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A
cidade do Salvador, instituída na baía de Todos os Santos por Tomé de Sousa em
1 549, figura outro centro considerável de povoamento de nossa terra.

D.
João III tomou-a sob
sua especial proteção, enviou-lhe colonos, forneceu dinheiro, adiantou escravos
e mercadorias, isentou ou aliviou de impostos os moradores, cercou-a de cuidados
e desvelos que a fizeram desde o começo viável e a ajudaram a medrar vigorosa.

A população
alastrou de preferência pelo litoral do pequeno mediterrâneo, geralmente
chamado recôncavo. Em 1 587, menos de quarenta anos depois da fundação, Gabriel
Soares contava dezesseis freguesias; sessenta e duas igrejas, todas bem
consertadas, limpas e providas de ornamentos; três mosteiros de religiosos;
oito casas de cozer meles, mui proveitosas e de muito fabrico; trinta e seis
engenhos moentes e correntes, dos quais quinze movidos por bois, o resto por
água. Outros quatro estavam construindo, e a produção anua montava o melhor de
cento e vinte mil arrobas de açúcar e muitas conservas.

Todos os
moradores tinham seu barco ou canoa; o serviço dos engenhos fazia-se todo por
mar; cada engenho possuía quatro embarcações; mil e quatrocentas se poderiam facilmente
ajuntar, se o serviço real as reclamasse. Acrescia a isto que os escravos e a
classe pobre se alimentavam quase só de peixe, e principalmente de mariscos
apanhados nos mangues, e dispensa grande esforço intelectual compreender que
esta gente não trocaria de boa vontade as vantagens da marinha pelas asperezas
e descômodos das brenhas do interior.

Os engenhos
estavam todos na mata, o que se explica pela maior fertilidade dos terrenos bem
vestidos, e pela abundância de lenha, necessária às fornalhas em um labor que
às vezes durava, dia e noite, oito e nove meses. E não deviam se afastar muito
do litoral marítimo, sob pena de, sendo um só o preço dos gêneros de
exportação, não poderem competir com os fazendeiros mais vizinhos do mercado, cujo
produto não se gravava com as despesas de transporte.

 

4.
Trechos de uma carta de Teodoro Sampaio, escrita da Paulicéia, a 31 de agosto de
1 809 :

"Peço-lhe
atender às seguintes observações que passo a fazer a propósito do   como 
encarei  as  catingas   em   relação  ao  problema   da   conquista  
dos  sertões.

No meu
artigo — O sertão antes da conquista — publicado no Comercio de São
Paulo,
o que tive em vista deixar assinalado era a diversidade das fluas
metades do país, o Norte e o Sul, quanto aos seus caracteres físicos,
estabelecendo um paralelo entre a catinga e o campo, como entre a
hidrografia do Paraná brasileiro e a dos rios do Norte. No Sul o meio físico
impelia o homem para o sertão, para assim dizer aberto. No Norte nem as
catingas nem a hidrografia facilitavam tanto. Do ponto-de-vista da exploração
sertaneja, o vale do Paraná oferece uma série de extensíssimas campinas, que as
baixadas dos afluentes apenas interrompem sem, contudo, isolar totalmente; e estas
campinas começam quase na crista das montanhas à beira mar e vão fundo no
interior do continente. Por isso, as primeiras invasões dos europeus desde logo
atingem ou transpõem a funda bacia do Paraná-Paraguai, e é tradição que uma
delas varou até os Andes do Peru.

No Norte a
causa é bem diversa. Só depois de transcorrido mais de meio-século é que uma
partida de europeus pôde varar até o São Francisco. A invasão do território não
tem aí o caráter de incursões venatória como as do Sul. Um ou outro obscuro mamaluco
é que se atrevia a entrar nos sertões para descer índios, e isso mais com
engodos do que pela força. Aí não se penetra habitualmente tão longe desde os
primeiros anos. A conquista parece fazer um movimento de flanco; caminha-se ao
longo das praias. Atinge-se Sergipe, para daí subir-.se pelo São Francisco,
onde se obtém sesmaria após sesmaria, fazenda após fazenda, para mais tarde
procurar-se ou voltar-se ao centro irradiante pelo caminho mais curto- É que V. chamou
o traçado pela hipotenusa. Varnhagen tem razão se se compara a catinga com
a mata; não, porém, se o paralelo do ponto-de-vista da exploração, tiver de
fazer-se com o campo, como é a minha tese.

