René
Descartes
DISCURSO DO MÉTODO
para bem
conduzir a própria razão
e procurar a
verdade nas ciências
Tradução de Jacob Guinsburg e Bento Prado Jr.
Notas de Gérard Lebrun
Versão digital autorizada pelos tradutores, conforme explica Denise Bottman em seu blog
— in Obras escolhidas. Introdução
de Gilles-Gaston Granger; prefácio e notas de Gérard Lebrun; tradução de Jacob
Guinsburg e Bento Prado Jr. São Paulo: Difel – Difusão Européia do Livro, 1962
(col. Clássicos Garnier); 21973, pp. 39-103. A paginação aqui indicada (|39)
é a da 2ª ed. de 1973.
— Reproduzida na col. “Os
Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1973, pp. #;
21979, pp. 25-71. A paginação aqui indicada (|25) é a
da 2ª ed. de 1979.
— Há algumas diferenças entre as
duas edições quanto à pontuação, em especial vírgulas; estão sublinhados
os erros tipográficos da reprodução da col. “Os Pensadores”, assim como as
retificações aqui inseridas; as notas assinaladas com asterisco (*) não estavam
numeradas na ed. Difel, daí a diferença com relação à numeração das notas da
ed. da col. “Os Pensadores”.
[Original francês: Discours de
la méthode, pour bien conduire la raison, & chercher la vérité dans les
sciences … Leiden: Jan Maire, 1637; in œuvres de Descartes. Publiées par Ch. Adam et P. Tannery.
Paris: Éditions du Cerf, 1897-1913; reimpressão revista sob a dir. de B. Rochot
e P. Costabel. Paris: J. Vrin/CNRS, 1964-74, 11 vols.; reimpressão: Paris, J.
Vrin, 1996, 11 vols. O Discours encontra-se no vol. VI, pp. 1-78].
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DISCURSO DO MÉTODO
para bem
conduzir a própria razão
e procurar a
verdade nas ciências[1]
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Advertência
Se este discurso parecer demasiado longo para ser lido de uma só vez,
poder-se-á dividi-lo em seis partes. E, na primeira, encontrar-se-ão diversas
considerações atinentes às ciências. Na segunda, as principais regras do método
que o Autor buscou. Na terceira, algumas das regras da Moral que tirou desse
método. Na quarta, as razões pelas quais prova a existência de Deus e da alma
humana, que são os fundamentos de sua metafísica. Na quinta, a ordem das
questões de Física que investigou, e, particularmente, a explicação do
movimento do coração e algumas outras dificuldades que concernem à Medicina, e
depois também a diferença que há entre nossa alma e a dos animais. E, na
última, que coisas crê necessárias para ir mais adiante do que foi na pesquisa
da natureza e que razões o levaram a escrever.
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|28
|41 |29 Primeira Parte
[1] O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual
pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de
contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm.
E não é verossímil que todos se enganem a tal respeito; mas isso antes
testemunha que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é
propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em
todos os homens; e, destarte, que a diversidade de nossas opiniões não provém
do fato de serem uns mais racionais do que outros, mas somente de conduzirmos
nossos pensamentos por vias diversas e não considerarmos as mesmas coisas. Pois
não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem. As maiores
almas são capazes dos maiores vícios, tanto quanto das maiores virtudes, e os
que só andam muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o
caminho reto, do que aqueles que correm e dele se distanciam.
[2] Quanto a mim, jamais presumi que meu espírito fosse em nada mais
perfeito do que os do comum; amiúde desejei mesmo ter o pensamento tão rápido,
ou a imaginação tão nítida e distinta, ou a memória tão ampla ou tão presente,
quanto alguns outros. E não sei de quaisquer outras qualidades, exceto as que
servem à perfeição do espírito; pois, quanto à razão ou ao senso, posto que é a
única coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais, quero crer que
existe inteiramente em cada um, e seguir nisso a opinião comum dos filósofos,
que dizem não haver mais nem menos senão entre os acidentes, e não entre
as formas ou naturezas dos indivíduos de uma mesma espécie[2].
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[3] Mas não temerei dizer que penso ter tido muita felicidade de me haver
encontrado, desde a juventude, em certos caminhos, que me conduziram a
considerações e máximas, de que formei um método, pelo qual me parece que eu
tenha meio de aumentar gradualmente meu conhecimento, e de alçá-lo, pouco a
pouco, ao mais alto ponto, a que a mediocridade de meu espírito e a curta
duração de minha vida lhe permitam atingir[3]. Pois já colhi dele tais
frutos que, embora no juízo que faço de mim próprio eu procure pender mais para
o lado da desconfiança do que para o da presunção, e que, mirando com um olhar
de filósofo as diversas ações e empreendimentos de todos os homens, não haja
quase nenhum que não me pareça vão e inútil, não deixo de obter extrema |30
satisfação do progresso que penso já ter feito na busca da verdade e de
conceber tais esperanças para o futuro que, se entre as ocupações dos homens
puramente homens[4], há alguma que seja
solidamente boa e importante, ouso crer que é aquela que escolhi.
[4] Todavia, pode acontecer que me engane, e talvez não passe de um pouco
de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos sujeitos
a nos equivocar no que nos tange, e como também nos devem ser suspeitos os
juízos de nossos amigos, quando são a nosso favor. Mas estimaria muito mostrar,
neste discurso, quais os caminhos que segui, e representar nele a minha vida
como num quadro, para que cada qual possa julgá-la e que, informado pelo
comentário geral das opiniões emitidas a respeito dela, seja este um novo meio
de me instruir, que juntarei àqueles de que costumo me utilizar.
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[5] Assim, o meu desígnio não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir
para bem conduzir sua razão, mas apenas mostrar de que maneira me esforcei por
conduzir a minha. Os que se metem a dar preceitos devem considerar-se mais
hábeis do que aqueles a quem as dão; e, se falham na menor coisa, são por isso
censuráveis. Mas, não propondo este escrito senão como uma história, ou, se o
preferirdes, como uma fábula, na qual, entre alguns exemplos que se podem
imitar, se encontrarão talvez também muitos outros que se terá razão de não
seguir, espero que ele será útil a alguns, sem ser nocivo a ninguém, e que
todos me serão gratos por minha franqueza.
[6] Fui nutrido nas letras[5] desde a infância, e por
me haver persuadido de que, por meio delas, se podia adquirir um conhecimento claro
e seguro de tudo o que é útil à vida, sentia extraordinário desejo de
aprendê-las. Mas, logo que terminei esse curso de estudos, ao cabo do qual se
costuma ser recebido na classe dos doutos, mudei inteiramente de opinião. Pois
me achava enleado em tantas dúvidas e erros, que me parecia não haver obtido
outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais
a minha ignorância. E, no entanto, estivera numa das mais célebres escolas da
Europa[6], onde pensava que deviam
existir homens sapientes, se é que existiam em algum lugar da Terra. Aprendera
aí tudo o que os outros aprendiam, e mesmo, não me tendo contentado com
ciências que nos ensinavam, percorrera todos os livros que tratam daquelas que
são consideradas as mais curiosas e as mais raras, que vieram a cair em minhas
mãos. Além disso, eu conhecia os juízos que os outros faziam de mim; e não via
de modo algum que me julgassem inferior a meus condiscípulos, embora entre eles
houvesse alguns já destinados a preencher os lugares de nossos mestres. E,
enfim, o nosso século parecia-me tão florescente e tão fér- |31
til em bons espíritos como qualquer dos precedentes. O que me levava a tomar a
liberdade de julgar por mim todos os outros e de pensar que não existia
doutrina no mundo que fosse tal como dantes me haviam feito esperar.
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[7] Não deixava, todavia, de estimar os exercícios com os quais se ocupam nas
escolas. Sabia que as línguas que nelas se aprendem são necessárias ao
entendimento dos livros antigos; que a gentileza das fábulas desperta o
espírito; que as realizações memoráveis das histórias o alevantam, e que, sendo
lidas com discrição, ajudam a formar o juízo; que a leitura de todos os bons
livros é igual a uma conversação com as pessoas mais qualificadas dos séculos
passados, que foram seus autores, e até uma conversação premeditada, na qual
eles nos revelam tão-somente os melhores de seus pensamentos; que a eloqüência
tem forças e belezas incomparáveis; que a poesia tem delicadezas e ternuras
muito encantadoras; que as Matemáticas têm invenções bastante sutis, e que
podem servir muito, tanto para contentar os curiosos, quanto para facilitar
todas as artes e diminuir o trabalho dos homens; que os escritos que tratam dos
costumes contêm muitos ensinamentos e muitas exortações à virtude que são muito
úteis; que a Teologia ensina a ganhar o céu; que a Filosofia dá meio de falar
com verossimilhança de todas as coisas e de se fazer admirar pelos menos
eruditos; que a Jurisprudência, a Medicina e as outras ciências trazem honras e
riquezas àqueles que as cultivam; e, enfim, que é bom tê-las examinado a todas,
até mesmo as mais supersticiosas e as mais falsas, a fim de conhecer-lhes o
justo valor e evitar ser por elas enganado.
[8] Mas eu acreditava já ter dedicado bastante tempo às línguas, e mesmo
também à leitura dos livros antigos, às suas histórias e às suas fábulas. Pois
quase o mesmo que conversar com os de outros séculos, é o viajar. É bom saber
algo dos costumes de diversos povos, a fim de que julguemos os nossos mais
sãmente e não pensemos que tudo quanto é contra os nossos modos é ridículo e
contrário à razão, como soem proceder os que nada viram. Mas, quando empregamos
demasiado tempo em viajar, acabamos tornando-nos estrangeiros em nossa própria
terra; e quando somos demasiado curiosos das coisas que se praticavam nos
séculos passados, ficamos ordinariamente muito ignorantes das que se praticam
no presente. Além do mais, as fábulas fazem imaginar como possíveis muitos
eventos que não o são, e mesmo as histórias mais fiéis, se não mudam nem
alteram o valor das coisas para torná-las mais dignas de serem lidas, ao menos
omitem quase sempre as circunstâncias mais baixas e menos ilustres, de onde
resulta que o resto não parece tal qual é, e que aqueles que regulam os seus
costumes pelos exemplos que deles tiram estão sujeitos a cair nas
extravagâncias |45 dos paladinos de nossos romances e a
conceber desígnios que ultrapassam suas forças[7].
[9] Eu apreciava muito a eloqüência e estava enamorado da poesia; mas
pensava que uma e outra fossem dons do espírito, mais do que frutos do estudo.
Aqueles cujo raciocínio é mais vigoroso e que melhor digerem[8]
seus pensamentos, a fim de torná-los claros e inteligíveis, podem sempre
persuadir melhor os outros daquilo que pro- |32
põem, ainda que falem apenas baixo bretão[9] e nunca tenham aprendido
retórica. E aqueles cujas invenções são mais agradáveis e que as sabem exprimir
com o máximo de ornamento e doçura não deixariam de ser os melhores poetas,
ainda que a arte poética lhes fosse desconhecida[10].
[10] Comprazia-me sobretudo com as Matemáticas, por causa da certeza e da
evidência de suas razões; mas não notava ainda seu verdadeiro emprego, e,
pensando que serviam apenas às artes mecânicas, espantava-me de que, sendo seus
fundamentos tão firmes e tão sólidos, não se tivesse edificado sobre eles nada
de mais elevado[11]. Tal como, ao contrário,
eu comparava os escritos dos antigos pagãos que tratam de costumes a palácios
muito soberbos e magníficos, erigidos apenas sobre a areia e a lama. Erguem
muito alto as virtudes e apresentam-nas como as mais estimáveis entre todas as
coisas que existem no |46 mundo; mas não ensinam bastante a
conhecê-las, e amiúde o que chamam com um nome tão belo não é senão uma
insensibilidade, ou um orgulho, ou um desespero, ou um parricídio[12].
[11] Eu reverenciava a nossa Teologia e pretendia, como qualquer outro,
ganhar o céu; mas, tendo aprendido, como coisa muito segura, que o seu caminho
não está menos aberto aos mais ignorantes do que aos mais doutos e que as
verdades reveladas que para lá conduzem estão acima de nossa inteligência, não
me ousaria submetê-las à fraqueza de meus raciocínios, e pensava que, para
empreender seu exame e lograr êxito, era necessário ter alguma extraordinária
assistência do céu e ser mais do que homem.
[12] Da filosofia nada direi, senão que, vendo que foi cultivada pelos
mais excelsos espíritos que viveram desde muitos séculos e que, no entanto,
nela não se encontra ainda uma só coisa sobre a qual não se dispute, e por
conseguinte que não seja duvidosa, eu não alimentava qualquer presunção de
acertar melhor do que outros; e que, considerando quantas opiniões diversas,
sustentadas por homens doutos, pode haver sobre uma e mesma matéria, sem que jamais
possa existir mais de uma que seja verdadeira, reputava quase como falso tudo
quanto era somente verossímil[13].
[13] Depois, quanto às outras ciências, na medida em que tomam seus
princípios da Filosofia, julgava que nada de sólido se podia construir sobre
fundamentos tão pouco firmes. E nem a honra, nem o ganho que elas prometem,
eram suficientes para me incitar a aprendê-las; pois não me sentia, de modo
algum, graças a Deus, numa condição que me obrigasse a converter a ciência num
mister, para o alívio de |33 minha fortuna; e conquanto não fizesse
profissão de desprezar a glória como um cínico, fazia, entretanto, muito pouca
questão daquela que eu só podia esperar adquirir com falsos títulos. E enfim,
quanto às más doutrinas, pensava já conhecer bastante o que valiam, para não
mais estar exposto a ser enganado, nem pelas pro- |47 messas de um alquimista, nem pelas predições
de um astrólogo, nem pelas imposturas de um mágico, nem pelos artifícios ou
jactâncias de qualquer dos que fazem profissão de saber mais do que sabem.
[14] Eis por que, tão logo a idade me permitiu sair da sujeição de meus
preceptores, deixei inteiramente o estudo das letras. E, resolvendo-me a não
mais procurar outra ciência além daquela que poderia achar em mim próprio, ou
então no grande livro do mundo, empreguei o resto de minha mocidade em viajar,
em ver cortes e exércitos, em freqüentar gente de diversos humores e condições,
em recolher diversas experiências, em provar a mim mesmo nos reencontros que a
fortuna me propunha e, por toda parte, em fazer tal reflexão sobre as coisas
que se me apresentavam, que eu pudesse delas tirar algum proveito. Pois
afigurava-se-me poder encontrar muito mais verdade nos raciocínios que cada
qual efetua no que respeitante aos negócios que lhe importam, e cujo desfecho,
se julgou mal, deve puni-lo logo em seguida, do que naqueles que um homem de
letras faz em seu gabinete, sobre especulações que não produzem efeito algum e
que não lhe trazem outra conseqüência senão talvez a de lhe proporcionarem
tanto mais vaidade quanto mais distanciadas do senso comum, por causa do outro
tanto de espírito e artifício que precisou empregar no esforço de torná-las
verossímeis[14]. E eu sempre tive um
imenso desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro
nas minhas ações e caminhar com segurança nesta vida.
