O MOVIMENTO CONSTITUCIONAL NO BRASIL. O ÚLTIMO MINISTÉRIO – D. João VI no Brasil – Oliveira Lima

D. João VI no Brasil – Oliveira Lima

 

CAPITULO XXIX

O
MOVIMENTO CONSTITUCIONAL

NO
BRASIL.

O ÚLTIMO
MINISTÉRIO

A corrente constitucional, em comunicação com os dínamos de Lisboa,
seguiu no Brasil a direção norte-sul. A primeira descarga deu-se no Pará, onde o pronunciamento
militar ocorreu no dia 1? de janeiro de 1821. O governador conde de Vilaflor (futuro duque da
Terceira) estava ausente no Rio, administrando a província um governo interino. "Não era
difícil — observa
nas suas Memórias o marquês de Santa Cruz968 — fazer aceitar as mudanças da metrópole em
uma província, onde predominava a influência portuguesa, e regida por uma administração
fraca e sem prestígio."

A Bahia já antes disso não inspirava confiança. A 2 de dezembro escrevia
Thomaz Antônio ao rei: "É conhecida de V. M. a manobra secreta da Bahia: todo o mundo conhece e
teme."969 E logo se tratou em despacho de mandar para a antiga
capital colonial o conde de Vilaflor, licenciado, que foi efetivamente nomeado, mas não seguiu
porque lhe embaraçaram
a partida as surdas tramóias da facção liberal.970 A 20 de janeiro ainda Thomaz Antônio instava971
pelo embarque do governador para seu destino,
visto não serem boas as notícias e estar iminente o tumulto.

A escolha de Vilaflor foi mesmo o que o apressou. O
governador conde
da Palma andava enfermo, e não urgia tanto executar a sublevação já que a repressão não cabia em suas
forças; mas o despacho de um militar desempenado como o que seria um dos dois
grandes marechais da Restauração, fazia supor intentos violentos e era mister
tocar a rebate. Portugueses
e brasileiros esqueceram seus ódios, forças reinóis e nacionais imolaram suas animosidades no altar
da Constituição, fraternizaram as duas facções que Palma quisera opor uma à outra,972
e o capitão-general malgrado suas veleidades de resistência, foi substituído a
10 de fevereiro, por uma
junta que confirmou a lei orgânica em embrião proclamada pela tropa e pelo próprio conde da Palma.

 

A
ordem prontamente se restabeleceu e prevaleceu a moderação nesse início revolucionário, apesar
de ter havido mortos e feridos no motim, ocorrido sobretudo pela atitude de
Felisberto Caldeira Brant (futuro marquês de Barbacena) que à frente de algumas forças
compelidas à fidelidade,
pretendeu assegurar praticamente a legalidade. O cônsul francês Guinebaud escrevia porém poucos dias
depois973 a Maler: "Até aqui a autoridade real foi mantida pelo
menos nominalmente, mas, pelo amor de Deus, se estiverdes com o rei, ou com seus ministros,
dizei-lhes que reconheçam depressa e regularizem tudo isto, porque dentro de três meses não será
mais tempo. Nem
mesmo quererão mais reconhecer o rei e se declararão independentes."

É de crer que Maler conversasse com Palmela ou então no
espírito deste se
implantou incontinenti a mesma convicção, pois ao ser conhecida no Rio a insurreição baiana com
seus pormenores, sugeriu o ministro de Estrangeiros de Dom João VI o desembarque em São Salvador do príncipe real, no
caminho para Lisboa, indo na sua companhia o conde dos Arcos, muito considerado senão
popular na Bahia, e sendo o manifesto constitucional do soberano lançado ali, no próprio foco
brasileiro, que em tal se constituíra, de revolta.974 Palmela assim se valia da
insurreição a ver se ainda
podia determinar resoluções francas e definidas, enquanto Thomaz Antônio — a quem seu colega
injustamente increpava de inativo nessa ocasião — clamava pelo contrário por providências imediatas
de forças que sufocassem a sedição.

O tempo consumira-se nessa discórdia inglória e perdera-se o ensejo de uma composição, mesmo assim
problemática, conquanto escrevesse Maler para Paris975 que a menor concessão, o
menor desejo manifestado de remediar os abusos mais escandalosos, teria bastado
para conter os povos na
órbita do dever. Depois do motim da Bahia reconhecia ele que mais difícil se fizera satisfazer os
espíritos irritados pela obstinação do governo, não deixando os chefes dos
facciosos de imputar ao medo quanto se combinasse e publicasse, e julgando
todos de nada ser devedores à boa vontade de um gabinete que esperava até o
derradeiro momento para realizar
qualquer concessão.

Thomaz Antônio não era aliás o último em admitir nos seus memoranda ao rei, que ‘ ‘cada dia
vai sendo pior, e a demora a fazer desconfiança". Na Bahia, segundo informava o cônsul
respectivo, a Junta cuidara sem demora de aumentar e equiparar o soldo das tropas, não lhe faltando
recursos para isso porque de todos os lados lhes ofereciam. "São verdadeiros donativos voluntários,  ativam-se os consertos de várias embarcações de guerra
que se acham no nosso porto, para tudo há dinheiro."

