ao vento, e viram o refulgir cintilante das armas inimig abandonando os seus lares, foram acolher-se no terreiro que s estendia entre os muros negros do castelo e a cêrca exterior ou :1) barbacã.

Nas tôrres, os atalaias vigiavam atentamente a campanha [8]), e os almocadens [9]) corriam com a roida (;) pelas quadrelas [10]) do muro e subiam aos cubelos [11]) colocados nos ângulos das muralha

O terreiro onde se haviam acolhido os habitantes da povoa* ção, estava coberto de choupanas colmadas, nas quais se abrigava a turba dos velhos, das mulheres e das crianças, que ali se julga­vam seguros da violência de inimigos desapiedados.

Quando o trôço dos homens d’armas que levavam prêso Nuno Gonçalves, vinha já a pouca distância da barbacã, os besteiros que coroavam as ameias, encurvaram as bestas, e os homens dos enge­nhos prepararam-se para rojar sôbre os contrários os seus quadrelos [12]) e virotões 1()), enquanto o clamor e o chôro se alevantavam no terreiro, onde o povo inerme estava apinhado.

Um arauto [13]) saiu do meio da gente da vanguarda inimiga e caminhou para a. barbacã; tôdas as bestas se inclinaram para o chão, e o ranger das máquinas converteu-se num silêncio pro­fundo.

“Moço alcaide, moço alcaide!” bradou o arauto, “teu pai, ca­tivo do mui nobre Pedro Rodrigues Sarmento, adiantado de Ga­liza pelo muito excelente e temido D. Henrique de Castelo, deseja falar contigo de fora do teu castelo.”

Gonçalo Nunes, o filho do velho alcaide, atravessou então o terreiro e, chegando à barbacã, disse ao arauto. “A Virgem pro­teja meu pai: dizei-lhe que eu o espero.”

O arauto voltou ao grosso de soldados que rodeavam Nuno Gonçalves e, depois de breve demora, o tropel aproximou-se da barbacã Chegados ao pé dela, o velho guerreiro saiu dentre os seus, guardadores e falou com o filho:

“Sabes tu, Gonçalo Nunes, de quem é êste castelo, que, se­gundo o regimento de guerra, entreguei à tua guarda, quando vim em socorro e ajuda do esforçado conde de Ceia?”

“E, respondeu Gonçalo Nunes, de nosso rei e senhor D. Fer­nando de Portugal, a quem por êle fizeste preito e menagem.” [14]).

“Sabes tu, Gonçalo Nunes, que o dever de um alcaide é de2) nunca entregar, por nenhum caso, o seu castelo a inimigos, em- bora, fique enterrado debaixo das ruinas dêle?”

“Sei, ó meu pai!” prosseguiu Gonçalo Nunes em voz baixa, para não ter ouvido dos castelhanos, que começavam a murmurar: Mas não vês que a tua morte é certa, se os inimigos perce- bem que me aconselhaste a resistência?”

Nuno Gonçalves, como se não tivera ouvido as reflexões do filho, clamou então: “Pois, se o sabes, cumpre o teu dever, alcaide do castelo de Faria! Maldito por mim, sepultado sejas tu no in- ferno, como Judas o traidor, na’hora em que os que me cercam, entrassem nesse castelo sem tropeçarem no teu cadáver.”

“Morra! gritou o almocadem castelhano, morra o que nos atraiçoou.” E Nuno Gonçalves caiu no chão atravessado de muitas nipadas e lanças.

“Defende-te, alcaide!” foram as últimas palavras que êle murmurou.

Gonçalo Nunes corria como louco ao redor da barba cã, cla­mando vingança. Uma nuvem de frechas partiu do alto dos mu­ros: grande porção dos assassinos de Nuno Gonçalves mistura- 1 ram [15]) o próprio sangue com o sangue do homem leal ao seu ju­ramento.

Os castelhanos acometeram o castelo: no primeiro dia de com­bate o terreiro da barbacã ficou alastrado de cadáveres tisnados e de colmos e ramos reduzidos a cinzas. Um soldado de Pedro Ro­drigues Sarmento tinha sacudido com a ponta da sua longa chu­ça [16]) um colmeiro incendiado para dentro da cêrca: o vento suão [17] >soprava nesse dia com violência, e em breve os habitantes da po­voação que haviam buscado o amparo do castelo, pereceram jun­tamente com as suas frágeis moradas.

Mas Gonçalo Nunes lembrava-se da maldição de seu pai; lem­brava-se de que o vira moribundo no meio dos seus matadores, e ouviu todos os momentos o ultimo grito do bom Nuno Gonçalves: “Defende-te, alcaide!”

O orgulhoso Sarmento viu a sua soberba abatida diante dos torvos muros do castelo de Faria. O moço alcaide defendia-se como um leão, e o exército castelhano foi constrangido a levantar o cêrco.

Gonçalo Nunes, acabada a guerra, era altamente louvado pelo seu brioso procedimento e pelas façanhas que obrara na defensão da fortaleza, cuja guarda lhe fôra encomendada por seu pai no último transe da vida. Mas a lembrança do horrível sucesso estava sempre presente no espírito do moço alcaide. Pedindo a el-rei [18]) o desonerasse do cargo que tão bem desempenhara, foi depor ao pé dos altares a cervilheira [19]) e o saio de cavaleiro, para se cobrir com as vestes pacíficas do sacerdócio. Ministro do santuário, era com lágrimas e preces que êle podia pagar a seu pai o ter coberto de perpétua glória o nome dos alcaides de Faria.

Mas esta glória, não há hoje aí uma única pedra que a ») ateste. As relações dos historiadores foram mais duradouras que o mármore.

Alexandre Herculano

Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.


[1] se esgotaram. Vide a’ nota i) à pág. 15.

[2] atalhasse — impedisse.

[3] Alcaide-mor -— governador de uma província ou comarca, com ju­risdição civil e militar.

[4] Que diferença há entre ao pé de e aos pés de?

[5] faria com que ou faria que — vide a nota
*) à pág. 7.

[6] Besteiros — soldados armados de besta, arma antiga consistente em um arco de aço ou de madeira, cuja corda se retesava por meio de uma mola e que disparava peloiros e setas.

Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.

[7] e ou — conjução explicativa = isto ê.

9) Almocadem — palavra árabe — comandante de infantaria da mi­

lícia antiga.

[10] Quadrelas — lanços.

[11] Cubelos — torreões nas fortificações antigas.

[12] Quadrelos — setas de ferro.

[13] Arauto — mensageiro.

[14] fazer preito e menagem — prestar juramento de vassalo.

[15] Note-se a concordância do verbo com o sujeito. Vide a nota *) à pág. 30.

[16] Cliuça ou chuço — haste de pau com aguilhão de ferro.

[17] Vento suão — vento que, na Europa meridional, sopra do sul; é abaíadiço e calmoso.

[18] Note-se a elipse da conjunção que — vide a nota 2) à pág. 20.

[19] Cervilheira — capacete com aba.

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