[15] É certo que, enquanto me limitava a considerar os costumes dos
outros homens, pouco encontrava que me satisfizesse, pois advertia neles quase
tanta diversidade como a que notara anteriormente entre as opiniões dos
filósofos. De modo que o maior proveito que daí tirei foi que, vendo uma porção
de coisas que, embora nos pareçam muito extravagantes e ridículas, não deixam
de ser comumente acolhidas e aprovadas por outros grandes povos, aprendi a não
crer demasiado firmemente em nada do que me fora inculcado só pelo exemplo e
pelo costume; e, assim, pouco a pouco, livrei-me de muitos erros que podem
ofuscar a nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a razão. |48 Mas,
depois que empreguei alguns anos em estudar assim no livro do mundo, e em
procurar adquirir alguma experiência, tomei um dia a resolução de estudar
também a mim próprio e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha
dos caminhos que devia seguir[15]. O que me deu muito mais
resultado, parece-me, do que se jamais tivesse me afastado de meu país e de
meus livros.
|34 Segunda Parte
[1] Achava-me, então, na Alemanha, para onde fora atraído pela ocorrência
das guerras, que ainda não findaram, e, quando retornava da coroação do
imperador[16] para o exército, o
início do inverno me deteve num quartel, onde, não encontrando nenhuma freqüentação
que me distraísse, e não tendo, além disso, por felicidade, quaisquer
solicitudes ou paixões que me perturbassem, permanecia o dia inteiro fechado
sozinho num quarto bem aquecido onde dispunha de todo o vagar para me entreter
com os meus pensamentos. Entre eles, um dos primeiros foi que me lembrei de
considerar que, amiúde, não há tanta perfeição nas obras compostas de várias
peças, e feitas pela mão de diversos mestres, como naquelas em que um só
trabalhou. Assim, vê-se que os edifícios empreendidos e concluídos por um só
arquiteto costumam ser mais belos e melhor ordenados do que aqueles que muitos
procuraram reformar, fazendo uso de velhas paredes construídas para outros
fins. Assim, essas antigas cidades que, tendo sido no começo pequenos burgos,
tornaram-se no decorrer do tempo grandes centros, são ordinariamente tão mal
compassadas, em comparação com essas praças regulares, traçadas por um
engenheiro à sua fantasia numa planície, que, embora considerando seus
edifícios cada qual à parte, se encontre neles muitas vezes tanta ou mais arte
que nos das outras, todavia, a ver como se acham arranjados, aqui |49 um
grande, ali um pequeno, e como tornam as ruas curvas e desiguais, dir-se-ia que
foi mais o acaso do que a vontade de alguns homens usando da razão que assim os
dispôs. E se se considerar que, apesar de tudo, sempre houve funcionários com o
encargo de fiscalizar as construções dos particulares para torná-las úteis ao
ornamento do público, reconhecer-se-á realmente que é penoso, trabalhando
apenas nas obras de outrem, fazer coisas muito acabadas. Assim, imaginei que os
povos, que, tendo sido outrora semi-selvagens e só pouco a pouco se tendo
civilizado, não elaboraram suas leis senão à medida que a incomodidade dos
crimes e das querelas a tanto os compeliu, não poderiam ser tão bem policiados[17]
como aqueles que, a começar do momento em que se reuniram observaram as
constituições de algum prudente legislador. Tal como é bem certo que o estado
da verdadeira religião, cujas ordenanças só Deus fez, deve ser
incomparavelmente melhor regulamentado do que todos os outros. E, para falar
das coisas humanas, creio que, se Esparta foi outrora muito florescente, não o
deveu à bondade de cada uma de suas leis em particular, visto que muitas eram
bastante alheias e mesmo contrárias aos bons costumes, mas ao fato de que,
havendo sido inventadas apenas por um só, tendiam todas ao mesmo fim. E assim
pensei que as ciências dos livros, ao menos aquelas cujas razões são apenas
prováveis e que não apresentam quaisquer demonstrações, pois se compuseram e
avolumaram pouco a pouco com opi- |35 niões de mui diversas pessoas, não se
acham, de modo algum, tão próximas da verdade quanto os simples raciocínios que
um homem de bom senso pode fazer naturalmente com respeito às coisas que se lhe
apresentam. E assim ainda, pensei que, como todos nós fomos crianças antes de
sermos homens, e como nos foi preciso por muito tempo sermos governados por
nossos apetites e nossos preceptores, que eram amiúde contrários uns aos
outros, e que, nem uns nem outros, nem sempre, talvez nos aconselhassem o
melhor, é quase impossível que nossos juízos sejam tão puros ou tão sólidos
como seriam, se tivéssemos o uso inteiro de nossa razão desde o nascimento e se
não tivéssemos sido guiados senão por ela[18].
|50
[2] É certo que não vemos em parte alguma lançarem-se por terra todas as casas
de uma cidade, com o exclusivo propósito de refazê-las de outra maneira, e de
tornar assim suas ruas mais belas; mas vê-se na realidade que muitos derrubam
as suas para reconstruí-las, sendo mesmo algumas vezes obrigados a fazê-lo,
quando elas correm o perigo de cair por si próprias, por seus alicerces não se
estarem muito firmes. A exemplo disso, persuadi-me de que verdadeiramente não
seria razoável que um particular intentasse reformar um Estado, mudando-o em
tudo desde os fundamentos e derrubando-o para reerguê-lo; nem tampouco reformar
o corpo das ciências ou a ordem estabelecida nas escolas para ensiná-las; mas
que, no tocante a todas as opiniões que até então acolhera em meu crédito, o
melhor a fazer seria dispor-me, de uma vez para sempre, a retirar-lhes essa
confiança, a fim de substituí-las em seguida ou por outras melhores, ou então
pelas mesmas, após tê-las ajustado ao nível da razão. E acreditei firmemente
que, por este meio, lograria conduzir minha vida muito melhor do que se a
edificasse apenas sobre velhos fundamentos, e me apoiasse tão-somente sobre
princípios de que me deixara persuadir em minha juventude, sem ter jamais
examinado se eram verdadeiros. Pois, embora notasse nesta tarefa diversas
dificuldades, não eram todavia irremediáveis, nem comparáveis às que se
encontram na reforma das menores coisas atinentes ao público. Esses grandes
corpos são demasiado difíceis de reerguer quando abatidos, ou mesmo de suster
quando abalados, e suas quedas não podem deixar de ser muito rudes. Pois,
quanto às suas imperfeições, se as têm, como a mera diversidade existente entre
eles basta para assegurar que as têm numerosas, o uso sem dúvida as suavizou, e
mesmo evitou e corrigiu insensivelmente um grande número às quais não se
poderia tão bem remediar por prudência. E, enfim, são quase sempre mais
suportáveis do que o seria a sua mudança; da mesma forma que os grandes
caminhos, que volteiam entre montanhas, se tornam pouco a pouco tão batidos e
tão cômodos, à força de serem freqüentados, que é bem melhor segui-los do que
tentar ir mais reto, escalando por cima dos rochedos e descendo até o fundo dos
precipícios.
[3] Eis por que não poderia de forma alguma aprovar esses temperamentos
perturbadores e inquietos que, não sendo cha- |51 mados, nem pelo nascimento, nem pela
fortuna, ao manejo dos negócios públicos, não deixam de neles praticar sempre,
em idéia, alguma nova reforma. E se eu pensasse haver neste escrito a menor
coisa que |36 pudesse tornar-me suspeito de tal
loucura, ficaria muito pesaroso de ter aceito publicá-lo. Nunca o meu intento
foi além de procurar reformar meus próprios pensamentos, e construir num
terreno que é todo meu. De maneira que, se, tendo minha obra me agradado bastante,
eu vos mostro aqui o seu modelo, nem por isso quero aconselhar alguém a
imitá-lo. Aqueles a quem Deus melhor partilhou suas graças alimentarão talvez
desígnios mais elevados; mas temo bastante que já este seja ousado demais para
muitos. A simples resolução de se desfazer de todas as opiniões a que se deu
antes crédito não é um exemplo que cada qual deva seguir; e o mundo compõe-se
quase tão-somente de duas espécies de espíritos, aos quais ele não convém de
modo algum. A saber, daqueles que, crendo-se mais hábeis do que são, não podem
impedir-se de precipitar seus juízos, nem ter suficiente paciência para
conduzir por ordem todos os seus pensamentos: daí resulta que, se houvessem
tomado uma vez a liberdade de duvidar dos princípios que aceitaram e de se apartar
do caminho comum, nunca poderiam ater-se à senda que é preciso tomar para ir
mais direito, e permaneceriam extraviados durante toda a vida; depois, daqueles
que, tendo bastante razão, ou modéstia, para julgar que são menos capazes de
distinguir o verdadeiro do falso do que alguns outros, pelos quais podem ser
instruídos, devem antes contentar-se em seguir as opiniões desses outros, do
que procurar por si próprios outras melhores.
[4] E, quanto a mim, estaria sem dúvida no número destes últimos, se eu
tivesse tido um único mestre, ou se nada soubesse das diferenças havidas em
todos os tempos entre as opiniões dos mais doutos. Mas, tendo aprendido, desde
o Colégio, que nada se poderia imaginar tão estranho e tão pouco crível que
algum dos filósofos já não houvesse dito; e depois, ao viajar, tendo
reconhecido que todos os que possuem sentimentos muito contrários aos nossos
nem por isso são bárbaros ou selvagens, mas que muitos usam, tanto ou mais do
que nós, a razão; e, tendo considerado o quanto um mesmo homem, com o seu mesmo
espírito, sendo criado desde a infância entre franceses ou alemães, torna-se
diferente do que seria se vivesse sempre entre chineses ou canibais; e como,
até nas modas de nossos trajes, a mesma coisa que nos agradou há |52 dez
anos, e que talvez nos agrade ainda antes de decorridos outros dez, nos parece
agora extravagante e ridícula, de sorte que são bem mais o costume e o exemplo
que nos persuadem do que qualquer conhecimento certo e que, não obstante, a
pluralidade das vozes não é prova que valha algo para as verdades um pouco
difíceis de descobrir, por ser bem mais verossímil que um só homem as tenha
encontrado do que todo um povo: eu não podia escolher ninguém cujas opiniões me
parecessem dever ser preferidas às de outrem, e achava-me como compelido a
tentar eu próprio conduzir-me.
[5] Mas, como um homem que caminha só e nas trevas, resolvi ir tão
lentamente, e usar de tanta circunspecção em todas as coisas, que, mesmo se
avançasse muito pouco, evitaria pelo menos cair. Não quis de modo algum começar
rejeitando inteiramente qualquer das opiniões que porventura se insinuaram
outrora em minha confiança, sem que aí fossem introduzidas pela razão, antes de
despender bastante tempo em elaborar o projeto da obra que ia empreender, e em
procurar o verdadeiro método para chegar ao |37 conhecimento de todas as coisas de que
meu espírito fosse capaz[19].
[6] Eu estudara um pouco, sendo mais jovem, entre as partes da Filosofia,
a Lógica, e, entre as Matemáticas, a Análise dos geômetras[20]
e a Álgebra, três artes ou ciências que pareciam dever contribuir com algo para
o meu desígnio. Mas, examinando-as, notei que, quanto à Lógica, os seus
silogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar a
outrem as coisas já se sabem, ou mesmo, como a arte de Lúlio, para falar, sem
julgamento, daquelas que se ignoram, do que para aprendê-las. E embora ela
contenha, com efeito, uma porção de preceitos muito verdadeiros e muito bons,
há todavia tantos outros misturados de permeio que são ou nocivos, |53 ou
supérfluos, que é quase tão difícil separá-los quanto tirar uma Diana ou uma
Minerva de um bloco de mármore que nem sequer está esboçado. Depois, com
respeito à Análise dos Antigos e à Álgebra dos modernos, além de se estenderem
apenas a matérias muito abstratas, e de não parecerem de nenhum uso, a primeira
permanece sempre tão adstrita à consideração das figuras que não pode exercitar
o entendimento sem fatigar muito a imaginação; e esteve-se de tal forma
sujeito, na segunda, a certas regras e certas cifras, que se fez dela uma arte
confusa e obscura que embaraça o espírito, em lugar de uma ciência que o
cultiva. Por esta causa, pensei ser mister procurar algum outro método que,
compreendendo as vantagens desses três, fosse isento de seus defeitos. E, como
a multidão de leis fornece amiúde escusas aos vícios, de modo que um Estado é
bem melhor dirigido quando, tendo embora muito poucas, são estritamente
cumpridas; assim, em vez desse grande número de preceitos de que se compõe a
Lógica, julguei que me bastariam os quatro seguintes[21],
desde que tomasse a firme e constante resolução de não deixar uma só vez de
observá-los.
[7] O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que
eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a
precipitação e a prevenção[22], e de nada incluir em
meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente[23]
a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.
|54
[8] O segundo, o de dividir cada uma |38 das dificuldades que eu examinasse em
tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor
resolvê-las[24].
[9] O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos
objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como
por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem
entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros[25].
|55
[10] E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões
tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir[26].
[11] Essas longas cadeias de razões[27], todas simples e fáceis[28],
de que os geômetras costumam servir-se para chegar às suas mais difíceis
demonstrações, haviam-me dado ocasião de imaginar que todas as coisas possíveis
de cair sob o conhecimento dos homens seguem-se umas às outras da mesma maneira
e que, contanto que nos abstenhamos somente de aceitar por verdadeira qualquer
que não o seja, e que guardemos sempre a ordem necessária |39
para deduzi-las umas das outras, não pode haver quaisquer tão afastadas a que
não se chegue por fim, nem tão ocultas que não se descubram. E não me foi muito
penoso procurar por quais devia começar, pois já sabia que haveria de ser pelas
mais simples e pelas mais fáceis de conhecer; e, considerando que, entre todos
os que precedentemente buscaram a verdade nas ciências, só os matemáticos
puderam encontrar algumas demonstrações, isto é, algumas razões certas e
evidentes, não duvidei de modo algum que não fosse pelas mesmas que eles
examinaram[29]; embora não esperasse |56 disso
nenhuma outra utilidade, exceto a de que acostumariam o meu espírito a se
alimentar de verdades e a não se contentar com falsas razões. Mas não foi meu
intuito, para tanto, procurar aprender todas essas ciências particulares que se
chamam comumente matemáticas[30]; e, vendo que, embora
seus objetos sejam diferentes, não deixam de concordar todas, pelo fato de não
conferirem nesses objetos senão as diversas relações ou proporções que
neles se encontram, pensei que valia mais examinar somente estas proporções em
geral[31], e supondo-as apenas nos
suportes que servissem para me tornar o seu conhecimento mais fácil; mesmo
assim, sem restringi-las de forma nenhuma a tais suportes, a fim de poder
aplicá-las tão melhor, em seguida, a todos os outros objetos a que conviessem.