O motim fluminense de 26 de fevereiro, que se seguiu
poucos dias à
divulgação do baiano, apresenta um duplo traço — brasileiro e português — mas foi nos seus intuitos
restritos muito mais português do que brasileiro. Motim militar, promoveu-o contudo no saboroso
dizer de uma carta
do tempo,976 a caixeirada que se nutre com a leitura dos folhetos
de
Londres. "O povo — comentava o
correspondente — ficou alegre com a mudança dos empregados públicos, e estou certo que
nenhumas promessas
o teriam satisfeito, uma vez que não principiasse por depor Tho-maz Antônio,
Targini, Paulo Fernandes etc. Entrou nesta deposição o Sr. conde de Palmela
único de todos que tem feito a sua obrigação, mas com o qual estavam descontentes por
isso que não despachou a todos logo que chegou; sendo aqui o constante sistema do ministério
desde o princípio do ano até o fim não fazer outra coisa senão ouvir as partes,
ler requerimentos,
e despachar absurdos — e por isso como o Sr. conde ia cortando os abusos em que tudo estava não agradou."

Os primeiros reformadores em qualquer época são sempre apedrejados, e no Brasil desse tempo
muito havia a reformar. "As coisas certamente estavam mal — prosseguia a missiva —, mais
prevaricação, mais delapidação,
e mais loucuras, não era possível haver; e por isso o estado da gente era má
também, e por isso não se contentavam sem uma cena como a de 26."

Simpática a toda a população pelas causas que a motivaram e pela orientação geral moralizadora
que proclamou, a cena de 26 de fevereiro teve como razão determinante
muito mais o despeito produzido entre o elemento português pela anunciada separação do regime
constitucional nos
dois reinos, do que mesmo a ânsia nacional por uma era liberal. O comandante da polícia avisara
diretamente o rei977 de que o decreto fora mal recebido e já se
falava "descaradamente que o que querem é a Constituição de Portugal. Como hoje se
deve publicar o decreto da junta seria melhor ver se nele se dava toda a esperança de que se
devia aceitar a dita Constituição com as
mudanças adaptáveis ao país ou dar as bases."

A organização da junta presidida pelo marquês de Alegrete e na quase totalidade composta de
brasileiros (três membros apenas eram portugueses), em que tanto confiava Dom João para abrandar o
partido americano,
desagradou em extremo ao partido europeu. Conta Maler978 que os editais, apenas afixados, foram
arrancados ou cobertos de imundícies e que nos cafés e botequins se esbravejava sem sombra de
comedimento.

 

Das praças e ruas os agitadores transportaram sua ação
para os quartéis,
intrigando no sentido das cortes e da união e provocando a sedição que devia amedrontar o rei,
forçá-lo à obediência constitucional à assembléia de Lisboa e convencê-lo de
partir em pessoa para não perder a um tempo toda a monarquia, ébria como andava
de novidades, alçando o velho reino o topete quase acima do trono, e preferindo as províncias dispersas do novo às liberdades
civis e políticas derivadas do pacto popular com a coroa à própria independência em corpo.

O movimento de 26 de fevereiro, em prol de uma Constituição vaga, foi por conseguinte tão
espontâneo quanto pode ser um movimento subversivo do seu gênero, a saber, que
a conspiração urdida e propagada por alguns cabecilhas, encontrara rápido e franco apoio
porque correspondia a
uma aspiração latente de mudança. Entre esses cabecilhas mencionava Maler979 um certo
major Antônio de Pádua da Costa e Almeida, filho do antigo comandante da praça de
Almeida, fuzilado em Lisboa como réu de traição por haver feito entrega dela ao marechal
Massena na sua invasão;
um outro major Antônio Duarte Pimenta, destacado para a índia, depois de ter militado com Lecor
e de haver sido condenado a três anos de prisão por mau comportamento e
insubordinação, mas protegido por "pessoas da família real"; o padre Góes,
clérigo que vivia escandalosamente em teatros e roletas, e o padre Macambôa, outro eclesiástico, que
advogava no foro.

Ajunta
o encarregado de negócios de França que estes foram os personagens que se destacaram no
pronunciamento, mas que pessoas de rang plus élevê teriam ajudado a empresa. Arcos
foi acusado pelos que lhe conheciam as ambições e atentaram no seguimento dos sucessos, e o príncipe
real não aparece isento de cumplicidade aos que reparam na celeridade com que compareceu no lugar de reunião das tropas
amotinadas desde a madrugada no largo do
Rocio; na facilidade com que se prestou a assumir a direção do levante, recebendo os protestos, as reclamações e as
imposições como se de tudo estivesse
e inteirado; na presteza com que do terraço
do teatro de São João, por entre aclamações frenéticas, jurou em nome do pai deferir quanto dele exigiam, exibindo
uma passividade que lhe não estava no
temperamento e apresentando ele próprio à multidão revolta, para aprovação, uma lista de ministros e
outros funcionários executivos —
intendente de polícia, general comandante das armas, tesoureiro-mor,
administrador da fazenda real etc. — preparada de antemão.

Seguido do novo ministério, que se tratou logo de reunir no salão do teatro, onde deliberavam os membros
do Senado da Câmara e os mais in

 

fluentes
do movimento, o príncipe, com a mão sobre os Evangelhos, aderiu à futura Constituição.
Desconfiado porém o povo de que ele pudesse, com todas suas anuências, não estar interpretando
veridicamente as disposições reais, obrigara-o a ir a São Cristóvão buscar a
aprovação do soberano aos atos que punham em prática os votos dos
manifestantes, e segunda vez o obrigou a
ir buscar o rei em pessoa.

