O INTELECTUALISMO NA POLÍTICA AMERICANA

Oliveira Lima

O INTELECTUALISMO NA POLÍTICA AMERICANA

Agradeço de todo coração as bondosas palavras que, em nome do corpo discente da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais, acabam de ser-me dirigidas pelo distinto bacharelando Sr. Gustavo de Sousa Bandeira — portador de um nome amigo, e que no nosso meio evoca capacidade e gosto intelectual, competência profissional e gosto literário. À honra que me foi feita e a distinção com que sou acolhido no meio da Faculdade só posso corresponder com minha sincera, com minha calorosa gratidão, tanto à ilustre Congregação como aos alunos, que de tais mestres só podem receber lições de operosidade, de dignidade e civismo.

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Com o intervalo de dezesseis anos tive o ensejo de assistir a duas eleições presidenciais nos Estados Unidos: a primeira eleição de Mac Kinley e a eleição recente do Woodrow Wilson. O espetáculo foi em ambos os casos idêntico: análogas as longas procissões de manifestantes de guarda-sóis de riscado e de chapéus altos com letreiros uns e outros; análogos os comícios de grande alarido e desanuviado humor, com música de pancadaria e berros selvagens imitados dos índios; análogos os transparentes luminosos anunciando as votações a multidões frementes de impaciência e contudo admi ràvelmcnte ordeiras. O que se não parecia era a personalidade do eleito, menos ainda a significação da eleição.

Mac Kinley, excelente homem, com todas as virtudes privadas de um puritano e todas as virtudes públicas de um democrata tinha entretanto em si e contra si um defeito: a fraqueza tantas vezes sintomática do político de profissão. Não quero dizer qur fosse um pusilânime diante das injunções dos magnates partidáriod, mas era tímido diante das correntes e não ousava afrontar os rede moinhos da opinião.

A guerra com a Espanha aparece-nos hoje como um resultado dessa timidez. Acaba justamente de falecer o velho General Wood-ford, veterano da guerra civil, que era o ministro dos Estados Unidos em Madri quando se deu o rompimento de 1898. Êle publicamente declarou e provou que a independência de Cuba poderia ter sido alcançada "sem o disparar de um tirerou a perda de uma vida". O ministro esforçava-se pela paz e diplomaticamente obtivera tudo quanto o Governo de Washington exigia; mas a maioria do Congresso queria a guerra, e o presidente não teve nervo político, faltou-lhe a suprema coragem moral para arcar com o seu partido, do qual dependia sua reeleição.

A humanidade contou mais uma luta, e a história menos um rasgo superior de civismo.

Mac Kinley era um político até a medula. Por conselho de um correligionário eminente e experimentado, que pretendia que um homem público devia sempre no interesse dos seus interesses consubstanciar-se com uma causa, isto é, tornar-se o representante de uma idéia ou princípio de Governo, Mac Kinley identificara-se com o protecionismo aduaneiro e foi levado até a presidência pelas influências plutocráticas, num momento aliás em que o partido adverso abraçara a reputada heresia financeira do bimetalismo.

Dezesseis anos depois — quanto caminho percorrido pela opinião! — o povo americano elevava à suprema magistratura um intcletual, um universitário, um professor que, ao aceitar dois anos antes a candidatura ao governo do Estado de Nova Jersejy, declarava franca c honestamente:

Não procurei esta designação, não tomei compromissos, nem fiz promessa alguma. Se fôr eleito, tenho a absoluta liberdade de servir o Estado com toda a individualidade de propósitos.

Por outras palavras, o candidato afirmava a doutrina de ser, no Governo, se o povo o consagrasse seu leader, o leader do próprio partido.

Não era contudo em prol de práticas desonestas que o homem d’Estado acadêmico reclamava essa posição de comando: era pelo contrário para moralizar, para dignificar, para exaltar a política. E assim aconteceu em Nova Jersey e assim vai acontecer no Governo da União em cuja esfera superior de resto nunca penetrou a corrupção, mas que já carecia retemperar a fibra ao contacto saudável dos ideais desinteressados.