Depois, tendo notado que, para conhecê-las, teria algumas vezes necessidade de
considerá-las cada qual em particular, e outras vezes somente de reter, ou de
compreender, várias em conjunto, pensei que, para melhor considerá-las em
particular, deveria supô-las em linhas[32], porquanto não
encontraria nada mais simples, nem |57 que pudesse representar mais distintamente à
minha imaginação e aos meus sentidos[33]; mas que, para |40
reter, ou compreender, várias em conjunto, cumpria que eu as designasse por
alguns signos, os mais breves possíveis[34], e que, por esse meio,
tomaria de empréstimo o melhor da Análise geométrica e da Álgebra, e corrigiria
todos os defeitos de uma pela outra.
[12] E como, efetivamente, ouso dizer que a exata observação desses
poucos preceitos que eu escolhera me deu tal facilidade de deslindar todas as
questões às quais se estendem essas duas ciências que, nos dois ou três meses
que empreguei em examiná-las, tendo começado pelas mais simples e mais gerais,
e constituindo cada verdade que eu achava uma regra que me servia em seguida
para achar outras, não só consegui resolver muitas que julgava antes muito
difíceis[35], como me pareceu também,
perto do fim, que podia determinar, até mesmo naquelas que ignorava, por quais
meios e até onde seria possível resolvê-las[36]. No que não vos
parecerei talvez muito vaidoso, se |58 considerardes que, havendo somente uma
verdade de cada coisa, todo aquele que a encontrar sabe a seu respeito tanto
quanto se pode saber; e que, por exemplo, uma criança instruída na aritmética,
que haja realizado uma adição segundo as regras, pode estar certa de ter
achado, quanto à soma que examinava, tudo o que o espírito humano poderia
achar. Pois, enfim, o método que ensina a seguir a verdadeira ordem e a
enumerar exatamente todas as circunstâncias daquilo que se procura contém tudo
quanto dá certeza às regras da aritmética.
[13] Mas, o que me contentava mais nesse método era o fato de que, por
ele, estava seguro de usar em tudo minha razão, se não perfeitamente, ao menos
o melhor que eu pudesse; além disso, sentia, ao praticá-lo, que meu espírito se
acostumava pouco a pouco a conceber mais nítida e distintamente seus objetos, e
que, não o tendo submetido a qualquer matéria particular, prometia a mim mesmo
aplicá-lo tão utilmente às dificuldades das outras ciências como o fizera com
as da Álgebra. Não que, para tanto, ousasse empreender primeiramente o exame de
todas as |41 que se me apresentassem, pois isso mesmo
seria contrário à ordem que ele prescreve. Porém, tendo notado que os seus
princípios deviam ser todos tomados à Filosofia, na qual não encontrava ainda
quaisquer que fossem certos, pensei que seria mister, antes de tudo, procurar
ali estabelecê-los; e que, sendo isso a coisa mais importante do mundo, e onde
a precipitação e a prevenção eram mais de recear, não devia empreender sua
realização antes de atingir uma idade bem mais madura do que a dos vinte e três
anos que eu então contava e antes de ter despendido muito tempo em preparar-me
para isso, tanto desenraizando de meu espírito todas as más opiniões que nele
acolhera até essa época como acumulando muitas experiências, para servirem em
seguida de matéria aos meus raciocínios, e exercitando-me sempre no método que
me prescrevera, a fim de me firmar nele cada vez mais.
|59 Terceira Parte
[1] E enfim, como não basta, antes de começar a reconstruir a casa onde
se mora, derrubá-la, ou prover-se de materiais e arquitetos, ou adestrar-se a
si mesmo na arquitetura, nem, além disso, ter traçado cuidadosamente o seu
projeto; mas cumpre também ter-se provido de outra qualquer onde a gente possa
alojar-se comodamente durante o tempo em que nela se trabalha; assim, para não
permanecer irresoluto[37] em minhas ações,
enquanto a razão me obrigasse a sê-lo, em meus juízos, e de não deixar de viver
desde então de o mais felizmente possível, formei para mim mesmo uma moral
provisória, que consistia apenas em três ou quatro máximas que eu quero vos
participar[38].
[2] A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, retendo
constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infância, e governando-me, em tudo o mais, segundo as opiniões mais
moderadas e as mais distanciadas do excesso, que fossem comumente acolhidas em
prática pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de viver. Pois,
começando desde então a não contar para nada com as minhas próprias opiniões,
porque eu as queria submeter todas a exame, estava certo de que o melhor a
fazer era seguir as dos mais sensatos. E, embora haja talvez, entre os persas e
chineses, homens tão sensatos como entre nós, parecia-me que o mais útil seria
pautar-me por aqueles entre os quais teria de viver; e que, para saber quais
eram verdadeiramente as suas opiniões, devia tomar nota mais daquilo que
praticavam do que daquilo que diziam; não só porque, na corrupção de nossos
costumes, há poucas pessoas que queiram dizer tudo o que acreditam, mas também
porque muitos o ignoram, por sua vez; pois, sendo a ação do pensamento, pela
qual se crê uma coisa, diferente daquela pela qual se conhece que se |42
crê |60
nela, amiúde uma se apresenta sem a outra[39]. E, entre várias
opiniões igualmente aceites, escolhia apenas as mais moderadas: tanto porque
são sempre as mais cômodas para a prática, e verossimilmente[40]
as melhores, pois todo excesso costuma ser mau, como também a fim de me desviar
menos do verdadeiro caminho, caso eu falhasse, do que, tendo escolhido um dos
extremos, fosse o outro o que deveria ter seguido. E, particularmente, colocava
entre os excessos todas as promessas pelas quais se cerceia em algo a própria
liberdade[41]. Não que desaprovasse as
leis que, para remediar a inconstância dos espíritos fracos, permitem, quando
se alimenta algum bom propósito, ou mesmo, para a segurança do comércio, algum
desígnio que seja apenas indiferente, que se façam votos ou contratos que
obriguem a perseverar nele; mas porque não via no mundo nada que permanecesse
sempre no mesmo estado, e porque, no meu caso particular, como prometia a mim
mesmo aperfeiçoar cada vez mais os meus juízos, e de modo algum torná-los
piores, pensaria cometer grande falta contra o bom senso, se, pelo fato de ter
aprovado então alguma coisa, me sentisse na obrigação de tomá-la como boa ainda
depois, quando deixasse talvez de sê-lo, ou quando eu cessasse de considerá-la
tal.
[3] Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e o mais resoluto
possível em minhas ações, e em não seguir menos constantemente do que se fossem
muito seguras as opiniões mais duvidosas, sempre que eu me tivesse decidido a
tanto[42]. |61 Imitando
nisso os viajantes que, vendo-se extraviados nalguma floresta, não devem errar
volteando, ora para um lado, ora para outro, nem menos ainda deter-se num
sítio, mas caminhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado, e não
mudá-lo por fracas razões, ainda que no começo só o acaso talvez haja
determinado a sua escolha: pois, por este meio, se não vão exatamente aonde
desejam, ao menos chegarão no fim a alguma parte, onde verossimilmente estarão
melhor do que no meio de uma floresta. E, assim como as ações da vida não
suportam às vezes qualquer delonga, é uma verdade muito certa que, quando não
está em nosso poder o discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as
mais prováveis; e mesmo, ainda que não notemos em umas mais probabilidades do
que em outras, devemos, não obstante, decidir-nos por algumas e considerá-las
depois não mais como duvidosas, na medida em que se relacionam com a prática,
mas como muito verdadeiras e muito certas, porquanto a razão que a isso nos
decidiu |43 se apresenta como tal[43]. E isto me permitiu,
desde então, libertar-me de todos os arrependimentos e remorsos que costumam
agitar as consciências desses espíritos fracos e vacilantes que se deixam levar
inconstantemente a praticar, como boas, as coisas que depois julgam más.
[4] Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim
próprio do que à fortuna, e de antes modificar os meus desejos do que a ordem
do mundo; e, em geral, a de acostumar-me a crer que nada há que esteja
inteiramente em nosso poder, exceto os nossos pensamentos, de sorte que, depois
de termos feito o melhor possível no tocante às coisas que nos são exteriores,
tudo em que deixamos de nos sair bem é, em relação a nós, absolutamente
impossível. E só isso me parecia suficiente para impedir-me, no futuro, de
desejar algo que eu não pudesse adquirir, e, assim, para me tornar contente.
Pois, inclinando-se a nossa vontade naturalmente a desejar só aquelas coisas
que nosso entendimento lhe representa de alguma forma como possíveis, é certo
que, se considerarmos todos os bens que se acham fora de nós como igualmente
afastados de nosso |62 poder, não lamentaremos mais a falta
daqueles que parecem dever-se ao nosso nascimento, quando deles formos privados
sem culpa nossa, do que lamentamos não possuir os reinos da China ou do México;
e que fazendo, como se diz, da necessidade virtude, não desejaremos mais estar
sãos, estando doentes, ou estar livres, estando na prisão, do que desejamos ter
agora corpos de uma matéria tão pouco corruptível quanto os diamantes, ou asas
para voar como as aves. Mas confesso que é preciso um longo exercício e uma
meditação amiúde reiterada para nos acostumarmos a olhar por este ângulo todas
as coisas; e creio que é principalmente nisso que consistia o segredo desses
filósofos[44], que puderam outrora
subtrair-se ao império da fortuna e, malgrado as dores e a pobreza, disputar
felicidade aos seus deuses. Pois, ocupando-se incessantemente em considerar os
limites que lhes eram prescritos pela natureza, persuadiram-se tão
perfeitamente de que nada estava em seu poder além dos seus pensamentos, que só
isso bastava para impedi-los de sentir qualquer afecção por outras coisas; e
dispunham deles tão absolutamente, que tinham neste caso especial certa razão
de se julgarem mais ricos, mais poderosos, mais livres e mais felizes que
quaisquer outros homens, os quais, não tendo esta filosofia, por mais
favorecidos que sejam pela natureza e pela fortuna, jamais dispõem assim de
tudo quanto querem[45].
[5] Enfim, para a conclusão dessa moral, decidi passar em revista as
diversas ocupações que os homens exercem nesta vida, para procurar escolher a
melhor; e, sem que pretenda dizer nada sobre as dos outros, pensei que o melhor
a fazer seria continuar naquela mesma em que me achava, isto é, empregar toda a
minha vida em cultivar minha razão, e adiantar-me, o mais que pudesse, no conhecimento
da verdade, segundo o método que me prescrevera. Eu sentira tão extremo
contentamento, desde quando começara a servir-me deste método, que não
acreditava que, nesta vida, se pudessem receber outros mais doces, nem |44
mais inocentes; e, descobrindo todos os dias, por seu meio, algumas verdades
que me pareciam assaz importantes e comumente ignoradas pelos outros homens, a
satisfação que |63 isso me dava enchia de tal modo meu
espírito, que tudo o mais não me tocava. Além do que, as três máximas precedentes
não se baseavam senão no meu intuito de continuar a me instruir: pois, tendo
Deus concedido a cada um de nós alguma luz para discernir o verdadeiro do
falso, não julgaria dever contentar-me, um só momento, com as opiniões de
outrem, se não me propusesse empregar o meu próprio juízo em examiná-las,
quando fosse tempo[46]; e não saberia
isentar-me de escrúpulos, ao segui-las, se não esperasse não perder com isso
ocasião alguma de encontrar outras melhores, caso as houvesse. E, enfim, não
saberia limitar os meus desejos, nem estar contente, se não tivesse trilhado um
caminho pelo qual, pensando estar seguro da aquisição de todos os conhecimentos
de que fosse capaz, julgava estar seguro da aquisição de todos os verdadeiros
bens que alguma vez viessem a estar em meu alcance; tanto mais que, não se
inclinando a nossa vontade a seguir ou fugir a qualquer coisa, senão conforme o
nosso entendimento lha represente como boa ou má, basta bem julgar, para bem
proceder, e julgar o melhor possível para proceder também da melhor maneira[47],
isto é, para adquirir todas as virtudes e, conjuntamente, todos os outros bens
que se possam adquirir; e, quando se está certo de que é assim, não se pode
deixar de ficar contente.
[6] Depois de me ter assim assegurado destas máximas, e de as ter posto à
parte, com as verdades da fé, que sempre foram as primeiras na minha crença,
julguei que, quanto a todo o restante de minhas opiniões, podia livremente
tentar desfazer-me delas. E, como esperava chegar melhor ao cabo dessa tarefa
conversando com os homens, do que continuando por mais tempo encerrado no
quarto aquecido onde me haviam ocorrido esses pensamentos, recomecei a viajar quando
o inverno ainda não acabara. E, em todos os nove anos seguintes, não fiz outra
coisa senão rolar pelo mundo, daqui para ali, procurando ser mais espectador do
que ator em todas |64 as comédias que nele se representam[48];
e, efetuando particular reflexão, em cada matéria, sobre o que podia torná-la
suspeita e dar ocasião de nos equivocarmos, desenraizava, entrementes, do meu
espírito todos os erros que até então nele se houvessem insinuado. Não que
imitasse, para tanto, os céticos, que duvidam apenas por duvidar e afetam ser
sempre irresolutos: pois, ao contrário, todo o meu intuito tendia tão-somente a
me certificar e remover a terra movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a
argila. O que consegui muito bem, parece-me, tanto mais que, procurando
descobrir a falsidade ou a incerteza das proposições que examinava, não por
fracas conjeturas, mas por raciocínios claros e seguros, não deparava quaisquer
tão duvidosas que delas não tirasse sempre alguma conclusão bastante certa,
quando mais |45 não fosse a de que não continha nada de
certo. E, como ao demolir uma velha casa, reservam-se comumente os escombros
para servir à construção de outra nova, assim, ao destruir todas as minhas
opiniões que julgava mal fundadas, fazia diversas observações e adquiria muitas
experiências, que me serviram depois para estabelecer outras mais certas. E,
ademais, continuava a exercitar-me no método que me prescrevera; pois não só
tomava o cuidado de conduzir geralmente todos os meus pensamentos segundo as
suas regras, como reservava, de tempos em tempos, algumas horas, que empregava
particularmente em aplicá-lo nas dificuldades de Matemática, ou mesmo também em
algumas outras que eu podia tornar quase semelhantes às das Matemáticas,
separando-as de todos os princípios das outras ciências, que eu não achava
bastante firmes, como vereis que procedi com várias que são explicadas neste
volume[49]. E assim, sem viver,
aparentemente, de forma diferente daqueles que, não tendo |65 outro
emprego senão passar uma vida doce e inocente, procuram separar os prazeres dos
vícios, e que, para gozar de seus lazeres sem se aborrecer, usam todos os
divertimentos que são honestos, não deixava de persistir em meu desígnio e de
progredir no conhecimento da verdade, mais talvez do que se me limitasse a ler
livros ou freqüentar homens de letras.