Condescendendo a contra-gosto, Dom João compareceu e
renovou todas as declarações, repetiu todas as juras, confirmou todas as promessas, referendou todos os
compromissos e sancionou todos os atos do seu herdeiro, aceitando
antecipadamente qualquer Constituição que viesse de Lisboa e que ali se acabava
de aclamar na ignorância do que pudesse ser, na certeza em todo caso para os militares
europeus de que seria a tutela portuguesa reimposta ao Brasil. Foi então que se deu o conhecido episódio da marcha triunfal: num
entusiasmo delirante o povo desatrelou os cavalos e puxou a pulso, do Rocio ao
Largo do Paço, o coche dentro do qual Dom João, sucumbindo por fim a todas as angústias
morais dos quatro
meses passados, não encontrou mais tensão nervosa para sustentá-lo e cedeu ao pavor, desfazendo-se em pranto e quase
desmaiando.

No velho Paço, onde tantas horas felizes tinham deslizado para ele, deu
meio desacordado o rei beija-mão geral e, por entre alegres luminárias e repiques de sinos, voltou
de noite ao teatro para assistir à representação de gala com a Cenerentola de
Rossini. Maler, que no dia imediato correu ao palácio, encontrou o monarca de
vestes de cerimônia mas com os cabelos ainda despenteados e por empoar, e o aspecto mudado. "É
sem dúvida a
primeira vez — mandava o agente francês dizer para Paris980 — que me aproximei deste príncipe
sem lhe descobrir na fisionomia uma expressão de benevolência: apenas encontrei, e muito
manifestos, os estragos causados por
quanto acabava de correr."

Entretanto pelo seu novo ministro dos Negócios Estrangeiros
mandou o rei
declarar os seus enviados na Europa, para que informassem os governos junto aos quais se
achavam acreditados, que bem ao contrário do que em Laybach se afirmou, ele
jurara livre e voluntariamente, não coacto
e medrosamente, a divinal Constituição:

A verdade não se ofusca,
O rei não se engana, não;
Proclamemos, portugueses,
Divinal Constituição.981

 

Sempre divergente do marido, Dona Carlota ficara
radiante. Mandou
chamar o filho a quem beijou com efusão, chamando-lhe os nomes ternos de que
era tão amiga, cobrindo-o de elogios pelo seu proceder na data célebre de 26 de fevereiro
e dizendo orgulhar-se dele, enquanto Dom Pedro se deitava aos seus pés assombrado e comovido.
Também as jovens Infantas
agradeceram muito ao irmão suas atenções no referido dia, sossegando-as por meio de
freqüentes recados e mandando preveni-las, cada vez que troava o canhão, de que era em sinal de
regozijo, para que se não assustassem.982

"É inquestionável — rematava Maler — que o príncipe
real evidenciou naquela ocasião uma firmeza e presença de espírito que
surpreenderam e encantaram todos os espectadores; a meio de uma cena tão tumultuosa nunca perdeu de vista
todas as contemplações e deferências que reclamava
à família real." Não se pode com efeito negar que o papel de Dom Pedro foi em tão memorável dia saliente e
decisivo, e com tal ato se
prestigiou perante a população aquele que poucos dias depois o conciliador do Reino Unido953 chamava com ênfase "o amável, ínclito e heróico Jovem, glória dos olhos de todos os
fiéis vassalos" que aparecera como "o intercessor entre o
trono e o povo para S. M. outorgar a graça
de uma liberal Constituição, conforme ao espírito do século, empenho de
Portugal, voto do Brasil, e de todos os habitantes dos mais estados e
domínios da coroa".

Palmela era quiçá o único, com sua perceptibilidade e
gravidade habituais, a formar do Príncipe um conceito exato e não olhar para o
futuro com essas
confianças líricas. Em carta ao conde do Funchal,984 ele assim definia imparcialmente a atitude
do futuro Imperador nos sucessos de 26: "O p. real mostrou naquela ocasião o maior
desembaraço e presença de espírito, e mesmo muita fidelidade, porque a tropa quis sem dúvida
aclamá-lo e Ele
sempre atalhou esse último desaforo, gritando — Viva el-rei N. S. viva meu pai. Há contudo muita
gente que supõe que Ele estava instruído de antemão do que se meditava e é
certo que se deixa rodear e aconselhar por má gente. El-rei tenho chamado sempre desde esse dia
para assistir ao despacho."

Compunham o último ministério de Dom João VI no Brasil, imposto, não mais livremente
escolhido, o filósofo e publicista Silvestre Pinheiro Ferreira, o almirante Ignácio
da Costa Quintela, Joaquim José Monteiro Torres e o conde da Louzã, nos
Negócios Estrangeiros, reino, marinha e
presidência do Erário respectivamente.

 

Maler não poupa elogios a este pessoal administrativo, apesar de tão
revolucionariamente instalado no poder. Julgava o gabinete composto de homens esclarecidos,
Silvestre sobretudo, e em muitas coisas parecidos. "Seria difícil — reza seu
ofício de 28 de fevereiro — encontrar três pessoas985 mais simples nos seus modos; tenho
tratado familiarmente com eles nos seus modestos interiores e duvido que sua mobília valha mais de
100 luízes."