A catinga, de
certo, tem mais larguezas que a mata não tem. A orientação na catinga é
cabível, digo, é mais acessível, mas não é fácil, porque se o céu é mais
descoberto, o solo é mais inçado do obstáculos. As veredas falsas, múltiplas são
um verdadeiro perigo. A vegetação espinhenta, as trincheiras quase
intransponíveis das bromélias e dos cardos formam uma barreira que se sucede
por dezenas de léguas, desafiando aos mais robustos picadores de mato. Só o
gado pôde primeiro trilhar a catinga; e naquelas regiões onde o europeu
primeiro penetrou através dela, foi sem dúvida pela trilha do índio, e guiado
por índio. Ajunte-se a tudo isso, a  falta  dágua   por  dezenas  de  léguas*, 
a  aridez   do  solo,   a   escassez  das  chuvas, e se compreenderá por que o
movimento invasor busca desenvolver-se ao longo do mar e dos grandes rios
perenes, para depois voltar ao centro, retificando os" caminhos através das 
catingas  de baixo de permeio.

O campo oferecia
no Sul elementos bem diversos: rios perenes em grande número, clima menos
ardente, matas de pinheiro, cu.ios frutos eram excelentes e abundante provisão,
constituindo no meio das solidões um verdadeiro oásis. As marchas diárias eram
nessa região um movimento regulado e calculado. Nas catingas, isso era
impossível. Nas margens do São Francisco recolhi a tradição de que os primeiros catingueiros que ousaram enveredar para os lados do Piauí, carregavam
água em borracha, e penetravam, rompendo a catinga até onde a água
permitia, e voltando ao rio São Francisco para renovar as provisões enquanto o
fogo, deitado à catinga sistematicamente, ia desbravando a região e abrindo as
veredas.

Está
visto que a mata oferece muito maiores obstáculos, e isso explica bem o
retardamento com que se povoaram as regiões dentro do Rio e Minas, e as de
entre  o Espírito  Santo   e   o vale  superior  do  rio Doce  e 
outros."

 

A mata do
recôncavo, a partir da margem direita do Paraguaçu, é contínua com a que se
estende até além do Capricórnio pela fralda oriental da serra do Mar. – Da
ponta de Santo Antônio, um dos extremos do recôncavo, até o rio de São
Francisco a mata aparece em manchas consideráveis, capões, ilhas mais ou menos
extensas, engasgadas nos campos e catingas, antes dominadas que dominantes.
Por aqui de preferência se estabeleceu o povoamento, depois de repleto o
recôncavo.

Varnhagen
vê uma das causas do rápido devassamento dos sertões no fato de as catingas se
despirem anualmente de folhas. Teodoro Sampaio4, tão eminente,
conhecedor da história como da geografia nacional, acaba de dizer quase o
contrário em admirável artigo recente: "Se o perigo da mata virgem é a
solidão sem veredas e sem saídas, escreve êle, o terror da catinga é o
desnorteamento infalível pela multiplicidade delas. O bruto com o seu instinto
rasga horizontes sem vacilar; o homem, porém, que de uma vez penetrou na
catinga e lhe falhou a memória na escolha da vereda, é uma vítima que só um
milagre o salvará."

Pensando
bem, parece que a razão está antes com Varnhagen. A catinga permite sempre a
vista do céu e a orientação por ele; os obstáculos que depara resolvem-se com
um facão ou uma foice ou a fogo. Os lugares em que ela se aproxima do litoral
foram devassados logo. Já em 1584 se tinha ladeado o Orobó região
de grandes matas, e de lá trazido milhares de índios prisioneiros.