[7] Todavia, esses nove anos escoaram-se antes que eu tivesse tomado
qualquer partido, com respeito às dificuldades que costumam ser disputadas
entre os doutos, ou começado a procurar os fundamentos de alguma Filosofia mais
certa do que a vulgar[50]. E o exemplo de muitos
espíritos excelsos que, tendo alimentado precedentemente esse intento, não
haviam logrado, parecia-me, realizá-lo, levava-me a imaginar tantas
dificuldades, que não teria talvez ousado empreendê-lo tão cedo, se não
soubesse de que alguns já faziam correr o rumor de que eu já o levara a termo.
Não poderia dizer em que baseavam esta opinião; e, se para isso contribuí com
algo em meus discursos, deve ter sido por confessar neles mais ingenuamente o
que eu ignorava do que costumam fazer aqueles que estudaram um pouco, e talvez
também por mostrar as razões que tinha de duvidar de muitas coisas que os
outros consideram certas, do que por me jactar de qualquer doutrina. Mas, tendo
o coração bastante altivo para não querer que me tomassem por alguém que eu não
era, pensei que cumpria esforçar-me, por todos os meios, para tornar-me digno
da reputação que me atribuíam; e faz justamente oito anos que esse desejo me
decidiu a afastar-me de todos os lugares em que pudesse ter conhecimentos, e a
retirar-me para aqui[51], para um país onde a
longa duração da guerra levou a estabelecer tais ordens, que os exércitos nele
mantidos parecem servir apenas para que os frutos da paz sejam gozados com
tanto mais segurança, e onde, dentre a multidão um grande povo muito ativo e
mais zeloso de seus pró- |46 prios negócios, do que curioso dos
assunto dos de outrem, sem carecer de nenhuma das comodidades que existem nas
cidades mais freqüentadas, pude viver tão solitário e retirado como nos
desertos mais remotos.
|66 Quarta Parte
[1] Não sei se deva falar-vos das primeiras meditações que aí realizei;
pois são tão metafísicas e tão pouco comuns, que não serão, talvez, do gosto de
todo mundo. E, todavia, a fim de que se possa julgar se os fundamentos que
escolhi são bastante firmes, vejo-me, de alguma forma, compelido a falar-vos
delas. De há muito observara que, quanto aos costumes, é necessário às vezes
seguir opiniões, que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem
indubitáveis, como já foi dito acima; mas, por desejar então ocupar-me somente
com a pesquisa da verdade, pensei que era necessário agir exatamente ao
contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse
imaginar a menor dúvida[52], a fim de ver se, após
isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável.
Assim, porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor que não havia
coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, porque há homens
que se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples matérias de
Geometria, e cometem aí paralogismos, rejeitei como falsas, julgando que estava
sujeito a falhar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até então
por demonstrações. E enfim, considerando que todos os mesmos pensamentos que
temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que haja
nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as
coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras
que as ilusões de meus sonhos. Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu
queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que
pensava[53], fosse alguma coisa. E,
notando que esta verdade: eu penso, logo existo[54],
era tão firme e tão certa que |67 todas as mais extravagantes suposições dos
céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem
escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava.
[2] Depois, examinado com atenção o que eu era, e vendo que podia supor
que não tinha corpo algum e que não havia qualquer mundo, ou qualquer lugar
onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao
contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras
coisas, seguia-se mui evidente e mui certamente que eu existia; ao passo que,
se apenas houvesse cessado de pensar, embora tudo o mais que alguma vez
imaginara fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de crer que |47
eu tivesse existido; compreendi por aí que eu era uma substância cuja essência
ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum
lugar, nem depende de qualquer coisa material. De sorte que esse eu, isto é, a
alma[55], pela qual sou o que
sou, é inteiramente distinta do corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do
que ele, e, ainda que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é.
[3] Depois disso, considerei em geral o que é necessário a uma proposição
para ser verdadeira e certa; pois, como acabava de encontrar uma que eu sabia
ser exatamente assim, pensei que devia saber também em que consiste essa
certeza[56]. E, tendo notado que
nada há no eu penso, logo existo, que me assegure de que digo a verdade,
exceto que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir[57],
julguei poder tomar por regra geral |68 que as coisas que concebemos mui clara e mui
distintamente são todas verdadeiras, havendo apenas alguma dificuldade em notar
bem quais são as que concebemos distintamente.
[4] Em seguida, tendo refletido sobre aquilo que eu duvidava, e que, por
conseqüência, meu ser não era totalmente perfeito, pois via claramente que o
conhecer é perfeição maior do que o duvidar, deliberei procurar de onde
aprendera a pensar em algo mais perfeito do que eu era; e conheci, com evidência,
que devia ser de alguma natureza que fosse de fato mais perfeita. No
concernente aos pensamentos que tinha de muitas outras coisas fora de mim, como
do céu, da terra, da luz, do calor e de mil outras, não me era tão difícil
saber de onde vinham, porque, não advertindo neles nada que me parecesse
torná-los superiores a mim, podia crer que, se fossem verdadeiros, seriam
dependências de minha natureza, na medida em que esta possuía alguma perfeição;
e se não o eram, que eu os tinha do nada, isto é, que estavam em mim pelo que
eu possuía de falho. Mas não podia acontecer o mesmo com a idéia de um ser mais
perfeito do que o meu; pois tirá-la do nada era manifestamente impossível; e,
visto que não há menos repugnância em que o mais perfeito seja uma conseqüência
e uma dependência do menos perfeito do que em admitir que do nada procede
alguma coisa, eu não podia tirá-la tampouco de mim próprio. De forma que
restava apenas que tivesse sido posta em mim por uma natureza que fosse
verdadeiramente mais perfeita do que a minha, e que mesmo tivesse em si todas
as perfeições de que eu poderia ter alguma idéia, isto é, para explicar-me numa
palavra, que fosse Deus[58]. A |48
isso acrescentei que, dado que conhecia algumas perfeições que não possuía, eu
não era o único ser que existia (usarei aqui livremente, se vos aprouver,
alguns termos da Escola); mas que devia necessariamente haver algum outro mais
perfeito, do qual eu dependesse e de quem eu tivesse recebido |69 tudo
o que possuía[59]. Pois, se eu fosse só e
independente de qualquer outro, de modo que tivesse recebido, de mim próprio,
todo esse pouco pelo qual participava do Ser perfeito, poderia receber de mim,
pela mesma razão, todo o restante que sabia faltar-me, e ser assim eu próprio
infinito, eterno, imutável, onisciente, todo-poderoso, e enfim ter todas as
perfeições que podia notar existirem em Deus. Pois segundo os raciocínios que acabo de fazer, para conhecer a natureza de Deus, tanto
quanto a minha o era capaz, bastava considerar, acerca de todas as coisas de
que achava em mim qualquer idéia, se era ou não perfeição possuí-las, e estava
seguro de que nenhuma das que eram marcadas por alguma imperfeição existia
nele, mas que todas as outras existiam. Assim, eu via que a dúvida, a
inconstância, a tristeza e coisas semelhantes não podiam existir nele, dado que
eu próprio estimaria muito estar isento delas. Além disso, eu tinha idéias de
muitas coisas sensíveis e corporais; pois, embora supusesse que estava sonhando
e que tudo quanto via e imaginava era falso, não podia negar, contudo, que as
idéias a respeito não existissem verdadeiramente em meu pensamento; mas, por já
ter reconhecido em mim mui claramente que a natureza inteligente é distinta da
corporal, considerando que toda a composição testemunha dependência, e que a
dependência é manifestamente um defeito[60], julguei por aí que não
podia ser uma perfeição em Deus o ser composto dessas duas naturezas, e que,
por conseguinte, ele não o era[61], mas que, se haviam
alguns corpos no mundo, ou então algumas inteligências, ou outras naturezas,
que não fossem inteiramente perfeitos, seu ser deveria depender do poder de
Deus, de tal sorte que não pudessem subsistir sem ele um só momento[62].
|70
[5] Quis procurar, depois disso, outras verdades, e tendo-me proposto o objeto
dos geômetras, que eu concebia como um corpo contínuo[63],
ou um espaço infinitamente extenso em comprimento, largura e altura ou
profundidade, divisível em diversas partes que podiam ter diferentes figuras e
grandezas, e ser movidas ou transpostas de todas as maneiras, pois os geômetras
supõem tudo isto em seu objeto, percorria algumas de suas mais simples |49
demonstrações. E, tendo notado que essa grande certeza, que todo o mundo lhes
atribui, se funda apenas no fato de serem concebidas com evidência,
segundo a regra que há pouco expressei, notei também que nada havia nelas que
me assegurasse a existência de seu objeto. Pois, por exemplo, eu via muito bem
que, supondo um triângulo, cumpria que seus três ângulos fossem iguais a dois
retos; mas, apesar disso, nada via que garantisse haver no mundo
qualquer triângulo. Ao passo que, voltando a examinar a idéia que tinha de um Ser
perfeito, verificava que a existência estava aí inclusa, da mesma forme como na
de um triângulo está incluso serem seus três ângulos iguais a dois retos, ou na
de uma esfera serem todas as suas partes igualmente distantes do seu centro, ou
mesmo, ainda mais evidentemente; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo[64]
que Deus, que é esse Ser perfeito, é ou existe, quanto sê-lo-ia qualquer
demonstração de Geometria.
[6] Mas o que leva muitas pessoas a se persuadirem de que há dificuldade
conhecê-lo, e mesmo também em conhecer o que é sua alma, é o fato de nunca
elevarem o espírito além das coisas sensíveis e de estarem de tal forma
acostumados a nada considerar senão imaginando, que é uma forma de pensar
particular às |71 coisas materiais, que tudo quanto não é
imaginável lhes parece não ser inteligível. E isto é assaz manifesto pelo fato
de os próprios filósofos terem por máxima, nas escolas, que nada há no
entendimento que não haja estado primeiramente nos sentidos[65],
onde, todavia, é certo que as idéias de Deus e da alma jamais estiveram. E me
parece que todos os que querem usar a imaginação para compreendê-las procedem
do mesmo modo que se, para ouvir os sons ou sentir os odores, quisessem
servir-se dos olhos; exceto com esta diferença ainda: que o sentido da vista
não nos garante menos a verdade de seus objetos do que os do olfato ou da
audição; ao passo que a nossa imaginação ou os nossos sentidos nunca poderiam
assegurar-nos de qualquer coisa, se o nosso entendimento não interviesse.
[7] Enfim, se há ainda homens que não estejam bem persuadidos da
existência de Deus e da alma, com as razões que apresentei, quero que saibam
que todas as outras coisas, das quais se julgam talvez certificados, como a de
terem um corpo, haver astros e uma terra, e coisas semelhantes, são ainda menos
certas. Pois, embora se possua dessas coisas uma certeza moral, que é de tal
ordem que, exceto sendo-se extravagante, parece impossível pô-la em dúvida;
todavia, quando se trata da certeza metafísica[66], não se pode negar, a
não ser que sejamos desarrazoados, que é motivo suficiente, para |50
não estarmos inteiramente seguros a respeito, o fato de se advertir que podemos
do mesmo modo imaginar, quando adormecidos, que temos outro corpo, que vemos
outros astros e outra terra, sem que na realidade assim o seja. Pois, de onde
sabemos que os pensamentos que ocorrem em sonhos são mais falsos do que os
outros, se muitos não são amiúde menos vivos e nítidos? E, ainda que os
melhores espíritos estudem o caso tanto quanto lhes aprouver, não creio que
possam dar qualquer razão que seja suficiente para desfazer essa dúvida, se não
pressupuserem a existência |72 de Deus. Pois, em primeiro lugar, aquilo
mesmo que há pouco tomei como regra, a saber, que as coisas que concebemos mui
clara e mui distintamente são todas verdadeiras, não é certo senão ser porque
Deus é ou existe, e é um ser perfeito, e porque tudo o que existe em nós nos
vem dele. Donde se segue que as nossas idéias ou noções, sendo coisas reais, e
provenientes de Deus em tudo em que são claras e distintas, só podem por isso
ser verdadeiras. De sorte que, se temos muitas vezes outras que contêm
falsidade, só podem ser as que possuem algo de confuso e obscuro, porque nisso
participam do nada, isto é, são assim confusas em nós, porque nós não somos de
todo perfeitos. E é evidente que não repugna menos admitir que a falsidade ou a
imperfeição procedam de Deus, como tal, do que admitir que a verdade ou a
perfeição procedam do nada. Ma, se não soubéssemos de modo algum que tudo
quanto existe em nós de real e verdadeiro provém de um ser perfeito e infinito,
por claras e distintas que fossem nossas idéias, não teríamos qualquer razão
que nos assegurasse que elas possuem a perfeição de serem verdadeiras[67].
[8] Ora, depois que o conhecimento de Deus e da alma nos tenha, assim,
dado certeza dessa regra, é muito fácil compreender que os sonhos que
imaginamos quando dormimos não devem, de modo algum, levar-nos a duvidar da
verdade dos pensamentos que temos quando acordados. Pois, se acontecesse que,
mesmo dormindo, tivéssemos alguma idéia muito distinta, como, por exemplo, que
um geômetra inventasse qualquer nova demonstração, o sono deste não a impediria
de ser verdadeira. E, quanto ao erro mais comum de nossos sonhos, que consiste
em nos representarem diversos objetos tal como fazem nossos sentidos
exteriores, não importa que ele nos dê ocasião de desconfiar da verdade de tais
idéias, porque estas também podem nos enganar repetidas vezes, sem que
estejamos dormindo, como sucede quando os que têm icterícia vêem tudo da cor
amarela, ou quando os astros ou outros corpos fortemente afastados de nós se
nos afiguram muito menores do que são. Pois,
enfim, quer |73 estejamos em vigília, quer dormindo, nunca
nos devemos deixar persuadir senão pela evidência de nossa razão[68].