A ascensão ao poder de Silvestre Pinheiro Ferreira
indica por si só a
profunda
transformação que se operara no meio político. Era como se na França moderada de Ferry e de
Ribot — não na França radical de Cle-menceau e de Briand, tocando no socialismo — tivesse de
repente sido chamado
o Sr. Jaurès ou o Sr. Millerand para a presidência do conselho. Silvestre era não só um espírito
de uma independência fundamental e irre-conciliável, como um reformador implacável, posto que manso,
ao ponto de não raro parecer paradoxal e
ser por vezes quimérico.

Logo na primeira mocidade, quando se destinava à carreira
eclesiástica, desaveio-se com os diretores da Congregação do Oratório por motivo de remoques feitos à obra do
padre Theodoro d’Almeida — Recreação filosófica — e deixou a instituição sacra, obtendo depois em
concurso o lugar de
lente de filosofia em Coimbra. Da sua cadeira propagou o sensualismo de Locke e Condillac,
sendo por tal razão alvo de nova perseguição, tratado de jacobino e obrigado a
expatriar-se. Acolheu-o por essa ocasião em Paris Antônio de Aráujo, que teve influência
bastante para lhe alcançar o lugar de secretário da sua legação na Haia, da
qual, entrando para
a secretaria de Estrangeiros de Lisboa, passou a encarregado de negócios em Berlim, aí se
relacionando muito no círculo universitário e alargando seus conhecimentos de
ciências naturais e sua visão filosófica.986

Suas idéias foram sempre ganhando em liberalismo, e pela
vida adiante o pensador
propugnou os ideais mais adiantados, do sufrágio universal à abolição da pena de morte, da
eleição da magistratura à obrigatoriedade do serviço militar, do socialismo do estado, senhor
único do solo, à anulação
conseqüente do capitalismo. Se não tivesse sido modesto, probo, íntegro, imaculado não só de
mãos como de sentimentos, poderíamos compará-lo a Benjamin Constant, pela
circunstância de haver apadrinhado’o novo sistema representativo no Brasil.
Foi, como aquele ilustre doutrinário suíço, fraco político e excelente teorista, patriota zeloso,
tão austero porém
quanto dogmático, bondoso e afável em vez de egoísta e impertinente. Ao que
conste, nenhuma Madame de Staël sofreu cruelmente por ele.

 

Dom João VI apreciava-o e estimava-o sem
entusiasmo, nunca lhe tendo concedido a merecida distinção certamente por causa das suas opiniões conhecidamente constitucionais.
Demitido do cargo que exercia em Berlim, dizem que por exigência de Napoleão, voltara
Silvestre para Lisboa e mudara-se depois, não muito depois da corte, para o
Brasil, onde tão somente ocupou por anos os lugares de deputado da Junta do
Comércio e diretor
da Impressão Regia. Devia substituir nos Estados Unidos, como representante
diplomático, Corrêa da Serra quando o seu momento histórico pareceu soar com o movimento
de 1821. Chamado ou melhor empossado pelo motim militar e popular, o seu ministério
durou porém pouquíssimo e não influiu marcadamente na marcha dos
acontecimentos. Acompanhando
o rei no seu regresso foi residir em Paris, aí levando a vida de um estudioso e tornando-se
célebre como publicista jurídico, até vir mais tarde entregar a Portugal os frutos das suas
vigílias e meditações.

Silvestre
Pinheiro Ferreira, pelo que revelam suas cartas há pouco editadas, esteve quase único no
desencontro de opiniões que caracteriza esse instante histórico, em julgar a
revolução portuguesa no seu valor preciso. Nem a considerou insignificante, nem a encarou como o
fim da monarquia: para ele se não formulou sequer o dilema de dever o soberano
acu-dir às carreiras
a Portugal para salvar as instituições, ou ter que renunciar ao velho reino
pelo exclusivo do seu amor ao Brasil. Fiava dos imortais princípios a solução equitativa do problema.

De resto evento tão importante quanto aquele tinha sido
previsto por Silvestre,
chegando seis anos antes a prevenir o rei do que lhe guardava o futuro. Razão demais para não
perder a própria cabeça quando viu realizado seu vaticínio, e animar Dom João VI que, perdido entre cem pareceres
divergentes,
sensatos uns, incongruentes outros, que zuniam em redor do trono, ficara de todo pessimista,
reputando perdidos os negócios públicos.

Depois do 26 de fevereiro eram dois os partidos a querer
que Dom João VI deixasse o Brasil, pretendendo
naturalmente o patriota que Dom Pedro porém ficasse, pois de um mancebo assim
inexperiente e árdego se poderia facilmente fazer o instrumento da separação e da independência. O rei bem o percebia, e por isso
redobravam suas hesitações. De qualquer lado se lhe antolhavam revoluções. Advinhava que deixar o
Brasil seria perdê-lo,
se bem que em provável benefício da sua própria dinastia. Não ir porém para Portugal, era
perder completamente o reino dos seus antepassados, permitindo à revolução
constitucional que degenerasse em republicana, a não consentir numa reação absolutista,
sanguinolenta come muitos
a preconizavam. Ora, se havia um ponto em que concordassem plenamente Dom João e Silvestre,
era com certeza na antipatia às repressões
cruéis e na preferência pelas soluções brandas.-