O
que não pode haver dúvida é que as catingas pouco remuneram a lavoura, como
então, mais ainda que hoje, se praticava, — simples latrocínio da natureza,
sem compensação alguma oferecida por parte do homem. Urgia dar-lhes destino,
mesmo porque a área dos catingais era enorme, e descurá-la tanto montava a
deixar sem proveito a maior parte do país. A criação do gado resolveu o
problema.

Que a mata
é incompatível com a criação do gado, ainda agora se vê no Amazonas. A pouca
luz que côa através das copas unidas do arvoredo não permite a formação de
pasto; para os ruminantes a opulência vegetativa redunda em inanição irremediável.
A catinga é bem mais hospitaleira, apesar dos espinhos que caracterizam grande
parte das suas árvores, herança dos tempos diluviais, armas nas lutas contra as
colossais preguiças herbívoras, hoje extintas, então muito numerosas, — no entender
de W. Detmer, botânico ilustre, que há anos visitou a Bahia.

Os
primeiros colonos evitaram os catingais; nos requerimentos de sesmaria alegam
sempre que as terras não têm pastos suficientes, por causa das catingas. Mais
tarde, porém, acomodaram-se com elas: porque entre um tronco e outro há sempre
comédia; entre uma catinga e outra há sempre campos; de certas árvores que não
perdem a folha, aproveita-se a rama para alimentar a gadaria contra o flagelo
das secas. Finalmente, estas matas virgens plebéias, que designamos por uma
palavra da língua tupi, revestem formas muito diferentes, que podem emparelhar
quase com as florestas próceras do litoral ou nivelar-se, com o campo rasteiro.

A criação de gado começou no governo de
Tome de Sousa.

"As
primeiras vacas que foram para a Bahia, escreve Gabriel Soares, levaram-se de
Cabo-Verde e depois de Pernambuco, as quais se dão de feição que parem cada ano… e
acontece muitas vezes mamar o bezerro na novilha e a novilha na vaca
juntamente, o que se vê também nas éguas, cabras, ovelhas e porcas."

Dentro do
recôncavo e em certas ilhas deles havia alguns currais; a força da criação
começava da ponta de Santo Antônio para o Norte; no tempo em que Gabriel escrevia já alcançava o rio Itapicuru, e avultavam como criadores os jesuítas e
Garcia de Ávila, e fundador dessa casa da Torre que mais tarde devia tornar-se
tão opulenta.

A conquista
de Sergipe na última década do século XVI, franqueou um amplo espaço,
logo distribuído em sesmarias, distribuídas sem o mínimo escrúpulo, sem um
ligeiro vislumbre sequer de inteligência, desde que Sergipe teve capitão-mor
próprio e desabusado.

Como
não são sesmarias o objeto deste esboço, lembrar-se-á apenas que, à medida que
a margem baiana do São Francisco ia sendo aproveitada, se tornava maior a
distância da cidade do Salvador e seu recôncavo, onde existiam os principais
consumidores de gado. A condução deste, beirando o São Francisco até a foz, e
daí acompanhando o oceano, ficava cada vez mais penosa e demorada; impunha-se
a serventia de caminho mais rápido.

Dizia
o saudoso engenheiro Carlos A. Morsing que as vias férreas se desenvolvem em
triângulos no sentido da hipotenusa; o mesmo se dá com as vias comuns. No
presente caso figurou de hipotenusa a linha de Jeremoabo.

Um
caminho destes oscila naturalmente antes de fixar-se, e assim não é fácil
apurar qual foi seu primeiro rumo. Frei Martin de Nantes, missionário
capuchinho que mais de uma vez cumpriu a jornada entre 1 672 e 1 683, apenas
indica três pontos por onde passava: a aldeia de Canabrava, hoje Pombal, em
águas do Itapicuru, Jeremoabo em águas do Vazabarris, e uma passagem no rio de
São Francisco, abaixo das ilhas Pambu e Uacapara. No princípio do século XIX a
passagem era em Ibó. a pouca distância de Cabrobó. Dela serviam-se os correios
que transitavam entre a capital da Bahia e a do Ceará no governo de Francisco
Alberto Rubim.