Sabeis todos que Carlyle tinha ímpetos de profeta e chegava às vêzes a ser apocalíptico. Não o foi todavia — a sua profecia é crristalina — quando escreveu um dia:

O intelectual à testa dos negócios. Eis o fito de todas as constituições e revolções. quando elas têm algum fito. Pois o homem de verdadeira inteli-gênciai é sobretudo o homem de coração nobre, o homem leal, justo, humano e corajoso. Escolhei-o para governar-vos c tudo ektará bem. Deixai de esco-lhê-lo e mesmo que tiverdes constituições tão copiosas quanto as amoras da silva, e um parlamento em cada aldeia, nada irá bem.

Do fato da direção da maior república americana achar-se presentemente entregue a um puro intelectual, não se segue que interiormente não tivesse ela estado confiada a homens de real inteligência — mesmo no largo período em que a preponderância do Congresso foi tão assinalada que há quem se espante hoje que Clay c Webster, os quais dominaram o Senado, um pelo seu elevado Critério político, o outro pela sua sugestiva eloqüência, tivessem ambicionado trocar essa posição pela de chefe de um executivo peado na expansão da sua atividade.

Não permaneceu sempre assim a situação, e desde que assomou a consciência da grandeza e do poder da União, só tem feito crescer a influência do governo central, o prestígio do Presidente. Como lá dizem, os negócios públicos vão cada dia sendo mais atribuídos à solução direta desse mandatário por excelência do povo, e portanto subtraídos ao segredo das comunicações parlamentares e à anarquia das assembléias sem orientação coletiva e mesmo sem direção individual.

Woodrow Wilson, que personifica esta tendência como a personificou Roosevelt, talvez com menos estrépito mas certamente com não menor perseverança, chama-lhe "a adaptação ao meio" de uma Constituição que, longe de ser emperrada na prolixidade, tudo permite graças à simplicidade e elasticidade da sua feitura. Tanto importa falar na darvinização do Governo dos Estados Unidos, c com efeito por toda a parte a influência da teoria da seleção e da adaptação se estendeu da biologia à sociologia.

Acontece isto aliás com as idéias e doutrinas dominantes num dado período: elas invadem toda a esfera mental. Woodrow Wilson num dos seus discursos do ano findo recordou que a Constituição americana foi elaborada sob o influxo da teoria de Newton. O Federalista, o órgão de Hamilton e de Madison, refere-se com freqüência à organização do universo e particularmente do sistema solar, e lembra como, mercê das leis de atração e de gravitação, se conservam as diferentes partes dentro das suas respectivas órbitas, figurando o Congresso, o Poder Judiciário e o Presidente como uma imitação do mencionado sistema solar. Abrangendo este astro, planetas e satélites, depara-se acomodação para toda a gente.

Quer isto dizer que em todo tempo foi notável a ação do intelectualismo no Governo americano, quando mesmo todos os presidentes dos Estados Unidos não tivessem sido escritores co Madison e como Woodrow Wilson. O tipo do caudilho üetr é ali desconhecido. Facundo Quiroga, com o laço e as bolas co argumentos de discussão e processos de administração, perte à América Latina, se bem que dentro dela esteja sendo progress e felizmente eliminado.

Sobre que estribaria êle aliás a manutenção de seu poderio? instrução está-se generalizando, e o caudilho representa a ignor cia. O serviço militar está-se tornando o cumprimento de um de" geral e patriótico, subordinado à defesa dos lares e da honra n cional, e o caudilho representa a supremacia do espírito de casern com seus traços obsoletos de indisciplina, de turbulência e de sa gueira. A moralidade política está constituindo um ideal de governo, e o caudilho, se por vêZes, segundo foi o caso de Rosas, denotou escrúpulos de dinheiro, muito mais vezes representa a pilhagem organizada dos cofres públicos. A tolerância está-se impondo a todas as almas, pelo menos as bem formadas, e q caudilho representa o exclusivismo sectário, o espírito jacobino na sua pior adaptação americana.

Digo pior, porque esse espírito perdeu naturalmente com a transplantação: lá mesmo se adulterou com métodos diferentes de cultivo. O nivelamento das posições, isto é, das condições sociais, por outras palavras, o princípio de igualdade inseparável das democracias, mesmo das falsas sobretudo até das falsas, entrou a não implicar o nivelamento das fortunas, e das velhas fórmulas suprimidas pelo despotismo da liberdade, julgou-se útil recolher e reservar a fórmula do capital.