A moderação não aproveitava contudo com personagens tais
como os cabecilhas
do motim de 26, que tiveram a petulância de exigir serem apresentadas ao rei. Eles estavam
formando o que Maler muito apropriadamente denominava um comité de salut public — comitê,
dizia ele, sem missão, sem autoridade e sem forças reais, a que entretanto bastava proferir
uma palavra para
ser obedecido pelo impulso do terror pânico que inspirava.987

Os exaltados que formavam a corte desses tiranetes, de
convicção uns e a maior parte de cálculo, imaginaram logo um conselho
extraministerial sem o assentimento do qual ficassem rei e governo proibidos de
tomar resolução
alguma importante sobre os negócios públicos. Em Madri, que se tratava de imitar ponto por
ponto, funcionara uma junta análoga antes da reunião das cortes, e no Rio já audaciosamente
circulava a lista de dez membros de que se devia compor o tal conselho
provisório. Entre eles só se contava um brasileiro, e este mesmo octogenário, porque o plano no fundo era antinacional como era na forma demagógico.

O que se queria era cercear mais e mais a autoridade suprema, escravizar o rei, cuja figura
desaparecia gradualmente diante da insubordinação e da anarquia, porque Dom João fraquejara por
completo na ignorância
do seu poder e do real valor da sua função soberana. Se, bem aconselhado, escrevia Maler, esse
príncipe fizesse encarcerar os dois padres Góes e Macambôa, as demonstrações de regozijo e as
luminárias seriam mais gerais do que o
foram por ocasião da Constituição.

Os energúmenos do constitucionalismo tinham
convulsionado uma cidade que até aí só com festas se alvoroçara, e açulado as
ruins paixões políticas.
No teatro os espectadores da plebe obrigavam a condessa de Belmonte a cantar as quadras e as
outras senhoras presentes a repetirem o estribilho
do hino nacional. A princesa real dera à luz a 6 de março e, nas cerimônias religiosas pelo nascimento do
príncipe da Beira, os sermões foram
todos políticos.988 A 12 em São Francisco de Paula, na função mandada celebrar pelo Senado da Câmara, diz
Maler ter ouvido, pronunciada do púlpito, uma diatribe contra os vícios da
administração "que infelizmente
não ofendia a verdade, mas certamente chocava todas as conveniências do sagrado ministério e da dignidade
real, ali presente e recebendo ao pé dos altares ensinamentos que estavam
longe de ser ditados pelo espírito da caridade cristã".989

Referia para Paris o encarregado de Negócios que, em duas entrevistas que tivera com Dom João VI, lhe aconselhara a medida
inadiável da detenção dos dois clérigos escandalosos que
provocavam o alvoroço, fazendo-lhe ver quanto eram ambos desprezados e de fato débeis pela falta
de ligações, odiando-os os brasileiros sem exceção e começando as tropas portuguesas a envergonhar-se
de haver partilhado com eles das glórias do 26 de fevereiro. Sem nada poder dizer em contrário a
Maler, tampouco acedeu o rei à recomendação, parecendo ainda em demasia penalizado e desfalecido com aqueles
acontecimentos para poder adotar qualquer resolução enérgica, por menor que
fosse; mas já começando a capacitar-se de que semelhantes indivíduos não possuíam influência alguma duradoura sobre as tropas.990

Estas estavam recolhendo, com os louros, as vantagens das suas façanhas políticas, fraternalmente
praticadas. Pelo decreto de 7 de março os soldos dos oficiais do exército do Brasil foram
equiparados aos do exército de Portugal e esta disposição se estendeu, com um
aumento simultâneo nas
tabelas, aos vencimentos dos oficiais subalternos e dos soldados dos dois reinos. As forças
européias, ao mesmo tempo que insistiam na comunidade de nacionalidade e de interesses,
timbravam todavia em não ser confundidas com as nacionais e em reivindicar a nobreza dos seus atos.

Numa representação ao rei, declarava a guarnição portuguesa da capital fluminense que o fito no
movimento político por ela executado fora salvar o Brasil da anarquia, atraindo-o à causa
portuguesa e destruindo projetos que pudessem existir, tendentes a segregá-lo desse centro de
unidade, único capaz de manter os interesses do Reino Unido.991
Arrastada pelo príncipe
real, ídolo então dos constitucionais portugueses do Brasil e que, se o pai lhe houvesse
dado consentimento, teria prendido os quatro cabecilhas do "dia 26, a guarnição renegava
esta passada intimidade e pronunciava-se contra quaisquer juntas provisórias no Rio de Janeiro,
protestando querer
apenas ver realizarem-se os planos de reforma gerados pelas meditações e sabedoria das
cortes, e não projetos concebidos por pessoas obscuras, às quais tão somente
competia obedecerem ao que fosse vontade
positiva de Sua Majestade.

Com esta manifestação militar se acobardaram muito os
cabecilhas que
estavam terrorizando o Rio, um deles, o major Almeida, pedindo ate logo o seu passaporte e todos
receando a detenção, quando até aí eles erários que promoviam as prisões. Respeitáveis membros
da junta anterior ac novo
ministério foram recolhidos à cadeia, depois de insultados, por exigências dos terroristas ou para
escaparem a tratamento pior às mãos de povo,
a cujo furor assim os subtraíram as
autoridades. A versão última é crivei se
atendermos a que, depois do aviso recebido pelos cabecilhas de se não
intrometerem mais nos negócios públicos, os presos foram soltos.