No tempo do
intrépido frei Martin já se realizava uma invenção que agiu de modo
extraordinário sobre nossa história e a modelou em grande parte. Um gênio
anônimo, túmulo que nunca será conhecido nem visitado, inventou o meio de
passar o gado nos rios caudalosos. "Na passagem de alguns rios, informa
Antonil-Andreoni no seu livro sobre a cultura e opulência do Brasil, na
passagem de alguns rios, um dos que guiam a boiada, pondo uma armação de boi
na cabeça e nadando mostra às reses o vau por onde hão de passar."

Com
esta invenção se tornaram igualmente apetecidas ambas as margens do rio São
Francisco.

O
governador geral do Brasil, o governador de Pernambuco, o capitão-mor de
Sergipe concederam todas as terras requeridas. Pelo lado direito do São
Francisco até o rio do Salitre, por léguas sem conta na margem esquerda logo
acima do trecho encachoeirado, a casa da Torre chamou a si territórios mais
vastos que grandes reinos.

Nas
proximidades destas terras morava Domingos Afonso, por antonomásia Certão. A
procura de campos novos, ou no encalço dos índios, adiantou-se tanto que passou
das águas de São Francisco para as do Parnaíba. Encontrou-se no rio Piauí, e
este nome estendeu-se posteriormente à capitania e ao estado. No território
assim descoberto o gado multiplicou-se de modo maravilhoso. Domingos Afonso
fundou e possuiu dezenas de fazendas; trinta legou aos jesuítas; e com outros
acréscimos tanto proliferaram as célebres fazendas nacionais, confiscadas pela
vesânia pombalina, que mais de século e meio de incúria e malversação não as
conseguiram extinguir de todo, tal a sua vitalidade inicial. No tempo de Rocha
Pitta (antes de 1 730) as fazendas do Piauí iam descendo o Parnaíba e
alcançavam o Longa e o Piracuruca, à procura de saída mais cômoda pelo litoral
do que as cinco estradas que já então ou mais tarde, vinham desembocar no São
Francisco, entre Cabrobó e a barra do rio Grande (rio Grande do Sul, como
primeiramente se chamara).

As
sesmarias denotadoras de peregrinos dotes geográficos e políticos em quem pediu
e ainda mais em quem as concedeu, em si muito curiosas, são alheias ao presente
assunto.

Voltando
a êle, notaremos que à medida que o gado ia subindo pelo São Francisco, o
caminho de Jeremoabo ia perdendo as comodidades que antes oferecia e impunha-se
à criação de novos caminhos, os de Jacobina, Itapicuru e outros substituídos
hoje em sua missão histórica pela estrada de ferro de São Francisco. O caminho
de Joazeiro ilustra em uma página lapidar o venerando Martius, que por êle
seguiu viagem para o Maranhão 5.

5.    Uma  página  de  Martins  sobre 
o   caminho  de  Joazeiro.

A
serra da Tiúba atravessa bastante extensa e esgalhada a parte Noroeste da
capitania da Bahia, variando de dominação com as localidades; forma a divisora
das águas entre o rio São Francisco a Oeste e os pequenos rios a Este que
muitas vozes secam em parte ou de todo ficam sem água, que ao Sul daquele
corram para o oceano, e dos quais o rio Itapicuru é o de maior curso. No
arraial de Santo Antônio das Queimadas, a três léguas do rio do Peixe, adiamos
este rio, mas, devido â seca persistente, tão seco que apresentava apenas
algumas poças.

Todos os rios deste trecho são
de pequeno cabedal e secam durante a falta de chuva, e então apenas um leito
rócheo, largo e irregular, indica sua presença e  direções.    Suas  pontas 
originam-se  de  gretas  de penhas  e  formam  geralmente fontes claras e
rasas. Durante os meses molhados, porém, os álveos ficam cheios de água de
chuva, e isto sucede em conseqüência da formação particular do terreno que se
fende em numerosos valetes conexos, com tal rapidez que dentro de oito dias se
vê um álveo  pétreo  e seco  cheio por uma corrente torrencial.