Os sistemas políticos não são construções meramente mecânicas em que as peças do aparelho se ligam com precisão tal e tal dependência que só podem funcionar automaticamente com todas elas em boas condições. Em Sociologia tem-se dito assaz que há que contar com o elemento humano, o qual é vivo e tem vontade, mesmo se o rege o determinismo. Por isso o mesmo sistema político pode aparecer sob as mais variadas e até opostas modalidades. Uma república pode ser um país de liberdade ou um país de.tirania; uma monarquia pode corresponder a um despotismo ou a/um regímen de livre opinião. O rótulo idêntico cobre líquidos di«rsos. Isto é de resto tão conhecido, que não perderei meu tempo,] nem, sobretudo, o vosso, insistindo nesse ponto.

Foi sobre o intelectualismo como fator da política americana que eu me propus chamar vossa atenção, correspondendo embora imperfeitamente à gentileza do vosso convite. É esse um fator novo num certo sentido apenas, o de escolher uma convenção partidária e sufragar o eleitorado como chefe da nação um intelectual sem tradições políticas, isto é, cuja carreira foi acadêmica e não restritamente política.

A evolução americana é porém tão perfeita que chegaram simultaneamente a esse estádio as duas grandes e tradicionais agremiações partidárias do país. Uma delas dividiu-se, como sabeis, como resultado de haver três candidatos em presença na eleição de novembro do ano findo. Todos três eram mais do que vulgares políticos.

A língua inglesa tem uma única expressão — a de politician — para o político e o politiqueiro. A nossa língua é mais rica. Será isto porque possuímos na verdade as duas espécies, ou será antes efeito da apregoada hipocrisia inglesa, hipocrisia que aliás na acep ção social deve ser considerada uma virtude? Seja como fôr, o fato é que por ocasião do famoso incidente motivado pela carta do ministro espanhol Dupuy de Lôme, que precedeu de pouco a guerra hispano-americana, houve que traduzir aquele último epíteto, de politiqueiro, aplicado pelo diplomata ao Presidente Mac Kinley, pre mundo-o do adjetivo low (baixo) — a low politician. Em tudo no mundo há altos e baixos.

Na recente eleição mediram-se, como disse, três candidatos, e de cada um se pode dizer que era um intelectual; um deles jurista, outro historiador e moralista, o terceiro, o vencedor, sociólogo e constitucionalista. 

A luta foi mesmo uma luta de individualidades, porque em matéria de princípios de administração, os três programas adotados pelas convenções nacionais respectivas — republicana, progressista e democrata — eram tão parecidos que mais estava em jogo o sentimento do eleitorado, ou por outra, a simpatia pessoalmente inspirada por cada um dos nomes, do que a sua inteligência, isto é, a compreensão e predileção por tais ou quais idéias de governo.

De fato resultou que o político de menos magnetismo sobre as massas, o ex-presidente Taft, foi o menos aquinhoado na votação, tendo porém o incontestável prestígio de Roosevclt como poderoso rival que o levou afinal de vencida, o influxo todo intelectual e moral de Woodrow Wilson, o qual surgiu impoluto na arena, como um Lohengrin invocado pela política num momento intricado.

Dele traçou um admirador anglo-americano o seguinte perfil que eu reproduzo porque, se estivessem ainda em moda nas letras os modelos, eu o apontaria como um modelo presidencial, a saber, o ideal do que deve ser o chefe de Estado de uma democracia, quando esta democracia possui educação política e cívica:

Um intelectual que nunca foi um recluso, mas que se tem larga c livremente associado com os homens e os acontecimentos; um historiador e publicista judicioso e incisivo, cujas opiniões políticas descansam sobre um sólido fundamento de leitura, de cultura e de filosofia; um estudioso que há aprofundado as coisas com paciente proficiência; um escritor c professor que tem aplicado seus conhecimentos à discussão, crítica e esclarecimento de medidas e ocorrências tangíveis; o chefe de uma grande Universidade e o governador de um rico Estado, que à sua ciência dos livros assim acrescentou uma experiência contínua e completa de administração; um orador de estilo feliz e atraente, desprezando os lugares-comuns e as vituperações e generalidades da retórica partidária, antes fazendo apelo à razão e à consciência e mantendo-se sempre num nível elevado de pensamento, sentimento e praticabilidade; um homem com o real estofo de um estadista, cheio de seiva e de alacridade, de clara e larga visão, vivo e espontâneo espírito, sedutora singeleza e natural simpatia; uma espécie de Balfour em quem houvesse distinguido Chambcrluine alguém cujas convicções, sugeridas pela reflexão, são defendidas com perti nácia e traduzidas por atos que denunciam a marca de um verdadeiro leader