 

 A
agitação era o elemento natural desses personagens, e sem ela não poderiam mesmo exercer seus
talentos malfazejos. O conde de Gestas escrevia a 12 de março que os ajuntamentos populares
aumentavam de pa-relhas com a indecisão do novo governo, que nada fazia além de
proclamações as quais, pretendendo ser neutras, não satisfaziam partido algum,
enquanto que o rei se arreceava sem distinção de todas as facções, cedendo
porém alternativamente aos conselhos dos que acreditava serem seus chefes, à espera lá no âmago que
naquela confusão lhe fosse ainda poupado
— nem ele sabia mesmo como — o doloroso regresso.

 Os majores e padres que, instigadores eficazes e já experientes, tinham
andado acirrando a
soldadesca e a plebe para conservarem eles o domínio da situação, definiam na parte
que lhes tocava o estado de luta, apenas adormecida uns instantes, entre as duas correntes,
reinol e nacionalista, que doravante tinham de medir-se até extinguir uma sob
a outra. Os clubes portugueses queriam a todo transe ver os empregados brasileiros fora dos seus
lugares, das
secretarias, da Alfândega, do Desembargo do Paço, e foi o receio da chamada reação brasílica que
motivou as prisões arbitrárias de Luiz José de Carvalho e Mello (futuro visconde da Cachoeira),
Severiano Maciel (futuro
marquês de Queluz), Targini (visconde de São Lourenço) e almirante Pinto Guedes (futuro barão do
Rio da Prata), sugeridas ou antes arrancadas ao Rei sob pretexto de que suas pessoas iam ser
atacadas e maltratadas.

Silvestre Pinheiro Ferreira gabou-se de ter feito anular
aquela apreensão
de reação, dando-lhe cor de proteção contra os manejos dos que não podiam levar à paciência que o
Brasil saísse de vez da dependência colonial. Assim se estendendo do domínio teorético ao
prático, a ação do primeiro-ministro
de Estrangeiros de nomeação popular no Brasil, exercia-se de fato liberalmente sobre os
procedimentos irregulares ou mesmo violentos que os tempos originavam; acrescendo, no caso de
Targini — o único
dos presos que era impopular — que ele devia contas minuciosas da sua gestão de tesoureiro-mor, da
honestidade da qual suspeitava o próprio Silvestre, qualificando no entanto de
anarquistas os elementos que iam permitindo semelhantes atos discricionários como essas prisões.

Nem os resultados seriam afinal benéficos porque, para
reformar os abusos
e remodelar a sociedade política do tempo, não serviam processos vingativos: o que se fazia
preciso era uma mão de ferro, com um alto e sincero ideal, podendo em tal hipótese evidenciar um
absoluto desprendimento
de conveniências e de contemplações. O próprio José Bonifácio não evoca essa figura.

 

A medida, por exemplo, de tornar
efetiva, por meios forçosos ou voluntários, a entrada das dívidas dos particulares ao
Banco do Brasil — cujo
crédito para com o Erário tampouco se liquidou apesar da espetaculosa sugestão
do penhor das jóias da coroa —, indo bolir com muitas das pessoas mais poderosas da terra,
exigia na opinião de Silvestre um grau de energia para o qual se não sentiria bastante disposto
o ministério a que, mercê da partida de
Dom João VI, ficaria ao lado do príncipe confiada a execução daquela tarefa de restauração
financeira.992

Silvestre Pinheiro Ferreira fora, dentre os novos
ministros, o encarregado
de redigir a Carta Regia relativa à regência e bem assim as instruções que deviam ser deixadas com
o lugar-tenente real para guiar sua administração, na qual serviria de
primeiro-ministro o conde dos Arcos, enfim chegado ao topo das suas aspirações. Achava não
obstante Silvestre que
"todas e quaisquer instruções seriam consideradas como desnecessárias e impertinentes",
porque tanto Dom Pedro como Arcos andavam embalados por idéias erradas dos seus respectivos
talentos, prestígio e popularidade.

"Estão na lisonjeira e portanto indestrutível ilusão de que apenas
o Brasil se entregue
ao seu governo obedecerá com docilidade aos seus acenos: que debaixo do único
nome de Brasileiros e de um só império os povos desde o rio da Prata até ao Amazonas formarão
gostosos e tranqüilos uma
só família: e que Portugal caduco de anos e acabrunhado dos trabalhos da Revolução que vai a
acabar-lhe as forças ou se perde, e nele pouco perde o grande império do Brasil, ou para se
salvar invoca a proteção deste seu poderoso co-estado e pela segunda vez salva o Brasil a Portugal
da sua total aniquilação."993

É fato que apenas o movimento da independência, depois de traduzir-se pela aclamação do imperador,
lograria reunir por sugestão ou por força o que tão fragmentado andava, que
fora opinião muito vigorosamente exposta por Silvestre, compartilhada até certo ponto por
Palmela mas combatida
por Thomaz Antônio e outros conselheiros, que na volta para Portugal se detivesse o rei na
Bahia, como o fizera na vinda para o Brasil: desta vez, porém, na intenção de concertar a junta
local com o governo central,
desmanchar a desunião que se alastrava e deixar o reino ultramarino de algum modo ligado no seu
conjunto político.994

Tornara-se por fim inadiável, e de um modo absoluto, adotar uma resolução e uma norma sobre o
regresso. O momento aparecia quase ou mesmo tão angustioso como o de novembro de 1807. Já pela
demora a volta ia tomando
ares de satisfação às cortes, não mais de graça do soberano.