E deve-se observar que digo de nossa razão e de modo algum de nossa imaginação,
ou de nossos sentidos. Porque, embora |51 vejamos o sol mui claramente, não devemos
julgar por isso que ele seja, apenas, da grandeza que o vemos; e bem podemos
imaginar distintamente uma cabeça de leão enxertada no corpo de uma cabra, sem
que devamos concluir, por isso, que no mundo há uma quimera; pois a razão não
nos dita que tudo quanto vemos ou imaginamos, assim, seja verdadeiro, mas nos
dita realmente que todas as nossas idéias ou noções devem ter algum fundamento
de verdade; pois não seria possível que Deus, que é todo perfeito e verídico,
as houvesse posto em nós sem isso. E, pelo fato de nossos raciocínios jamais
serem tão evidentes nem tão completos durante o sono como durante a vigília,
ainda de que às vezes nossas imaginações sejam tanto ou mais vivas e expressas,
ela nos dita também que, não podendo nossos pensamentos serem inteiramente
verdadeiros, porque não somos de todo perfeitos, tudo o que eles encerram de
verdade deve encontrar-se infalivelmente naquele que temos quando acordados,
mais do que em nossos sonhos.
Quinta Parte
[1] Gostaria muito de prosseguir e de mostrar aqui toda a cadeia de
outras verdades que deduzi dessas primeiras. Mas, dado que, para tal efeito,
seria agora necessário que falasse de muitas questões controvertidas entre os
doutos, com os quais não desejo indispor-me, creio que será melhor que eu me
abstenha e somente diga, em geral, quais elas são, a fim de deixar que os mais
sábios julguem se seria útil que o público fosse a esse respeito mais
particularmente informado. Permanecia sempre firme na resolução que tomara de
não supor qualquer outro princípio, exceto aquele de que acabo de me servir
para demonstrar a existência de Deus e da alma, e de não acolher |74 coisa
alguma por verdadeira que não me parecesse mais clara e mais certa do que me
haviam parecido anteriormente as demonstrações dos geômetras. E, no entanto,
ouso dizer que não só encontrei meio de me satisfazer em pouco tempo no tocante
a todas as principais dificuldades que costumam ser tratadas na Filosofia, mas
também que notei certas leis que Deus estabeleceu de tal modo na natureza, e
das quais imprimiu tais noções em nossas almas que, depois de refletir bastante
sobre delas, não poderíamos duvidar que não fossem exatamente observadas em
tudo o que existe ou se faz no mundo[69]. Depois, considerando a
seqüência dessas leis, parece-me ter descoberto muitas verdades mais úteis e
mais importantes do que tudo quanto aprendera até então, ou mesmo esperava
aprender.
[2] Mas, dado que tentei explicar as principais num tratado que certas
considerações me impedem de publicar[70], não poderia dá-las
melhor a |52 conhecer do que dizendo aqui,
sumariamente, o que ele contém. Eu pretendia, antes de escrevê-lo, incluir nele
tudo o que julgava saber quanto à natureza das coisas materiais. Mas,
tal como os pintores que, não podendo representar igualmente bem num quadro
plano todas as diversas faces de um corpo sólido, escolhem uma das principais,
que colocam à luz, e, sombreando as outras, só as fazem aparecer tanto quanto
se possa vê-las ao olhar aquela; assim, temendo não poder pôr em meu discurso
tudo o que tinha no pensamento, tentei apenas expor bem amplamente o que
concebia da luz; depois, no seu ensejo, acrescentar alguma coisa a sobre o sol
e as estrelas fixas, porque a luz procede quase toda deles; sobre os céus,
porque a transmitem; sobre os planetas, os cometas e a terra, porque a
refletem; e, em particular, sobre todos os corpos que há sobre a Terra, porque
são ou coloridos, ou transparentes, ou brilhantes; e, enfim, sobre o homem,
porque é o seu espectador. Também, para sombrear um pouco todas essas |75 coisas
e poder dizer mais livremente o que julgava a seu respeito, sem ser obrigado a
seguir nem a refutar as opiniões aceitas entre os doutos, resolvi-me a deixar
todo esse mundo às suas disputas, e a falar somente do que aconteceria num
novo, se Deus criasse agora em qualquer parte, nos espaços imaginários[71],
bastante matéria para compô-lo[72], e se agitasse
diversamente, e sem ordem, as diferentes partes desta matéria, de modo
que compusesse com ela um caos tão confuso quanto os poetas possam fazer crer,
e que, em seguida, não fizesse outra coisa senão prestar o seu concurso comum[73]
à natureza, e deixá-la agir segundo as leis por ele estabelecidas. Assim,
primeiramente, descrevi essa matéria e procurei representá-la de tal modo que
nada há no mundo, parece-me, mais claro nem mais inteligível, exceto o que há
pouco foi dito sobre Deus e a alma; pois supus mesmo, expressamente, que não
existia nela nenhuma dessas formas ou qualidades acerca das quais se disputa nas
escolas, nem, de modo geral, qualquer coisa cujo conhecimento não fosse tão
natural às nossas almas que não se |53 pudesse mesmo fingir ignorá-la[74].
Além disso, fiz ver quais eram as leis |76 da natureza; e, sem apoiar minhas razões em
nenhum outro princípio, a não ser no das perfeições infinitas de Deus[75],
procurei demonstrar todas aquelas que pudessem suscitar qualquer dúvida e
mostrar que elas são tais que, embora Deus tivesse criado muitos mundos, não
poderia existir um só em que deixassem de ser observadas. Depois disso,
indiquei como a maior parte da matéria desse caos devia, em seqüência dessas
leis, dispor-se e arranjar-se de uma certa forma que a torna semelhante aos
nossos céus; como, entretanto, algumas de suas partes deviam compor uma terra,
alguns dos planetas e cometas, e outras, um sol e estrelas fixas. E neste
ponto, estendendo-me sobre o tema da luz, expliquei bem longamente qual era a
que se devia encontrar no sol e nas estrelas, e como, a partir daí, atravessava
num instante os imensos espaços dos céus[76], e como se refletia dos
planetas e dos cometas para a terra. Juntei a isso também várias coisas
atinentes à substância, situação, movimentos e todas as várias qualidades
desses céus e desses astros; |77 de sorte que pensava ter dito a respeito o
suficiente, para fazer compreender que nada se nota nos deste mundo que não
devesse, ou ao menos não pudesse, parecer totalmente semelhante nos do mundo
que estava descrevendo. Daí vim a falar particularmente acerca da terra: como,
embora houvesse expressamente suposto que Deus não pusera peso algum[77]
na matéria de que ela era |54 composta, todas as suas partes não
deixavam de tender exatamente para o seu centro; como, havendo água e ar à sua
superfície, a disposição dos céus e dos astros, principalmente da Lua, devia
nela causar um fluxo e refluxo, que fosse semelhante, em todas as suas
circunstâncias, ao que se observa nos nossos mares; e além disso, certo curso,
tanto da água como do ar, do levante para o poente, tal como se observa também
entre os trópicos; como as montanhas, os mares, as fontes e os rios podiam
naturalmente formar-se nela, e os metais aparecerem nas minas, e as plantas
crescerem nos campos, e em geral todos os corpos denominados mistos ou
compostos[78] serem nela engendrados.
E entre outras coisas, já que após os astros nada conheço no mundo, a não ser o
fogo, que produza a luz, apliquei-me a explicar bem claramente tudo o que
pertence à sua natureza, como ele se faz, como se nutre; como existe às vezes
apenas calor sem luz[79], e outras vezes, luz sem
calor[80]; como pode introduzir
diversas cores em diversos corpos e diversas outras qualidades; como funde uns
e endurece outros; como os pode consumir a quase todos ou converter em cinzas e
em fumo; e enfim, como dessas cinzas, só pela violência de sua ação, firma o
vidro; pois, parecendo-me essa transmutação de cinzas em vidro tão admi- |78 rável
como nenhuma outra que se produza na natureza, deu-me particular prazer
descrevê-la.
[3] Todavia, não desejava inferir, de todas essas coisas, que este mundo
tivesse sido criado da forma como propunha; pois é bem mais verossímil que,
desde o começo, Deus o tenha tomado tal como devia ser. Mas é certo, e é uma
opinião comumente adotada entre os teólogos, que a ação pela qual ele agora
qual o criou: de modo que, embora não lhe houvesse dado, no começo, outra
forma senão a do Caos, desde que, tendo estabelecido as leis da natureza, lhe
tenha prestado seu concurso, para ela agir assim como costuma, pode-se crer,
sem prejudicar o milagre da criação, que só por isso todas as coisas que são
puramente materiais poderiam, com o tempo, tornar-se tais como as vemos no
presente[81]. E sua natureza é bem
mais fácil de ser conceber, quando as vemos nascer pouco a pouco desta maneira,
do que quando já as consideramos totalmente feitas.
[4] Da descrição dos corpos inanimados e das plantas, passei à dos
animais e particularmente à dos homens. Mas, como não contava ainda suficiente
conhecimento para falar deles no mesmo estilo que do resto, isto é,
demonstrando os efeitos pelas causas, e mostrando de quais sementes e de que
maneira a natureza deve produzi-los, contentei-me em supor que Deus formasse o
corpo de um homem inteiramente semelhante a um dos nossos, tanto na figura
exterior de seus membros como na conformação interior de seus órgãos, sem
compô-lo de outra matéria além da que eu descrevera, e sem pôr nele, no começo,
qualquer alma racional, nem qualquer outra coisa para servir-lhe de alma
vegeta- |55 tiva ou sensitiva, senão que excitasse em seu coração
um desses fogos sem luz que eu já explicara, e que não concebia nenhuma outra
natureza, exceto a que aquece o feno quando o guardam antes de estar seco, ou a
que faz ferver os vinhos novos quando ficam a fermentar sobre o bagaço. Pois,
examinando as funções que, em virtude disso, podiam estar neste corpo,
encontrava exatamente todas as que podem estar em nós sem que o pensemos, nem
por conseguinte que a nossa alma, ou seja, essa parte distinta do corpo cuja
natureza, como já |79 foi dito mais acima, é apenas a de pensar,
para tal contribua, e que são todas as mesmas, o que permite dizer que os
animais sem razão se nos assemelham, sem que eu possa achar para isso qualquer
daquelas razões que, sendo dependentes do pensamento, são as únicas que nos
pertencem enquanto homens, ao passo que achava a todas em seguida, ao supor que
Deus criara uma alma racional e que a juntara a esse corpo de uma certa maneira
que descrevia[82].
[5] Mas, a fim de que se possa ver de que modo eu tratava esta matéria,
quero apresentar aqui a explicação do movimento do coração e das artérias, o
qual, sendo o primeiro e o mais geral que se observa nos animais, permitirá
julgar facilmente, a partir dele, o que se deve pensar de todos os outros. E,
para que se tenha menos dificuldade de entender o que vou dizer a esse
respeito, gostaria que todos os que não são versados em anatomia se dessem ao
trabalho, antes de ler isto, de mandar cortar diante deles o coração de um
grande animal que possua pulmões, pois é em tudo semelhante ao do homem, e que
peçam para que se lhes mostrem as duas câmaras ou concavidades nele existentes.
Primeiramente, a que está no lado direito[83], a que correspondem dois
tubos muito largos: a saber, a veia cava, que é o principal receptáculo do
sangue e como que o tronco da árvore da qual todas as outras veias do corpo são
ramos; e a veia arteriosa[84], que foi assim
impropriamente designada, por se tratar efetivamente de uma artéria, a qual,
tomando sua origem no coração, se divide, depois de sair dele, em muitos ramos
que vão espalhar-se por toda a parte nos pulmões. Depois, a que se está no lado
esquerdo[85], à qual correspondem, da mesma |80 forma,
dois tubos que são tanto ou mais largos que os precedentes: a saber, a artéria
venosa[86], que também foi
impropriamente designada, porque não é outra coisa senão uma veia, que vem dos
pulmões, onde se divide em vários ramos, entrelaçados com os da veia arteriosa
e com os desse conduto que se chama gasnete[87], por onde entra o ar da
respiração; e a grande artéria[88], que, saindo do coração,
lança seus ramos por todo o corpo. Gostaria também que lhes mostrassem
cuidadosamente as onze pequenas peles[89], que, como outras tantas
pe- |56
quenas portas, abrem e fecham as quatro aberturas que há nessas duas
concavidades: a saber, três à entrada da veia cava[90],
onde se acham de tal modo dispostas que não podem de maneira alguma impedir que
o sangue nela contido corra para a concavidade direita do coração, e todavia
impedem exatamente que possa dali sair; três à entrada da veia arteriosa[91],
que, estando dispostas bem ao contrário, permitem realmente ao sangue que está
nessa concavidade passar para os pulmões, mas não ao que está nos pulmões
voltar para lá; e assim[92] duas outras à entrada da
artéria venosa, que deixam fluir o sangue dos pulmões para a concavidade
esquerda do coração, mas opõem-se ao seu retorno; e três à entrada da grande
artéria[93], que lhe permitem sair
do coração, mas impedem o seu retorno. E não há necessidade de procurar outra
razão para o número dessas peles, senão a de que a abertura da artéria venosa,
sendo oval devido ao local onde fica, pode ser comodamente fechada com duas, ao
passo que, as outras sendo redondas, três podem melhor fechá-las. Demais,
gostaria que lhes fosse dado considerar que a grande artéria e a veia arteriosa
são de uma composição muito mais dura e mais firme do que a artéria venosa e a
veia cava, e que as duas últimas se alargam antes de entrar no coração,
formando aí como que duas bolsas, chamadas orelhas do coração, que se compõem
de uma carne semelhante à deste; e que há sempre mais calor no coração do que
em qualquer outro lugar do |81 corpo[94], e, enfim, que este
calor é capaz de fazer que, se uma gota de sangue entrar em suas concavidades,
ela se infle prontamente e se dilate, como procedem em geral todos os líquidos
quando os deixamos cair gota a gota nalgum vaso que esteja bem quente.
[6] Isso porque, depois disso, nada mais preciso dizer para explicar o
movimento do coração, salvo que, quando as suas concavidades não estão cheias
de sangue, este corre necessariamente da veia cava para a concavidade direita,
e da artéria venosa para a esquerda; já que esses dois vasos se acham sempre
cheios, e que suas aberturas, voltadas para o coração, não podem então ser
tapadas; mas, tão logo tenham entrado assim duas gotas de sangue, uma em cada
concavidade, estas gotas, que só podem ser muito grossas, porque as aberturas
por onde penetram são muito largas, e os vasos de onde provêm muito cheios de
sangue, rarefazem-se e dilatam-se por causa do calor que aí encontram; por esse
meio, fazendo inflar o coração todo, empurram e fecham as cinco pequenas portas
que ficam à entrada dos dois vasos de onde vêm, impedindo, assim, que desça
mais sangue ao coração; e, continuando a rarefazer-se cada vez mais, empurram e
abrem as seis outras pequenas portas que ficam à entrada dos dois outros vasos
por onde saem, fazendo inflar por esse meio todos os ramos da veia arteriosa e
da grande artéria, quase no mesmo instante que o coração, o qual, em seguida,
incontinenti, se desinfla, como sucede também com essas artérias, por se
resfriar o sangue que nelas entrou; e suas seis pequenas portas se fecham e as
cinco da veia cava e da artéria venosa reabrem-se, dando passagem a duas outras
gotas de sangue, que vão de novo inflar o coração e as artérias, tal |57
como as precedentes. E porque o sangue, que entra assim no coração, passa por
essas duas bolsas que se chamam suas orelhas, daí resulta que o movimento
dessas é contrário ao seu, e que elas desinflam quando ele se infla[95].