Esta marca resulta de toda a personalidade do atual presidente dos Es tados Unidos, que para mais, como teorista do sistema, enxerga na função executiva o centro das forças vitais da opinião e da iniciativa política, São suas as seguintes palavras a respeito, proferidas na Universidade de Colombia:

"Somente o Presidente é eleito pelo povo em massa, sem constituintes locais, alheio a qualquer interesse particular. Se êle interpretar fielmente o pensamento nacional e tiver coragem bastante para insistir em rcalizá-lo tornar-se-á irresistível.

É claro que um indivíduo sem cultura, e mesmo sem grande cultura, nunca poderia interpretar fielmente o pensamento nacional. É preciso que o seu espírito tenha receptividade bastante para recolher, condensar e assimilar as correntes da opinião; é mister que êle possa ser, numa expressão muito favorita da nossa lingu" gem jornalística, um expoente de civilização. Até que ponto o p derá ser quem não fôr um intelectual?

As eleições recentes de chefe da nação na França e nos Estados Unidos provam que em ambos os países se chegou a tal compreensão. Já não falando da França, cuja posição todos conheceis na vanguarda da cultura não só latina como humana — tanto menos podia o intelectualismo ser nos Estados Unidos uma condição de afastamento dos altos cargos políticos quanto representa uma das preocupações vivas da nação; eu devera antes dizer uma das suas forças vitais.

Os Estados Unidos, com efeito, não são o país exclusivamente dos apetites materiais, que muitos supõem: são também um país de nobres aspirações morais e de vigorosos esforços espirituais. Em parte alguma são as letras mais acatadas, e este culto da inteligência é tão consciente que se identifica com o culto da tradição intelectual, constituindo o passado literário da Inglaterra motivo de carinho e tema inesgotável de trabalho.

Este apego ao tradicionalismo combina-se de modo curioso com uns restos daquele antigo jacobinismo nacional, oriundo jda vanglória da sua organização independente e republicana, depois Me sacudido o jugo colonial e realengo, que fazia os americanos eyixergar no sistema monárquico a fonte de todos os males humanos. Ainda hoje não é raro ouvir-se entre eles desfazer dos reis e dos nobres, achar supérfluas e mesmo ridículas tais pretensas superioridades sociais; mas o número baixou a uma proporção diminuta dos que ingênua ou calculadamente fazem db seu credo democrático meio de basófia ou instrumento de opressão.

A evolução é aliás natural. É sabido que na França já os jacobinos do Diretório dando embora golpes de estado e deportando para Caiena, de mistura com os realistas, os colegas incômodos de feição republicana, se engalanavam com plumas e veludos, renunciando portanto ao epíteto de Sans-culotte, e montavam nos salões de Luxemburgo um arremedo da corte das Tulherias com as mesmas mesuras e as mesmas lisonjas.

Os demagogos latino-americanos, não pondendo ostentar coroa, porque a tanto se opunha o ciúme dos concorrentes, consolam-se, como acontecia com o presidente Castro de Venezuela, com um gorro de veludo com folhas de louro bordadas a ouro. Dir-me-eis que é um gorro de boticário. É possível, mas é naquele caso a adap-tação burguesa de um diadema imperial. São ambos atributos cesarianos.

Nos Estados Unidos ouvi em novembro último uma anedota que me revelou não ser tampouco indiferente aos sóbrios republicanos norte-americanos terem pontos de contacto com as realezas.

Contou-me o velho Presidente Eliott de Harvard a quem o Presi-dente Woodrow Wilson agora ofereceu a embaixada de Londres e que durante quarenta anos dirigiu com superior proficiência aquele célebre centro de ensino e de cultura, que lhe coubera a honra de aconpanhar o Imperador Dom Pedro II na sua visita à Universidade e outras curiosidades de Cambridge, entre elas a casa do poeta da Evangelina. Seja dito de passagem que, incansável, o Imperador Rio perdoava detalhe algum, e às três horas da tarde, por mais instâncias que houvesse empregado o Presidente Eliott, não se resignara ainda a lunchar e reclamava a peregrinação ao túmulo de um famoso pregador protestante.