Os que favoreciam ou reputavam indispensável a ida do rei, sem quererem saber se esta lhe era ou
não agradável, contanto que servisse seus planos, argumentavam por forma que declaravam decisiva
com a sediça ameaça
da reunião de Portugal à Espanha, não mais forçada é verdade, efeito de uma conquista quase
impossível, mas levada a cabo pela solidariedade das idéias liberais e pela harmonia dos
interesses de defesa comum.

Consolavam-se outros, afeiçoados a um tempo ao novo regime e à pessoa do monarca, com a idéia de quanto para solução
constitucional se podia Dom João VI considerar preparado pela sua
cordura de ânimo, espírito
de reflexão e inclinação para os desenlaces legais e moderados.

Descortinavam alguns, mais sagazes ou menos confiados, que o reino do Brasil se iria dissolvendo
sem remissão com a adesão particular e separada de cada uma das províncias brasileiras às
cortes de Lisboa, e que era mister sustar a desagregação por meio de algum
processo mais enérgico do que a mera
presença de el-rei Dom João.

O
partido português apressava aquelas adesões destacadas porque es-facelavam o
país, e faziam naufragar, antes que saísse ao mar largo, o projeto de constituição brasileira,
diferente da portuguesa, que se asseverava com verdade haver ideado Palmela. O constitucionalismo
do ex-ministro, não
menos sincero, era tão oportunista, concreto e inglês no sentido de prático, quanto o de Silvestre
era doutrinário, abstrato e francês no sentido de teórico, posto aparecessem
um e outro igualmente de alcance porque partiam da inteligência mais que do sentimento. ”Mas
o fato é — escrevia
Silvestre995 sobre a desunião do laço político brasileiro que atava frouxamente as antigas capitanias
— que desligadas deste centro e de um sistema existente, para se ligar a uma autoridade, e
governar-se por uma legislação
que ainda não existe e talvez não existirá jamais, é dissolver todo o nexo social; é substituir a
um governo, defeituoso sim, mas enfim governo que tinha e podia seguir ainda um andamento
protetor dos direitos civis de cada
habitante, a mais completa anarquia."

Justamente quando se deram as imposições do dia 26 de fevereiro, de uma constituição desconhecida
e de um ministério que resultou incontestavelmente mais simpático à opinião pública — quer a
brasileira, por lhe
repugnarem aristocratas como Palmela e validos como Thomaz Antônio, quer a portuguesa, por se
lhe depararem no primeiro capacidade e pertinácia para encontrarem solução à questão posta —
estava, como vimos, prestes a publicar-se o decreto de adoção para o reino do
Brasil da Constituição
a fazer-se em Lisboa, sempre "salvas as modificações que as circunstâncias locais tornassem necessárias".

 

Tropa e povo não queriam porém ouvir falar em
modificações, por mais
razoáveis que pudessem ser, e só entendiam de formular exigências novas, ainda que disparatadas.
Na frase pouco incisiva literalmente, mas moralmente ponderosa de Silvestre, o
espírito de vertigem que dera impulso para o rompimento, continuava a laborar,
"porque nem é possível se contente com qualquer ordem de coisas que se estabeleça: nem na
atual se acham
investidas de poder as pessoas que detrás da cortina dirigiram os passos dos
que no dia 26 do mês passado figurariam para com o público."996

Silvestre,
penetrando destarte no jogo do partido português, chegou por isso a considerar plenamente
dissolvida a monarquia brasileira. Proclamando cada qual de per si sua submissão ao
governo revolucionário de Portugal, as províncias ultramarinas iam virtualmente sacudindo o
ju
go do Rio, mas para se encaminharem
para a recolonização, e de antemão justificavam o esforço considerável dos Andradas e outros
patriotas para unificarem
de novo o país, fornecendo-lhe um centro de ação e uma orientação conjunta e harmônica.

Esta questão de nacionalidade constituía o eixo em volta do qual continuaram
a girar, em março e abril, as discussões sobre o regresso da corte para Portugal. O novo ministério
opinava pela partida de Dom João VI por lhe parecer ser de todo ponto impossível ao rei acompanhar de tão longe a obra constitucional de
reforma, e haver o perigo concomitante de dar-se um cisma na monarquia: mais fácil entendiam os do
governo, de evitar-se,
estando o soberano na antiga sede da sua autoridade e permanecendo o príncipe como penhor da dinastia.

Dom João resignava-se sem se consolar. A sua partida ficou assente. Deixou-a el-rei perceber a Maler
no dia do bom sucesso da e Princesa real quando este foi a comprimentá-lo, e
anunciou-a Silvestre Pinheiro Ferreira em nota circular de 13 de março ao corpo diplomático
estrangeiro e às
legações na Europa. Segundo este documento, o príncipe só se demoraria no Brasil até se
estabelecer a Constituição geral da monarquia, ficando no porto a fragata União para oportunamente
transportá-lo com a Princesa.