De resto, a fim de que aqueles que não conhecem a força das demonstrações |82 matemáticas,
e não estão acostumados a distinguir as razões verdadeiras das verossímeis[96],
não se aventurem a negar tal fato sem exame, quero adverti-los de que esse
movimento que acabo de explicar segue-se tão necessariamente da simples
disposição dos órgãos que se podem ver a olho nu no coração, e do calor que se
pode sentir com os dedos, e da natureza do sangue que se pode conhecer por
experiência, como o de um relógio segue-se da força, da situação e da figura de
seus contrapesos e rodas.
[7] Mas, se se pergunta como o sangue das veias não se esgota, fluindo
assim continuamente para o coração, e como as artérias não se enchem demais, já
que tudo quanto passa pelo coração para elas se dirige, não necessito responder
algo mais do que já foi escrito por um médico da Inglaterra, a quem é preciso
dar o louvor de ter rompido o gelo neste ponto, e de ser o primeiro a ter
ensinado a existência de muitas pequenas passagens nas extremidades das
artérias, por onde o sangue que elas recebem do coração entra nos pequenos
ramos das veias, de onde ele torna a dirigir-se para o coração, de sorte que o
seu curso não é mais do que uma circulação perpétua. E isso ele prova muito bem
pela experiência comum dos cirurgiões, que, ligando o braço sem apertá-lo
muito, acima do local onde abrem a veia, fazem que o sangue saia dela com mais
abundância do que se não o houvessem ligado. E aconteceria exatamente o
contrário, se eles o ligassem abaixo, entre a mão e a abertura, ou então se o
ligassem mui fortemente em cima. Pois é manifesto que o laço medianamente
apertado, podendo impedir que o sangue, que já está no braço, retorne ao
coração pelas veias, não impede no entanto que para aí sempre aflua novo sangue
pelas artérias, porque estas se situam por baixo das veias, e porque suas
peles, sendo mais duras, são menos fáceis de pressionar, e também |83 porque
o sangue procedente do coração tende com mais força a passar por elas para a
mão do que a voltar daí para o coração pelas veias. E, como esse sangue sai do
braço pela abertura que existe numa das veias, deve necessariamente haver
algumas passagens abaixo do laço, isto é, na direção das extremidades do braço,
por onde possa vir das artérias[97]. Ele prova, outrossim,
muito bem o que diz sobre o fluxo do sangue, por certas pequenas peles, as
quais se acham de tal modo dispostas em diversos pontos ao longo das veias, que
não lhe permitem passar do meio do corpo para as extremidades, mas somente |58
retornar das extremidades para o coração, e, demais, pela experiência que
mostra que todo o sangue existente no corpo pode dele sair em muito pouco tempo
por uma única artéria, quando secionada, ainda mesmo que ela fosse
estreitamente ligada muito perto do coração, e secionada entre ele e a
ligadura, de sorte que não houvesse motivo de imaginar que o sangue que daí
saísse proviesse de outro lugar.
[8] Mas há numerosas outras coisas que testemunham que a verdadeira causa
desse movimento do sangue é a que eu disse[98]. Assim, primeiramente, a
diferença que se nota entre o sangue que sai das veias e o que sai das artérias
só pode proceder do fato de que, tendo-se rarefeito e como que destilado ao
passar pelo coração, é mais sutil e mais vivo, e mais quente logo depois de
sair dele, isto é, quando nas artérias, do que o é um pouco antes de nele
entrar, isto é, quando nas veias. E, se se presta atenção, verifica-se que tal
diferença só aparece realmente na direção do coração e de modo algum nos
lugares que dele mais se distanciam[99]. Depois, a dureza das
peles, de que a veia arteriosa e a grande artéria se compõem, mostra
suficientemente que o sangue bate contra elas com mais força do que contra as
veias[100]. E por que seriam a
concavidade esquerda |84 do coração e a grande artéria mais amplas e
mais largas do que a concavidade direita e a veia arteriosa, se não fosse
porque o sangue da artéria venosa, tendo estado apenas nos pulmões depois de
passar pelo coração, é mais sutil e rarefaz-se mais forte e mais facilmente do
que aquele que vem imediatamente da veia cava[101]?
E o que podem os médicos adivinhar, tateando o pulso, se não sabem que,
conforme o sangue muda de natureza, pode ser rarefeito pelo calor do coração
mais ou menos forte e mais ou menos rápido do que antes? E, se se examina como
esse calor se comunica aos outros membros, não cumpre confessar que é por meio
do sangue que, passando pelo coração, nele se aquece e daí se espalha por todo
o corpo? Donde resulta que, se se tira o sangue de alguma parte, tira-se-lhe da
mesma maneira o calor; e, ainda que o coração fosse tão ardente quanto um ferro
abrasado, não bastaria, como não basta, para aquecer os pés e as mãos, se não
lhes enviasse continuamente novo sangue[102]. Depois, também se sabe
daí que a verdadeira utilidade da respiração é trazer bastante ar fresco aos
pulmões, para fazer com que o sangue, que para aí vem da concavidade direita do
coração, onde foi rarefeito e como que transmudado em vapores, se espesse e se
converta de novo em sangue, antes de recair na concavidade esquerda, sem o que
não poderia ser próprio para servir de alimento ao fogo aí existente[103].
O que se conforma, visto que os animais |59 desprovidos de pulmões tampouco têm mais
do que uma só concavidade no coração, e as crianças, que não podem usá-los,
enquanto encerradas no ventre de suas mães, possuem uma abertura por onde corre
o sangue da veia cava para a concavidade esquerda do coração e um conduto por
onde ele vem da veia arteriosa para a grande artéria, sem passar pelos pulmões.
Depois a cocção, como se faria ela no estômago, |85 se o coração não lhe enviasse calor pelas
artérias, e com esse, alguns das mais fluidas partes do sangue, que ajudam a
dissolver os alimentos que foram aí postos? E a ação que converteu o suco
desses alimentos em sangue, não será ela fácil de conhecer, se se considera que
este se destila, passando e repassando pelo coração, talvez mais de cem ou
duzentas vezes por dia? E de que mais se necessita para explicar a nutrição e a
produção dos diversos humores que existem no corpo[104],
exceto dizer que a força com que o sangue, ao rarefazer-se, passa do coração às
extremidades das artérias leva algumas de suas partes a se deterem entre as dos
membros onde se acham e a tomarem aí o lugar de algumas outras que elas
expulsam; e que, conforme a situação, ou a figura, ou a pequenez dos poros que
encontram, umas vão ter a certos lugares mais do que outras, da mesma forma
como cada qual pode ter visto diversos crivos que, sendo diversamente
perfurados, servem para separar diversos grãos uns dos outros? E, enfim, o que
há de mais notável em tudo isso é a geração dos espíritos animais, que são como
um vento muito sutil, ou melhor, como uma chama muito pura e muito viva que,
subindo continuamente em grande abundância do coração ao cérebro, dirige-se
daí, pelos nervos, para os músculos, e imprime movimento a todos os membros[105];
sem que seja preciso imaginar outra causa que leve as partes do sangue que,
sendo as mais agitadas e as mais penetrantes, são as mais próprias para compor
tais espíritos, a se dirigirem mais ao cérebro do que a outras partes; mas
somente que as artérias, que as levam para aí, são aquelas que vêm do coração
em linha mais reta de todas, e que, segundo as leis da Mecânica, que são as
mesmas da natureza[106], quando várias coisas
tendem a mover-se em conjunto para um mesmo lado, onde não existe espaço
suficiente para todas, tal como as |86 partes do sangue que saem da concavidade
esquerda do coração tendem para o cérebro, as mais fracas e menos agitadas
devem ser desviadas pelas mais fortes, que por esse meio aí vão ter sós.
[9] Explicara assaz particularmente todas essas coisas no tratado que
pretendi outrora publicar[107]. E, em seguida,
mostrara nele qual deve ser a estrutura dos nervos e dos músculos do corpo
humano, para fazer que os espíritos animais, estando dentro, tenham a força de
mover seus membros: assim como se vê que as cabeças, pouco depois de decepadas,
se remexem ainda, e mordem a terra, não obstante não mais sejam animadas; quais
mudanças se devem efetuar no cérebro, para causar a vigília, o sono e os
sonhos; como a luz, os sons, os odores, os sabores, o |60
calor e todas as outras qualidades dos objetos exteriores nele podem imprimir
diversas idéias por intermédio dos sentidos; como a fome, a sede e as outras
paixões interiores também podem lhe enviar as suas; o que deve ser nele tomado
pelo senso comum[108], onde essas idéias são
acolhidas; pela memória, que as conserva[109], e pela fantasia[110],
que as pode modificar diversamente e compor com elas outras novas, e pelo mesmo
meio, distribuindo os espíritos animais nos músculos, movimentar os membros
desse corpo de tão diversas maneiras, quer a propósito dos objetos que se
apresentam a seus sentidos, quer das paixões interiores que estão nele, que os
ossos se possam mover, sem que a vontade os conduza. O que não parecerá de modo
algum estranho a quem, sabendo quão diversos autômatos[111],
ou máquinas móveis, a indústria dos homens |87 pode produzir, sem empregar nisso senão
pouquíssimas peças, em comparação à grande quantidade de ossos, músculos,
nervos, artérias, veias e todas as outras partes existentes no corpo de cada
animal, considerará esse corpo uma máquina que, tendo sido feita pelas mãos de
Deus, é incomparavelmente melhor ordenada e contém movimentos mais admiráveis
do que qualquer das que possam ser inventadas pelos homens.
[10] E detivera-me particularmente neste ponto, para mostrar que, se
houvesse máquinas assim, que tivessem os órgãos e a figura de um macaco, ou de
qualquer outro animal sem razão, não disporíamos de nenhum meio para reconhecer
que elas não seriam em tudo da mesma natureza que esses animais; ao passo que,
se houvesse outras que apresentassem semelhança com os nossos corpos e
imitassem tanto nossas ações quanto moralmente fosse possível, teríamos sempre
dois meios muito seguros para reconhecer que nem por isso seriam verdadeiros
homens. Desses, o primeiro é que nunca poderiam usar palavras, nem outros
sinais, compondo-os, como fazemos para declarar aos outros os nossos
pensamentos. Pois pode-se muito bem conceber que uma máquina seja feita de tal
modo que profira palavras, e até que profira algumas a propósito das ações
corporais que causem qualquer mudança em seus órgãos: por exemplo, se a tocam
num ponto, que pergunte o que se lhe quer dizer; se em outro, que grite que lhe
fazem mal, e coisas semelhantes; mas não que ela as arranje diversamente, para
responder ao sentido de tudo quanto se disser na sua presença, assim como podem
fazer os homens mais embrutecidos. E o segundo é que, embora fizessem muitas
coisas tão bem, ou talvez melhor do que qualquer de nós, falhariam
infalivelmente em algumas outras, pelas quais se descobriria que não agem pelo
conhecimento, mas somente pela disposição de seus órgãos. Pois, ao passo que a
razão é um instrumento universal, que pode servir em todas as espécies de
circunstâncias, tais órgãos necessitam de alguma disposição particular para
cada ação particular; daí |61 resulta que é moralmente impossível que
numa máquina existam bastante diversas para fazê-la agir em todas as
ocorrências da vida, tal como a nossa razão nos faz agir[112].
|88
[11] Ora, por esses dois meios, pode-se também conhecer a diferença existente
entre os homens e os animais[113]. Pois é uma coisa bem
notável que não haja homens tão embrutecidos e tão estúpidos, sem excetuar
mesmo os insanos, que não sejam capazes de arranjar em conjunto diversas
palavras, e de compô-las num discurso pelo qual façam entender seus
pensamentos; e que, ao contrário, não exista outro animal, por mais perfeito e
felizmente engendrado que possa ser, que faça o mesmo. E isso não acontece
porque lhes faltem órgãos, pois vemos que as pegas e os papagaios podem proferir
palavras assim como nós, e todavia não podem falar como nós, isto é,
testemunhando que pensam o que dizem; ao passo que os homens que, tendo nascido
surdos e mudos, são desprovidos dos órgãos que servem aos outros para falar,
tanto ou mais que os animais, costumam inventar eles próprios alguns sinais,
pelos quais se fazem entender por quem, estando comumente com eles, disponha de
lazer para aprender a sua língua. E isso não testemunha apenas que os animais
possuem menos razão do que os homens, mas que não possuem nenhuma razão. Pois
vemos que é preciso muito pouco para saber falar; e, posto que se nota
desigualdade entre os animais de uma mesma espécie, assim como entre os homens,
e que uns são mais fáceis de adestrar que outros, não é crível que um macaco ou
um papagaio, que fossem os mais perfeitos de sua espécie, não igualassem nisso
uma criança das mais estúpidas ou pelo menos uma criança com o cérebro
perturbado, se a sua alma não fosse de uma natureza inteiramente diferente da
nossa. E não se deve confundir as palavras com os movimentos naturais, que
testemunham as paixões e podem ser imitados pelas máquinas assim como pelos
animais; nem pensar, como alguns antigos, que os animais falam, embora não
entendamos sua linguagem: pois, se fosse verdade, porquanto têm muitos órgãos
correlatos aos nossos, poderiam fazer-se compreender tanto por nós como por
seus semelhantes. É também coisa mui digna de nota que, embora existam muitos
animais que demonstram mais indústria do que nós em algumas de suas ações, vê-se, todavia,
que não a |89
demonstram nem um pouco em muitas outras: de modo que aquilo que fazem melhor
do que nós não prova que tenham espírito; pois, por esse critério, tê-lo-iam
mais do que qualquer de nós e procederiam melhor em tudo; mas, antes, que não o
têm, e que é a natureza que atua neles segundo a disposição de seus órgãos:
assim como um relógio, que é composto apenas de rodas e molas, pode contar as
horas e medir o tempo mais justamente do que nós, com toda a nossa prudência.