A falta de
humo, a densidade, a rijeza, a horizontabilidade predominante
da rocha, favorecem o escoamento rápido, e este por sua vez atua sobre as
condições da crosta terrestre, reagindo por éste meio sobre a periodicidade
dos rios.                                                                                                             –

De
fato, como nenhuma umidade resta na terra, a decomposição das folhas caídas e
de outras matérias orgânicas não pôde realizar-se pela ação da água; dá-se
antes um mirramento ao ar quo um processo de putrefação, e muito pouco é o humo
que se forma. Os ventos dispersam o pó, constituído de partículas orgânicas, e
a rocha escalvada fica sem aquela cobertura, tão apropriada a prender  a água
atmosférica, favorecendo  assim a origem de fontes perenes.

Também a
espécie de vegetação desta zona parece determinar esta marcha do processo dos
elementos; pois as folhas são relativamente mais raras do que nas matas virgens
do litoral e de contextura mais seca. Assim, como agente importante da
aviventação deste território madrastamente dotado, resta a água fluvial, e como
nem picos alterosos nem rochas particularmente densas favorecem a atração da
umidade atmosférica só vigora a periodicidade geral das estações seca e úmida,
é fácil achar o motivo por que nem um progresso do país se iniciará aqui, no
ciclo de tão desfavoráveis ações e reações recíprocas. Estas condições
assinalam também as relações desta zona com a cultura possível; só após muitos
esforços virá uma agricultura remuneradora juntar-se à criação do gado,  
principal   base   da   alimentação   dos   habitantes.

"Procurei
descrever em geral as relações em quo estão entre si o solo, o clima e a
vegetação; se me fosse permitido aventurar uma suposição quanto ás primeiras
causas que produziram a situação presente, seria que as serras perderam sua
antiga coberta de terra com as possantes e largas  lavagens  do  Oceano.

Muitas
circunstâncias parecem favorecer esta afirmação; a descida gradual desta região
para o mar, o curso regular dos rasos vales de escoamento em direção igual, a
extensão das superfícies rócheas escalvadas, o arredondamento da muitos troços
graníticos, que jazem esparsos ora nas alturas, ora nas baixas e
principalmente  o   teor salino  do  humo  das  regiões  ocidentais.

Em tal caso
não fora de estranhar depararmos aqui vegetação tão diferente da mata virgem
das serras graníticas do litoral; deve-se considerá-la como uma formação
secundária de plantas; na realidade nem quanto à altura e força de crescimento
nem quanto à plenitude e às singularidades de forma pode considerar-se esta a
vegetação das eras primevas"  (MartiuS,
reise in Brasilien, 723, 725).

Por descuido
vai esta velha e imperfeita versão, quando tão fácil seria aproveitar  a  bela 
tradução  de Pirajá  da Silva  —   173-176,  Bahia,   1 916.

 

De passagem se note que o caminho de Joazeiro se conta
entre os menos antigos da Bahia — antes via de vazão que de penetração.

Em
geral formava-se uma linha muito sinuosa que evitava as matas onde o gado não
encontraria o que comer; as serras onde as chuvas mais freqüentes produziam, às
vezes, florestas luxuosas como as de Orobó, os desfiladeiros arriscados, as
catingas mais bravas, as travessias órfãs d’água.

"Constam
as boiadas que ordinariamente vêm para a Bahia de cem, cento e sessenta,
duzentas e trezentas cabeças de gado; e destas quase cada semana chegam algumas
a Capoame (hoje Feira-Velha), lugar distante da cidade oito léguas, onde tem
pastos e onde os marchantes as compram; e em alguns tempos há semanas em que
cada dia chegam boiadas. Os que as trazem são brancos, mulatos e pretos, e
também índios, que com este trabalho procuram ter algum lucro. Guiam-se indo
uns adiante cantando, para serem desta sorte seguidos do gado; e outros vêm
atrás das reses tangendo-as e tendo cuidado que não saiam do caminho e se amontem. As jornadas são de quatro,
cinco e seis léguas, conforme a comodidade dos pastos, onde hão de parar.
Porém, onde há falta de água, seguem o caminho de quinze e vinte léguas,
marchando de dia e de noite, com pouco descanso, até que achem paragem onde
possam parar. Nas passagens de alguns rios, um dos que guiam a boiada, pondo
uma armação de boi na cabeça e nadando, mostra às reses o vau por onde irão
passar."