Silvestre cedia neste assunto porque, entre os seus colegas de ministério, estava isolado no pensar que
a

Ia
desordem e pelas inovações. Identicamente raciocinava Maler, partindo de outras premissas e escrevendo
por seu lado que "os brasileiros cedo ou
tarde acordariam da sua apatia e nulidade e se não prestariam mais a ser o
joguete e o ludibrio de um punhado de portugueses".

A extrema distância entre o monarca e a Assembléia Constituinte
das Necessidades, julgava Silvestre que seria até vantajosa à sábia elaboração da lei orgânica da realeza
constitucional, corrigindo e ajustando a sua mais que provável confusão de
princípios políticos. A legislação subsidiária, preparada e promulgada no Rio, teria também outro
cunho de gravidade e
oportunismo; sem esquecer que, depois da tarefa política de Lisboa, relativa particularmente a
Portugal, restava confeccionar a Constituição brasileira que devia, juntamente
com a portuguesa, formar a base do Reino Unido, "podendo-se depois de todos aqueles
preliminares trabalhos e mais longe da influência dos partidos nacionais e das
potências estrangeiras (no caso de pretenderem intervir em prol dos princípios da
Santa Aliança)
mais
facilmente organizar
um sistema constitucional conforme as precisões de todas as diferenças, e tão
diferentes partes desta vasta monarquia".997

Na realidade — Silvestre o não queria certamente enxergar
— o rei passara a
ser um fator quase nulo dessas emergências. A perturbação da monarquia aproveitava em última
análise, conforme os pontos de vista, às cortes ou a Dom Pedro. Podia Dom João VI ser denominado el-rei Nosso Libertador nos artigos pesados e
grandíloquos com que enalteciam a assembléia de Lisboa — nossa Estrela Polar
— as folhas que entraram a pulular com a liberdade de imprensa,998 todas tão
declamatórias como vazias.999

A verdadeira apoteose passava porém por sobre a cabeça do bondoso monarca, desdenhando
aureolá-la, para iluminar as figuras dos libera-lões que, de casaca abotoada justa e colarinhos
altos, apertados os pescoços em largas gravatas de seda preta, tonitroavam nas Necessidades, ou então a do príncipe esbelto e
moreno que, no seu uniforme de dragão, galopava doidamente pelas ruas e estradas do Rio, ansioso
por desempenhar um qualquer papel
conspícuo.

Quando se tratou todavia muito a sério da retirada de Dom
João VI para a Europa, pode dizer-se que
a grande maioria senão a totalidade da população fluminense, esquecendo algumas das
conseqüências prováveis e para ela auspiciosas desse ato preliminar da
separação política, se uniu consternada num mesmo sentimento por mais que
aquela partida servisse os interesses de uns ou os desígnios de outros, pois portugueses e
brasileiros
contavam tirar proveito da mesma, o pensamento que prevaleceu no primeiro momento
entre os nacionais, foi o de pesar pela perda de um rei que todos se tinham acostumado a querer mais ainda do que a respeitar.
Choveram requerimentos, do comércio, do clero, de proprietários, de empregados públicos, implorando a permanência de
Dom João VI que os escutava comovido, trêmulo o
grosso lábio e as lágrimas a correrem-lhe
pelas gordas bochechas, sem ousar contudo pronunciar um fico.

Havia com certeza preocupações egoístas nessas súplicas, mas a parte natural e impulsiva, de puro
sentimento, era incontestavelmente superior. O egoísmo aliás se explicava. Compreende-se que na
atitude de fidelidade
ao velho rei entrasse, por parte do elemento brasileiro, mais numeroso mas menos forte que o
europeu, um certo instinto de defesa, uma impressão inconsciente, ou mesmo consciente em alguns, da
mútua confiança e apoio que se podiam
prestar, porquanto o ano de 1821, depois de
26 de fevereiro, foi o ano típico da opressão portuguesa num supremo esforço
de conservação.

Todo o rancor acumulado na alma do velho reino durante o
tempo da residência
brasileira da corte e causado pela afeição regia à colônia deixada quase império, espirrou
então pela válvula oferecida na antiga metrópole aos desabafos oratórios. No novo reino, a tropa
de linha, cuja oficialidade e cuja fileira eram em grande parte portuguesas,
estava senhora das posições e, conforme acontece sempre nas revoluções, os
piores elementos
tinham vindo à tona e nada obstruía o livre curso dos ressentimentos.

As cortes tinham-se reunido em Lisboa com o visível,
declarado intento de recolonizar o Brasil, e tanto bastava para que se
tornassem populares
entre o elemento reinol além-mar. Todos os movimentos reflexos de constitucionalismo que ocorreram,
não foram, olhados por esse prisma, mais do que outros tantos indícios de má vontade à
aspiração nacionalista
do país que se organizara independente de reação contra a própria autonomia concedida ao reino do Brasil.

Durante aquele ano o príncipe herdeiro conservou-se do lado português.
Depois foi que o esforço de persuasão dos elementos nativistas, a natural inteligência da situação
e as violências declamatórias das cortes o determinaram a inclinar-se para o
outro lado e lançar na balança, no prato da separação, todo o peso do seu
prestígio pessoal e todo o valor dos seus direitos de sucessão soberana. 1822 seria o ano
brasileiro, como 1821 foi o ano
português.

 

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