[12] Eu descrevera, depois disso, a alma racional, e mostrara que ela não
pode ser de modo algum tirada do poder da matéria, como as outras coisas de que
falara, mas que deve expressamente ter sido[114]; e como não basta que
esteja |62
alojada no corpo humano, assim como um piloto em seu navio, exceto talvez para
mover seus membros, mas que é preciso que esteja junta e unida estreitamente
com ele para ter, além disso, sentimentos e apetites semelhantes aos nossos, e
assim compor um verdadeiro homem. De resto, eu me alonguei um pouco aqui sobre
o tema da alma, porque é dos mais importantes; pois, após o erro dos que negam
Deus, que penso haver refutado suficientemente mais acima, não há outro que
afaste mais os espíritos fracos do caminho reto da virtude do que imaginar que
a alma dos animais seja da mesma natureza que a nossa, e que, por conseguinte,
nada temos a temer, nem a esperar, depois dessa vida, não mais do que as moscas
e as formigas; ao passo que, sabendo-se o quanto diferem, compreende-se muito
mais as razões que provam que a nossa é de uma natureza inteiramente
independente do corpo e, por conseguinte, que não está de modo algum sujeita a
morrer com ele; depois, como não se vêem outras causas que a destruam, somos
naturalmente levados a julgar por isso que ela é imortal[115].
|90 Sexta Parte
[1] Ora, faz agora três anos que chegara ao fim do tratado que contém
todas essas coisas, e que começara a revê-lo, a fim de pô-lo em mãos de um
impressor, quando soube que pessoas, a quem respeito e cuja autoridade sobre
minhas ações quase não é menor que minha própria razão sobre meus pensamentos,
haviam desaprovado uma opinião de Física, publicada pouco antes por alguém,
opinião que não quero dizer que a partilhasse, mas que nada reparara nela,
antes de a censurarem, que pudesse imaginar ser prejudicial à religião ou ao
Estado, nem, por conseguinte, que me impedisse de escrevê-la, se a razão mo
houvesse persuadido, e isso me fez recear que se encontrasse, do mesmo modo,
alguma entre as minhas, na qual me tivesse enganado, não obstante o grande
cuidado que sempre tomei em não acolher novas em minha confiança, das quais não
tivesse demonstrações muito certas, e de não escrever nenhuma que pudesse
resultar em desvantagem para qualquer pessoa. O que bastou para me obrigar a
mudar a resolução que eu tomara de publicá-las. Pois, embora as razões, pelas
quais eu a adotara anteriormente, fossem muito fortes, minha inclinação, que
sempre me movera a detestar o mister de fazer livros, me levou incontinenti a
achar muitas outras para me escusar dela. E essas razões de uma parte e de
outra são tais, que não só tenho aqui algum interesse em dizê-las, como talvez
o pú- |63
blico também o tenha em conhecê-las.
[2] Nunca fiz muito caso das coisas que vinham de meu espírito, e,
enquanto não recolhi outros frutos do método de que me sirvo a não ser que
fiquei satisfeito no tocante a algumas dificuldades que concernem às ciências
especulativas, ou então que procurei regrar meus costumes pelas razões que ele
me ensinava, não me julguei obrigado a nada escrever a seu respeito. Pois, no
que toca aos costumes, cada qual segue de tal forma o seu próprio parecer que
se poderia encontrar tantos reformadores |91 quantas cabeças, se fosse permitido a
outros, além dos que Deus estabeleceu como soberanos dos povos, ou então aos
que concedeu suficiente graça e zelo para serem profetas, tentar mudá-los, em
algo; e, embora minhas especulações me aprouvessem muito, pensei que os outros
também tinham as suas que lhes agradariam talvez mais. Mas, tão logo adquiri
algumas noções gerais relativas à Física, e, começando a comprová-las em
diversas dificuldades particulares[116], notei até onde podiam
conduzir, e o quanto diferem dos princípios que foram utilizados até o
presente, julguei que não podia mantê-las ocultas sem pecar grandemente contra
a lei que nos obriga a procurar, no que depende de nós, o bem geral de todos os
homens[117]. Pois elas me fizeram
ver que é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à vida, e que,
em vez dessa Filosofia especulativa que se ensina nas escolas, se pode
encontrar uma outra prática, pela qual, conhecendo a força e as ações do fogo,
da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos
cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres de nossos
artífices, poderíamos empregá-los da mesma maneira em todos os usos para os
quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores da
natureza. O que é de desejar, não só para a invenção de uma infinidade de
artifícios, que permitiriam gozar, sem qualquer custo, os frutos da terra e
todas as comodidades que nela se acham, mas principalmente também para a
conservação da saúde, que é sem dúvida o primeiro bem e o fundamento de todos
os outros bens desta vida; pois mesmo o espírito depende tanto do temperamento
e da disposição dos órgãos do corpo que, se é possível encontrar algum meio que
torne comumente os homens mais avisados e mais hábeis do que foram até aqui, |92 creio
que é na Medicina que se deve procurá-lo[118]. É verdade que aquela
que está agora em uso contém poucas coisas cuja utilidade seja tão notável;
mas, sem que alimente nenhum intuito de desprezá-la, estou certo de que não há
ninguém, mesmo entre os que a profes- |64 sam, que não confesse que tudo quanto
nela se sabe é quase nada, em comparação com o que resta saber, e que
poderíamos livrar-nos de uma infinidade de moléstias, quer do espírito, quer do
corpo, e talvez mesmo do enfraquecimento da velhice, se tivéssemos bastante
conhecimento de suas causas e de todos os remédios de que a natureza nos dotou.
Ora, tendo o desígnio de empregar toda a minha vida na pesquisa de uma ciência
tão necessária, e tendo encontrado, um caminho que me parece tal que se deve
infalivelmente achá-la, se o seguirmos, a não ser que disso sejamos impedidos,
ou pela curta duração da vida, ou pela falta de experiências, julguei que não havia
melhor remédio contra esses dois impedimentos a não ser comunicar fielmente ao
público todo o pouco que já tivesse descoberto, e convidar os bons espíritos a
esforçarem-se por passar além, contribuindo, cada qual segundo sua inclinação e
seu poder, para as experiências que seria preciso fazer, e comunicando
outrossim ao público todas as coisas que aprendesse, a fim de que os últimos
começassem onde os precedentes houvessem acabado, e assim, juntando as vidas e
os trabalhos de muitos, fôssemos todos juntos muito mais longe do que poderia
ir cada um em particular.
[3] Notara mesmo, no tocante às experiências, que elas são tanto mais
necessárias quanto mais avançada a gente está no conhecimento. Pois, no começo,
mais vale servir-se apenas das que se apresentam por si mesmas aos nossos
sentidos, e que não poderíamos ignorar, contanto que lhes dediquemos o pouco
que seja de reflexão, em vez de procurar as mais raras e complicadas: a razão
disso é que essas mais raras nos enganam muitas vezes, quando se conhecem ainda
as causas das mais comuns, e que as circunstâncias das quais dependem são quase
sempre tão particulares e tão pequenas, que é muito penoso |93 adverti-las[119].
Mas a ordem que guardei nisso foi a seguinte. Primeiramente, procurei encontrar
em geral os princípios, ou primeiras causas, de tudo quanto existe, ou pode
existir, no mundo, sem nada considerar, para tal efeito, senão Deus só, que o
criou, nem tirá-las de outra parte, exceto de certas sementes de verdades que
existem naturalmente em nossas almas. Depois disso, examinei quais os primeiros
e os mais ordinários efeitos que se podem deduzir dessas causas: e parece-me
que, por aí, encontrei céus, astros, uma terra, e mesmo, sobre a terra, água,
ar, fogo, minerais e algumas outras dessas coisas que são as mais comuns de
todas e as mais simples, e, por conseguinte, as mais fáceis de conhecer.
Depois, quando quis descer às que eram mais particulares, apresentaram-se-me
tão diversas, que não acreditei que fosse possível ao espírito humano
distinguir as formas ou espécies de corpos que existem sobre a terra, de uma
infinidade de outras que poderiam nela existir, se fosse |65
a vontade de Deus aí colocá-las, nem, por conseqüência, torná-las de nosso uso,
a não ser que se vá ao encontro das causas pelos efeitos e que se recorra
a muitas experiências particulares[120]. Em decorrência disso,
repassando meu espírito sobre todos os objetos que alguma vez se ofereceram aos
meus sentidos, ouso dizer que não observei nenhum que não pudesse explicar
assaz comodamente por meio dos princípios que achara. Mas cumpre que eu
confesse também que o poder da natureza é tão amplo e tão vasto e que esses
princípios são tão simples e tão gerais, que quase não notei um |94 único
efeito particular que eu já não soubesse ser possível deduzi-lo daí de várias
maneiras diferentes, e que a minha maior dificuldade é comumente descobrir de
qual dessas maneiras o referido efeito depende. Pois, para tanto, não conheço
outro expediente, senão o de procurar novamente algumas experiências que sejam
tais que seu resultado não seja o mesmo, se explicado de uma dessas maneiras e
não de outra[121]. De resto, estou agora
num ponto em que vejo,parece-me, muito bem qual o meio a que se deve recorrer
para efetuar a maioria das que podem servir para esse efeito; mas vejo também
que são tais e em tão grande número que nem as minhas mãos, nem a minha renda,
ainda que eu tivesse mil vezes mais do que possuo, bastariam para todas; de
sorte que, conforme tiver doravante a comodidade de fazê-las em maior ou menor
número, avançarei mais ou menos no conhecimento da natureza. Fato que prometia
a mim próprio tornar conhecido, pelo tratado que escrevera, e mostrar tão
claramente a utilidade que daí podia advir ao público que obrigaria a todos os
que desejam em geral o bem dos homens, isso é, todos os que são de fato
virtuosos, e não apenas por fingimento, nem somente por opinião, tanto a
comunicar-me as que já tivessem feito como a me ajudar na pesquisa das que
restam por fazer.
[4] Mas sobrevieram, desde então, outras razões que me levaram a mudar de
opinião e pensar que devia, na verdade, continuar escrevendo todas as coisas
que julgasse de alguma importância, à |66 medida que fosse descobrindo sua verdade,
e proporcionar-lhes o mesmo cuidado que se quisesse mandar imprimi-las: quer
para ter mais ocasião de bem examiná-las, porque sem dúvida se olha sempre mais
de perto o que se acha dever ser visto por muitos, do que aquilo que se faz
apenas para si próprio, e, amiúde, as coisas que me pareceram verda- |95 deiras
quando comecei a concebê-las, pareceram-me
falsas quando pretendi pô-las no papel; quer para não perder nenhuma ocasião de
beneficiar o público, se é que disso sou capaz, e para que, se meus escritos valem
alguma coisa, os que os possuírem após a minha morte possam usá-los como for
mais conveniente; mas que não devia de modo algum consentir que fossem
publicados durante a minha vida, a fim de que nem as objeções e as
controvérsias a que estariam talvez sujeitos, nem mesmo a reputação, qualquer
que ela fosse, que me pudessem granjear, me dessem o menor ensejo de perder o
tempo que desejo empregar em instruir-me. Pois, embora seja verdade que cada homem deve procurar, no que depende dele, o bem dos outros, e que é
propriamente nada valer o não ser útil a ninguém, todavia é verdade também que
os nossos cuidados devem estender-se mais longe que o tempo presente, e que é
bom omitir as coisas que trariam talvez algum proveito aos que vivem, quando é
com o intuito de fazer outras que aproveitarão mais aos nossos vindouros.
Porque, com efeito, quero que se saiba que o pouco que aprendi até agora não é
quase nada, em comparação com o que ignoro, e que não desespero de poder
aprender; pois acontece quase o mesmo aos que descobrem pouco a pouco a verdade
nas ciências, que àqueles que, começando a enriquecer, têm menos dificuldade em
realizar grandes aquisições, do que tiveram outrora, quando mais pobres, em
realizar outras muito menores. Ou então se pode compará-los aos chefes de
exército, cujas forças costumam crescer à proporção de suas vitórias, e que
necessitam de mais habilidade, para se manterem após a perda de uma batalha, do
que possuem, depois de vencê-la, para tomar cidades e províncias. Pois é verdadeiramente
dar batalhas procurar vencer todas as dificuldades e os erros que nos impedem
de chegar ao conhecimento da verdade, e é perder uma acolher qualquer falsa
opinião no tocante a uma matéria um pouco geral e importante; é preciso, em
seguida, muito mais destreza para voltar ao mesmo estado em que se encontrava
antes do que para fazer grandes progressos, quando já se têm princípios que
sejam seguros. Quanto a mim, se deparei precedentemente com algumas verdades
nas ciências (e espero que as coisas contidas neste volume[122]
levarão a julgar que descobri algumas), posso dizer que não passam de
conseqüências e dependências de cinco ou seis dificuldades principais |96 que
sobrepujei, e que considero outras tantas batalhas em que tive a sorte a meu
lado. Não temerei mesmo dizer que penso precisar ganhar apenas mais duas ou
três semelhantes para levar inteiramente a cabo os meus desígnios; e que minha
idade não é tão avançada que, segundo o curso ordinário da natureza, não possa
ainda dispor de lazer suficiente para tal efeito. Mas creio estar tanto mais
obrigado a poupar o tempo que me resta quanto maior a esperança de poder empregá-lo
bem; e teria, sem dúvida, muitas ocasiões de perdê-lo, se publicasse os |67
fundamentos de minha Física[123]. Pois, embora sejam
quase todos tão evidentes que basta entendê-los para os aceitar, e não haja
nenhum de que não pense poder dar demonstração, todavia, porque é impossível
que estejam concordes com todas as diversas opiniões dos outros homens, prevejo
que seria muitas vezes desviado pelas oposições que engendrariam.
[5] Pode-se dizer que essas oposições seriam úteis, tanto para me fazerem
conhecer as minhas faltas, como para que, se eu tivesse algo de bom, os outros
poderem, por esse meio, entendê-lo mais, e, como muitos podem ver melhor do que
um homem só, para que, começando desde já a servir-se desse bem, eles me
ajudassem também com suas invenções. Mas, embora reconheça que sou extremamente
sujeito a falhar, e não me fio quase nunca nos primeiros pensamentos que me
ocorrem, todavia a experiência que tenho das objeções que me podem ser feitas
impede-me de esperar delas qualquer proveito: pois muitas vezes já comprovei os
juízos, tanto daqueles que eu tinha por meus amigos quanto de alguns outros a
quem eu pensava ser indiferente, e mesmo também de alguns de quem eu sabia que
a malignidade e a inveja se esforçariam bastante por revelar o que o afeto
ocultaria a meus amigos; mas raramente aconteceu que alguém me objetasse algo
que, de modo algum, eu não houvesse previsto, a não ser que fosse coisa muito distanciada
de meu assunto; de sorte que quase nunca deparei com algum censor de minhas
opiniões que não me parecesse ou menos rigoroso ou menos eqüitativo do que eu próprio.
E jamais notei tampouco que, por meio das disputas que se praticam nas escolas,
alguém descobrisse alguma verdade até |97 então ignorada[124],
pois, enquanto cada qual se empenha em vencer, exercita-se bem mais em fazer
valer a verossimilhança do que em pesar as razões de uma e de outra parte; e
aqueles que foram durante muito tempo bons advogados nem por isso são, em
seguida, melhores juízes.