O dia de setembro estava quente e Dom Pedro II trazia um Chapéu do Chile finíssimo, que chamou a atenção do seu ilustre cicerone. No verão imediato, teve este de fazer as honras da Universidade numa primeira visita, que é de tradição, ao governador então empossado do Estado de Massachusetts, o General Benjamim Butler — general da guerra civil e político de reputação um tanto tisnada — uma infelicidade que pode deixar de acontecer, porque se não há fumo sem fogo, às vezes há fogo sem fumo.

O general trazia à cabeça um chapéu do Chile de alto preço. O Presidente Eliott observou-lhe que só uma vez vira outro igual. O general franziu o sobrecenho e achou a reflexão atentatória da sua quase majestade: só se lhe desenrugou a fronte e acudiu aos lábios um sorriso lampeiro quando o Presidente Eliott ajuntou que o chapéu rival cobria a cabeça de um legítimo imperador.

Este Presidente Eliott foi um dos mais gratos conhecimentos que recentemente fiz nos Estados Unidos, e ao seu nome posso juntar os dos presidentes Angel e White, das Universidades de Ann Arbor e de Cornell, como completando um trio encantador de octogenários que, uma vez voluntariamente despojados das pesadas funções executivas que desempenhavam nos referidos estabelecimentos de instrução, ali ficaram guiando os mais novos com seus exemplos e conselhos e interessando-se vivamente pelos progressos científicos e morais efetuados em redor deles.

Dois desses velhos pedagogos exerceram funções diplomáticas no exterior: Angell foi encarregado de missões na China e na Turquia, e White foi ministro em São Petersburgo e embaixador em Berlim.

Não é de hoje portanto que data o consórcio do intelectualis mo com a diplomacia americana. Quanto a Eliott, recusou há pou cos dias a embaixada de Londres, por motivo da sua avançada idade, mas nem por isso deixou o Presidente Wilson de confiá-la a um intelectual, e um intelectual sem fortuna, isto logo depois de a haver gerido um milionário como Whiteaw Reid.

O novo titular da embaixada de Londres, que é um homem rcspeitabiiíssimo e de alto valor, embora ainda não seja uma celebridade no seu próprio país, chama-se Walter Hines Page e dirige uma revista mensal que se edita em Nova York sob o título do World’s Work (Trabalho do Mundo). O nome indica assaz a índole da publicação. São problemas sérios os que aí se agitam, problemas econômicos e sociais, que sobretudo interessam o bem-estar do povo. Um correspondente do Times apelida o redator de "doutor em filosofia da vida", porque a sua vida tem sido toda ela devotada a promover a felicidade humana, e outro fito não teve agora sua entrada no serviço diplomático — como o compreendemos mal entre nós! — senão completar a faina da sua vida, fazendo derivar os maiores benefícios possíveis para a humanidade da amizade entre os dois maiores impérios do mundo.

Chamo império à Grã-Bretanha porque o é pela imensidade dos domínios e territórios e pela variedade das nações que compõem os alicerces do seu trono tradicional, c chamo império aos Estados Unidos porque o é pelo espírito de expansão que ali prevalece — fatalmente dominador pela energia de que provém — e pelo caráter pessoal do seu regímen eletivo. Um e outro correspondem a aspectos do velho, clássico e modelar império romano.

Entre os comentários feitos à nomeação do Sr. Page, alguns há que merecem ser conservados porque indicam quão fundo vai o intelectualismo, imprimindo seu cunho na vida política americana. Particularmente folguei de lê-los, visto se harmonizarem perfeitamente com idéias que tenho vindo advogando desde anos e que algum dia serão também entre nós inteiramente aplicadas na esfera diplomática. /

Assim escreve textualmente o New York Times que se o Sr. Page der um novo exemplo aos diplomatas americano! quanto à maneira de viver, evitando ostentações que, longe de aumentarem o respeito pelos Estados Unidos como nação, apenas fortalecem a errônea impressão estrangeira de que toda a gente é ali inclinada a extravagâncias, o país deve ser felicitado por tal nomeação.

Por seu lado, o Times de Londres, recordando as preocupações e esforços do novo embaixador no tocante à educação popular, à saúde pública, à vida e indústrias rurais — como isto soa diferente das futilidades julgadas inseparáveis da carreira! — e recordando também a larga, fecunda obra realizada pelas suas incessantes conferências através todos os Estados Unidos, ajunta, como um título de honra para o nomeado, que na Inglaterra mais lhe tomarão o tempo as reformas sociais do que as intrigas internanacionais,, nele devendo além disso a gente pensante do país encontrar um elemento de grata convivência.