[6] Quanto à utilidade que os outros colheriam da comunicação de meus
pensamentos, não poderia também ser muito grande, tanto mais que ainda não os
levei tão longe que não seja necessário juntar-lhes muitas coisas antes de
aplicá-los ao uso. E penso poder afirmar, sem vaidade, que, se há alguém que
seja capaz disso, hei de ser eu mais do que outro qualquer: não que não possam
existir no mundo muitos espíritos incomparavelmente melhores que o meu; mas
porque não se poderia conceber tão bem uma coisa, e torná-la sua, quando se
aprende de outrem, como quando a gente mesmo a inventa. O que é tão verdadeiro,
nesta matéria, que, embora tenha muitas vezes explicado algumas de minhas opiniões
a pessoas de ótimo espírito, e, enquanto eu lhes falava, pareciam entendê-las
mui distintamente, todavia, quando as repetiam, notei que quase sempre as
mudavam de tal sorte que não mais podia confessá-las como minhas. A esse
propósito, muito estimo pedir aqui, aos nossos vindouros, que jamais creiam nas
coisas que lhes forem apresentadas como vindas de mim, se eu próprio não as
tiver divulgado. E não me espantam de modo algum as extravagâncias que se atri-
|68
buem a todos esses antigos filósofos, cujos escritos não possuímos, nem julgo,
por isso, que os seus pensamentos tenham sido muito desarrazoados, visto serem
os melhores espíritos de seu tempo, mas apenas julgo que nos foram mal relatados.
Porque se vê também que quase nunca aconteceu que algum de seus sectários os haja
superado: e estou seguro de que os mais apaixonados dos que seguem agora
Aristóteles crer-se-iam felizes se tivessem tanto conhecimento da natureza
quanto ele o teve, embora sob a condição de nunca o terem maior. São como a
hera, que não tende a subir mais alto que as árvores que a sustentam, e que
muitas vezes mesmo torna a descer, depois de ter chegado ao seu topo; pois me
parece que também voltam a descer, isto é, tornam-se de certa forma menos sapientes
do que se se abstivessem de estudar, aqueles que, |98 não contentes em saber tudo o que é
inteligivelmente explicado no seu autor, querem, além disso, encontrar nele a
solução de muitas dificuldades, a cujo respeito nada disse e nas quais nunca talvez
pensou. Todavia, a maneira de filosofar é muito cômoda para aqueles que possuem
tão-somente espíritos muito medíocres; pois a obscuridade das distinções e dos
princípios de que se servem é causa de que possam falar de todas as coisas tão
atrevidamente como se as soubessem, e sustentar tudo o que dizem contra os mais
sutis e os mais hábeis sem que haja meio de convencê-los. Nisso se me parecem semelhantes
a um cego que, para se bater sem desvantagem com alguém que vê, o fizesse vir
ao fundo de uma adega escura; e posso dizer que esses têm interesse que eu me
abstenha de publicar os princípios da filosofia de que me sirvo: pois, sendo muito
simples e muito evidentes, como o são, faria quase o mesmo, publicando-os, que
se abrisse algumas janelas e fizesse entrar a luz nessa mesma adega, para onde
desceram para se bater. Mas até mesmo os melhores espíritos não devem desejar
conhecê-los: pois, se querem saber falar de todas as coisas e adquirir a reputação
de doutos, hão de consegui-lo mais facilmente contentando-se com a
verossimilhança, que pode ser encontrada sem muito custo em todas as espécies
de matérias, do que procurando a verdade, que só se descobre pouco a pouco em
algumas, e que, quando se trata de falar das outras, obriga a confessar francamente
que a gente as ignora. Visto que preferem o conhecimento de um pouco de verdade
à vaidade de parecerem nada ignorar, como sem dúvida é bem preferível, e se
pretendem seguir um intento semelhante ao meu, não precisam, para isso, que
lhes diga nada mais do que já disse nesse discurso. Pois, se são capazes de passar
mais adiante do que eu fui, sê-lo-ão também, com maior razão, de achar por si
próprios tudo o que penso ter achado[125]. Tanto mais que, não tendo
jamais examinado algo a não ser por ordem, é certo que o que me falta ainda
para descobrir é em si mais difícil e mais oculto do que aquilo que pude precedentemente
encontrar, e teriam muito menos prazer em aprendê-lo por mim do que por si próprios;
além do que, o hábito que adquirirão, procurando primeiramente coisas fáceis, e passando pouco a pouco, gradual- |99 mente,
a outras mais difíceis, lhes servirá mais do que poderiam servir-lhes todas as
minhas instruções. Porque, quanto a mim, persuadi-me de que, se me tivessem
ensinado, desde a juventude, todas as verdades cujas demonstrações procurei
depois, e se eu |69 não tivesse nenhuma dificuldade em
aprendê-las, jamais saberia talvez algumas outras, e pelo menos jamais teria
adquirido o hábito e a facilidade, que penso ter, para sempre descobrir outras
novas, à medida que me aplico a procurá-las. E, numa palavra, se há no mundo
alguma obra que não possa ser tão bem acabada por nenhum outro exceto pelo
mesmo que a começou, é aquela em que trabalho.
[7] É verdade que, no concernente às experiências que podem servir para
isso, um único homem não poderia bastar para as fazer todas; mas não poderia
também empregar utilmente outras mãos que não as suas, exceto as dos artífices ou
pessoas tais a quem pudesse pagar, e a quem a esperança do ganho, que é um meio
muito eficaz, faria executar exatamente todas as coisas que ele lhes prescrevesse.
Pois, quanto aos voluntários, que, por curiosidade ou desejo de aprender, se
oferecessem talvez para o ajudar, além de comumente apresentarem mais promessas
do que resultado e de não fazerem senão belas proposições de que nenhuma jamais
logra êxito, desejariam infalivelmente ser pagos pela explicação de algumas
dificuldades, ou ao menos por cumprimentos e conversas inúteis, que lhe
custariam sempre algum tempo, por pouco que perdesse. E, quanto às experiências
já feitas pelos outros, ainda que quisessem lhas comunicar, o que aqueles que
as chamam de segredos nunca o fariam, são, na maioria, compostas de tantas
circunstâncias, ou ingredientes supérfluos, que lhe seria muito penoso
decifrar-lhes a verdade; além de que as encontraria quase todas tão mal
explicadas, ou mesmo tão falsas, porquanto aqueles que as efetuaram
esforçaram-se por torná-las conformes com seus princípios que, se algumas houvessem
que lhe servissem, não poderiam valer outra vez o tempo que teria de empregar a
fim de escolhê-las. De modo que, se estivesse no mundo alguém, de quem se
soubesse que seria seguramente capaz de encontrar as maiores coisas e as mais
úteis possíveis ao público, e a quem, por essa causa, os demais homens se
esforçassem, por todos os meios, em auxiliar na realização de seus desígnios,
não vejo que pudessem fazer mais por ele além de custear os gastos nas
experiências de que necessitasse e, de resto, impedir que seu lazer lhe fosse arrebatado
pela importunidade de pessoa |100 alguma. Mas, além de que não presumo tanto
de mim mesmo, que deseje prometer algo de extraordinário, nem me alimente de pensamentos
tão vãos, como os de imaginar que o público se deva interessar muito com meus
projetos, não tenho também a alma tão baixa, que queira aceitar de quem quer
que seja qualquer favor, que possa crer que eu não tenha merecido.
[8] Todas essas considerações juntas foram causa, há três anos, de que eu
não quisesse divulgar o tratado que tinha em mãos, e mesmo que adotasse a
resolução de não elaborar nenhum outro, durante minha vida, que fosse tão
geral, nem do qual se pudesse conhecer os fundamentos de minha Física. Mas em
seguida houve de novo duas outras razões, que me obrigaram a apresentar aqui
alguns ensaios particulares, e a prestar ao público alguma conta de minhas
ações e de meus desígnios. A primeira é que, se deixasse de fazê-lo, muitos,
que souberam da intenção que eu alimentava anteriormente de mandar imprimir
alguns escritos, poderiam imaginar que as causas pelas quais me abstivera disso
fossem mais desvantajosas para mim do que na realidade o são. Pois, embora não
ame a glória em excesso, ou |70 mesmo, se ouso dizê-lo, a deteste, na
medida em que a julgo contrária ao repouso, que estimo acima de todas as
coisas, todavia nunca procurei esconder minhas ações como crimes, nem usei
muitas precauções para ficar desconhecido; tanto por crer que isso me faria mal,
como por saber que me daria uma espécie de inquietação, que seria mais uma vez
contrária ao perfeito repouso de espírito que procuro. E visto que, tendo-me
sempre mantido assim indiferente entre o cuidado de ser conhecido e o de não
sê-lo, não pude evitar de conquistar certa reputação, pensei que devia fazer o
máximo para me livrar ao menos de a ter má. A outra razão que me obrigou a
escrever este livro é que, vendo todos os dias mais e mais o retardamento que
sofre o meu intento de me instruir, por causa de uma infinidade de experiências
de que necessito, o que me é impossível realizá-lo sem a ajuda de outrem,
embora não me lisonjeie tanto a ponto de esperar que o público tome grande
parte em meus interesses, todavia não quero faltar tanto a mim próprio que dê
motivo aos que me sobreviverão para me censurar um dia de que eu podia ter-lhes
deixado muitas coisas bem melhores do que as que deixei, se não me tivesse negligenciado
demais em fazê-los compreender em que poderiam contribuir para os meus
projetos.
|101
[9] E pensei que me era fácil escolher algumas matérias que, sem estarem
expostas a muitas controvérsias, nem me obrigarem a declarar mais do que desejo
sobre os meus princípios, não deixariam de mostrar assaz claramente o que posso
ou não posso nas ciências. E nisso eu não poderia dizer se fui bem sucedido e não
quero predispor os juízos de ninguém, falando eu próprio dos meus escritos; mas
estimaria muito que fossem examinados e, para que haja tanto mais ocasião,
suplico a todos os que tiverem quaisquer objeções a fazer-lhes que se dêem ao
trabalho de enviá-las ao meu livreiro, para que, sendo advertido, procure
juntar-lhes ao mesmo tempo a minha resposta; e por esse meio, os leitores,
vendo em conjunto uma e outra, julgarão tanto mais facilmente a verdade. Pois
prometo nunca lhes dar respostas longas, mas somente confessar minhas faltas
mui francamente, se as reconhecer, ou então, caso não consiga percebê-las,
dizer simplesmente o que julgar necessário para a defesa das coisas que
escrevi, sem acrescentar a explicação de qualquer nova matéria, a fim de não me
enredar sem fim entre uma e outra.
[10] Se algumas daquelas de que falei, no começo da Dióptrica e
dos Meteoros, chocam de início, por eu as denominar suposições, e por
parecer que não anseio prová-las, que se tenha a paciência de ler o todo com
atenção, e espero que todos hão de se ver satisfeitos. Pois se me afigura que
nelas as razões se seguem de tal modo que, como as derradeiras são demonstradas
pelas primeiras, que são as suas causas, essas primeiras o são reciprocamente
pelas últimas, que são seus efeitos. E não se deve imaginar que cometo com isso
a falta que os lógicos chamam um círculo[126]; pois, como a
experiência torna a maioria desses efeitos muito certos, as causas das quais os
deduzo não servem tanto para prová-los como servem para explicá-los; mas bem ao
contrário, são elas que são provadas por eles. E não as chamei suposições só
para que se saiba que penso poder deduzi-las dessas primeiras verdades que
expliquei mais acima, mas que expres- |71 samente não o quis fazer para impedir que
certos espíritos, que imaginam saber num dia tudo o que um outro pensou em
vinte anos, tão logo ele lhes diz apenas duas ou três palavras a respeito, e
que são tanto mais sujeitos a falhar, |102 e menos capazes da verdade quanto mais
penetrantes e vivos são, não pudessem aproveitar a ocasião para erigir alguma
Filosofia extravagante sobre o que acreditariam ser os meus princípios, e que
depois me atribuíssem a culpa disso. Pois, quanto às opiniões que são
totalmente minhas, não as desculpo de serem novas, tanto mais que, se se
considerarem bem as suas razões, estou certo de que serão julgadas tão simples
e tão conformes ao senso comum que parecerão menos extraordinárias e menos
estranhas do que quaisquer outras que se possa ter sobre os mesmos assuntos. E
não me vanglorio também de ser o primeiro inventor de qualquer delas, mas antes
de não as ter jamais acolhido, nem pelo fato de terem sido proferidas por
outrem, nem pelo que possam ter sido, mas unicamente porque a razão mas fez
aceitar.
[11] Se os artífices não puderem tão cedo executar a invenção que é
explicada na Dióptrica, não creio que se possa dizer, por isso, que ela
seja má: pois, desde que é preciso destreza e hábito para fazer e ajustar as
máquinas que descrevi, sem que nelas falte qualquer circunstância, não me
espantaria menos se eles as lograssem no primeiro lance, do que se alguém
conseguisse aprender, num dia, a tocar o alaúde excelentemente, tão-só porque
lhe foi fornecida uma boa tavolatura. E se escrevo em francês, que é língua de
meu país, e não em latim, que é o de meus preceptores, é porque espero que
aqueles que se servem apenas de sua razão natural inteiramente pura julgarão
melhor minhas opiniões do que aqueles que não acreditam senão nos livros
antigos. E quanto aos que unem o bom senso ao estudo, os únicos que desejo para
meus juizes, não serão de modo algum, tenho certeza, tão parciais em favor do
latim que recusem ouvir minhas razões, porque as explico em língua vulgar.
[12] Além disso, não quero falar aqui, em particular, dos progressos que
no futuro espero fazer nas ciências, nem me comprometer em relação ao público com
qualquer promessa que não tenha certeza de cumprir: mas direi unicamente que
resolvi não empregar o tempo de vida que me resta em outra coisa exceto
procurar adquirir algum conhecimento da natureza, que seja de tal ordem que
dele se possam tirar normas para a Medicina, mais seguras do que as adotadas
até agora; e que minha inclinação me afasta tanto de qualquer espécie de outros
desígnios, principalmente dos que não poderiam ser úteis a uns |103 sem
prejudicar a outros, que, se algumas circunstâncias me compelissem a dedicar-me
a eles, não creio que fosse capaz de lograr êxito. Pelo que, faço aqui uma
declaração que, sei muito bem, não poderá servir para me tornar notável no
mundo, mas tampouco tenho o qualquer desejo de sê-lo; e ficarei sempre mais obrigado
àqueles graças aos quais desfrutarei sem impedimento do meu lazer, do que o
seria aos que me oferecessem os mais honrosos empregos da terra.
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