A gente que se diz da moda será pois a única a lamentar que a Embaixada Americana volte à sua antiga simplicidade democrática, a uma singeleza altamente intelectual e portanto depara a e legítima elegância, mas essa é gente que quer a fina força identificar a diplomacia com a libertinagem mundana. Para isso não valia a pena que os governos subsidiassem fora todo um pessoal era senão mais divertido, mais patriótico fazerem a pândega em casa.

Woodrow Wilson entende, porém, as coisas de feitio diverso. colocando em Londres o homem que apresentou ao público ame-rtican o Príncipe Kropotkin e Booker Washington, a saber, um propagandista da anarquia e um educador da raça negra, o presi-dente dos Estados Unidos não só presta um novo tributo ao intelectualismo como presta uma bela homenagem ao espírito reto, tolerante e idealista do povo britânico, entre o qual o Sr. Page será o embaixador da intelectualidade americana.

Para a sociedade britânica — diz ainda o Times — a Embaixada Americana em Londres vai ser um lar de cultura e refinamento, um home singelo, não mais um palácio, mas tanto mais representa-tivo quanto a esposa e a filha do embaixador pertencem ao número dessas senhoras de valor-próprio, de adaptação fácil a outros meios e de inteligência superior, que são talvez o produto mais característico, em todo caso mais precioso, da grande república.

A ampla tolerância, indício certo de fortaleza mental, porque não se trata aí da indulgência gerada pela pusilanimidade, que a Inglaterra faculta às idéias gerais, ela a faculta igualmente às convicções individuais, e escusado é ajuntar que a dispensa não menos às formas de governo e aos sistemas sociais por mais variados e opostos que sejam às concepções nacionais.

O povo britânico, como aliás qualquer outro povo culto, tanto cerca de formas exteriores de respeito o embaixador da Rússia autocrática, quanto o ministro do Portugal revolucionário, o embaixador da Turquia humilhada e virtualmente escorraçada da Europa, quanto o embaixador da democracia Americana em admirável florescência. Com esse respeito exterior, entretanto, vai também a simpatia íntima, afinada pela compreensão intelectual.

Apenas essa simpatia se encaminhará para o enviado americano como para nenhum outro, já porque êle representa um produto da mesma raça c não mais subsistem os ciúmes de família, já porque existem todas as probabilidades de que a impressão humana que de si dará aquele enviado seja a menos convencional e a mais direta. E tanto mais assim acontecerá quanto mais intelectual se revelar o indivíduo, porquanto significará que tanto mais intelectual é o meio de onde êle provém.

Note-se que intelectualismo não quer forçosamente dizer literatura, no sentido restrito da palavra, isto é, que há muitas outras formas dele se manifestar sem ser pela poesia, pelo romance ou pela história. A modalidade mais vigorosa da inteligência é até a científica. Em parte alguma eu tive a sensação da nossa cultura, e a tive com imenso orgulho do que valemos nesse terreno, como há poucos dias no Instituto Osvaldo Cruz.

A capacidade superior e a vontade igualmente superior de um grande homem de ciência realizaram aquele prodígio intelectual; organizaram aquele centro extraordinário de pesquisas patológicas em que os pormenores são tão cuidados quanto é compreensiva a concepção geral; levantaram aquele monumento de operosidade, de honestidade profissional e de profundo saber, que honra por forma tal o nosso país, que bastaria para justificar-lhe a soberania, se alguma coisa houvesse que a ameaçasse. Tal é, meus jovens amigos, o prestígio da intelectualidade.

Existem, repito, cem formas diversas de manifestar-se e de agir a intelectualidade. Entra ela contudo a manifestar-se deveras quando se forma a consciência da tradição nacional, quando deixam de abrir-se para a inteligência coletiva de uma sociedade soluções de continuidade no desenvolvimento da sua cultura, na evolução do seu passado. Fraca será toda intelectualidade que não tiver a posse, que não experimentar a vangloria de si própria, e esta vangloria só a pode fornecer a tradição.

Os observadores da sociedade argentina são concordes em dizer que o sentimento aristocrático ali acompanha e supera o sentimento democrático, neste sentido que as ondas contínuas da imigração estrangeira, a maré cheia de trabalho, de progresso e de riqueza que representa a introdução constante de colonos europeus, encontra como um dique a conter-lhe a inundação, que de contrário afundaria todo caráter local, o quase orgulho de casta que conserva as velhas famílias platinas, pelo sentimento muito mais do que na realidade, acima do nivelamento comum trazido pelo bem-estar e pela opulência.

Velhas famílias são aquelas cujos ascendentes figuraram nas lutas da Independência ou na administração colonial. Constituem elas agora uma oligarquia, não tanto política quanto social — digamos antes uma aristocracia, mesmo porque não há sociedade bem organizada sem uma aristocracia, seja ela a do sangue, a cio dinheiro, a do talento ou a da virtude. I

Aristocracia significa apenas para a mentalidade jacobina uma classe encastelada nos seus odiosos privilégios, mas pode significar aos olhos do sociólogo a seleção operada na massa social. Oligarquia que supõe o exercício, a efetividade do mando.

Enquanto aquela seleção, aquela aristocracia trabalha e produz, como ainda é o caso na Argentina e só vai deixando de sê-lo nos Estados Unidos por parte de uma fração muito diminuta, sua ação é útil; quando passa a só consumir e desperdiçar, sua ação entra a ser prejudicial, e, distinguindo sobre ela o colorido cosmopolita, cai na vulgaridade da libertinagem internacional.

Sabeis a que excessos de luxo, dignos da decadência romana ou antes bizantina, chegaram alguns milionários norte-americanos.

Na Argentina o ruim influxo de Paris — que os tem excelentes e péssimos, segundo o gosto do freguês — é visível sobre certo ele-mennto nacional, mas a proporção é pequena, como aliás o é nos Estados Unidos, para um todo social que ainda se distingue geral-mente pela prática do bem e pelo cultivo das virtudes austeras.

O orgulho é até certo ponto ou num dado sentido um elemento de saúde moral. Diz Jules Huret no^eu último volume sobre a argentina, e êle o diz com uma malícia encantadora, que não há diferença entre o orgulho de um estancieiro ao mostrar as árvores plantadas pelo avô, e um descendente dos cruzados ao apontar para a arvore genealógica que faz figurar o seu brasão na batalha de Bouvines, à sombra do estandarte de Filipe Augusto.

Na Argentina, como nos Estados Unidos, já existe uma sociedade universitária que abriga os melhores representantes intelectuais, amigos necessários da tradição. Ora, o verdadeiro intelectualismo começa onde finda a intolerância boçal. Enquanto os Estados Unidos desprezaram seu passado britânico, deram mostras de intolerância e de iniquidade. Hoje, que o apreciam e defendem, dão provas de inteligência e de eqüidade. O mesmo se pode dizer com relação às nações neo-espanholas da América, onde o sentimento de carinho pela mãe-pátria substituiu o de aversão, que se explicava, embora se não justificasse, pela longa luta armada de 1810 a 1825.

Entre nós bem raro será o propagandista da República — se algum há, e este mesmo falaria contra a sua própria consciência — que ainda julgue necessário apelidar a monarquia liberal de Dom Pedro II um regímen de opressão e de crueldade. Como se a República se não honrasse muito mais, e os seus princípios e os seus fins, prestando um merecido tributo de justiça e afirmando os antecedentes democráticos que a fizeram possível!

O sentimento comum de tolerância, que denuncia aquele estado de espírito em relação ao império, é em abono da nossa intelectualidade. Nos Estados Unidos, porém, o intelectualismo cristalizou-se em todo o país com limpidez tal que vemos a curul presidencial ocupada por um homem que não possuía para merecê-la mais do que os seus títulos de professor, de conferencista e de publicista.

Foi a mulher americana quem iniciou essa bela obra de tradicionalismo, fundando a Sociedade das Filhas da Revolução, a qual se espalha por toda a União, ligando-a no culto de um passado comum. À tal Sociedade pertencem exclusivamente as senhoras que podem tracejar sua ascendência até a participação na guerra da Independência. Um congresso anual, efetuado num dos mais formosos edifícios de Washington, edifício grandioso, especialmente construído para a associação, congrega todos os elementos dispersos numa tocante homenagem aos esforços do passado e aos esforços do presente, que visam uns e outros à maior grandeza da pátria.

A obra da Sociedade das Filhas da Revolução Americana só ganhou porém foros de legítima cultura e começou a integrar-se quando principiou a varrer da inteligência coletiva as falsas lendas criadas na exacerbação da luta, mas hoje deprimentes para o sentimento de eqüidade de um grande povo. São semelhantes lendas as que se referem a uma época de opressão e de opróbrio represen tada pela tutela inglesa.

Quando os americanos, sem renegarem o seu ardente patriotismo, entraram a fazer justiça à colonização que engendrou a sua nação; quando deixaram de repudiar, antes passaram a orgulharem-se das suas gloriosas origens; quando cessaram de enxergar tirania do vergonha onde só havia administração, segundo o espírito geral tempo e franco movimento de civilização — é porque tinham atingi do a plena cultura.

Surgira em todo o seu esplendor o sol do intelectualismo, ba nhado nas nuvens róseas da tradição, e este intelectualismo, depois de clarear as letras, de dourar o convívio social, de pôr em luminoso destaque a missão da mulher na evolução nacional, alcançou a política, iluminando-lhe os recantos mais sombrios, devassando-lhe os arcanos mais comprometedores e saneando-lhe a influência que sabeis todos, tanto pode ser extremamente benéfica quanto extre mamente corruptora.

Ela o é extremamente corruptora quando patrocina a desonestidade e protege a imoralidade. Tem-se dito, e com razão, que a eleição de Woodrow Wilson não foi só um triunfo do intelectualismo: que foi também uma vitória da seriedade administrativa. Neste terreno, bem como no da guerra à plutocracia, culpada da desmoralização, se travou com efeito a luta. Não deve isto contudo significar, como é crença comum em certos círculos — que o governo da nação americana respira numa atmosfera viciada.

Há decerto nos Estados Unidos exemplos da falta de escrúpulos na gestão dos dinheiros públicos, mas sobretudo nas esferas mais baixas do Governo, nas administrações municipais. Ao geral desdém dos nacionais pela política militante, melhor dito, pelas funções políticas, desviadas como têm gradualmente sido suas atividades para os negócios, para o industrialismo e para as pesquisas intelectuais, há que acrescentar e considerar 6 avultado número de estrangeiros que constituem em muitos pontos, particularmente cidades, a matéria-prima eleitoral.

Tammany Hall, o clássico ninho de corrupção oficial de Nova York, é uma sociedade composta cm sua grande maiorA de irlandeses. Nunca houve, porém, um Presidente da RepúblÉa de cuja honra se pudesse suspeitar e entre os seus colaboradores filou célebre, pela singularidade e pela imediata punição, o caso de suborno de um Secretário de Guerra do Presidente Grant. Nos Estados Unidos não é excessivamente raro ver senadores e juízes prevaricadores tomar forçados, já se vê, o caminho das prisões, e mesmo na política de quarteirão uma reação moralizadora acaba sempre por se impor e varrer os elementos menos asseados.

A honestidade na política figurou de fato como uma grande aspiração na eleição do intelectual que preside neste momento a União, e em cuja alma reverdece o idealismo puritano que está na base da mentalidade americana e do caráter americano.

Tem-se afirmado com a segurança da ignorância que o puritano é um ente de escassa imaginação, e que por isso a civilização dos Estados Unidcjs aparece tão utilitária. Ela se tornou utilitária porque as circunstâncias favoreceram toda a expansão da riqueza nacional. O puritano, isto é, a espécie de homem que criou a nação americana, não podia deixar de possuir imaginação. Não pode ser destituído dela alguém cuja vida é um constante conflito espiritual: a luta pela liberdade desperta vivamente a imaginação.

E o autor americano que escreveu estas palavras ajunta:

O homem que tudo aceita como fato consumado, para quem as coisas do céu e da terra são uma finalidade, que nunca foi levado a interrogar a significação da vida ou o mistério da morte, que tudo^ aceita sem indagar de Coisa alguma, esse é que se move como uma visão estreita e é surdo à voz dos impressões.

Que nunca seja este o vosso caso, meus jovens amigos, para elevação e dignidade da nossa cultura, da qual o intelectualismo só poderá constituir* uma feição permanente e vigorosa, não diletante mas orgânica, quando lhe fôr dado o ensejo de agir eficaz e decisivamente sobre a administração e a política, em nome de princípios superiores de civilização e de moral.

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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