Assim
escrevia em 1 711, André João Antonil, pseudônimo e anagrama de João Antônio
Andreoni, visitador da Companhia e seu provincial.

E
aqui seja-nos permitido atender às dúvidas que dois amigos de São Paulo, de
igual competência na história e geografia pátrias, Orville Derby e Teodoro Sampaio,
levantaram em cartas muito eruditas contra a identificação de emboabas feita em
artigo anterior6.

A
identificação comum é de portugueses e emboabas; foi a primeira, mas, quando
viram disputadas as minas que com tanto esforço haviam descoberto, e os atritos
degenerando em batalhas mortíferas, os paulistas, querendo estigmatizar os
inimigos vindos do Norte, para estes estenderam o epíteto afrontoso, antes
aplicado aos odiados reinóis odiosos. Cada margem do rio de São Francisco
pertencia a capitania diversa; como chamar aos invasores pernambucanos, se a
maioria procedia da margem direita? Como chamar-lhes baianos, se havia gente da
margem esquerda? Emboabas resolvia a questão, encharcando no mesmo desprezo
baianos, pernambucanos e portugueses. Portugueses havia, sem dúvida, no meio
de todas aquelas turbas que cerca de vinte anos zombaram de todas as leis
divinas e humanas, até que o enérgico conde de Assumar lhes deu uma lição
talvez excessiva, cujos efeitos perduram nos descendentes timoratos. Mas podiam
aparecer em exércitos desde logo, adaptar-se eletricamente ao viver das
brenhas, vencer bandeirantes acostumados à luta dos sertões, intimidar
governadores?

 

6.    Sobre   emboabas.

A. palavra emboaba, idêntica a moab referida
por Jean de Léry no século XVI,
deve ter hibernado na linguagem popular
para florir no tempo das rusgas a que deu o nome. O coronel Pedro Leobino de
Marta, superintendente das Minas Novas, diligente explorador de salitre em
Montes-Claros, sertanista famoso, informava em  1 759  que emboaba se chamava
quem  não  era paulista.

Qual o papel
representado nos conflitos pulos reinóis? Muito maior certamente do que lhes
foi atribuído nestas mal traçadas linhas, contestando observações1 em
parte justas de Orville Derby e Teodoro Sampaio. Os portugueses chegados na
última frota, sem parentes na terra, sem amigos, sem recomendações, sem eira
nem beira, eram o material mais conveniente às empresas desesperadas, nas quais
se amalgava perfeitamente, para usar o termo corrente nos primeiros exércitos
da revolução francesa. Assim passava na Índia Oriental, segundo as memórias de
um soldado editadas por Costa Lobo, autor do admirável livro História da
Sociedade em Portugal no século XV.

Não ser
paulista era mácula original, indelével e irreparável; nascer na metrópole ou
em qualquer outro ponto da colônia pouco valia. A primeira manifestação conhecida
de malevolência, não contra reinóis, mas contra os vizinhos do Rio de Janeiro,
foi em 16 de abril de 1 700, quando os descobertos poucos anos contavam.

Uma reunião
de homens bons, representantes de Piratininga e mais vilas anexas, pediu à Câmara
que " requuresse ao general Artur de Sá e Menezes, governador da praça do
Rio de Janeiro e das mais da repartição, que as terras do   território   das  
minas   de   Catagoás   assim   campos   como   matos   lavradios   de direito
pertenciam aos paulistas para os possuírem por datas de Sua Majestade que Deus
guarde ou de quem fôr donatário, porquanto eles foram os descobridores das
minas de ouro que do presente se lavram o que é notório e patente, o que tudo
fizeram à custa de suas vidas e fazendas sem dispêndio da fazenda real e que
seria uma grande injustiça conceder-se as ditas terras aos moradores do Rio de
Janeiro que nunca tiveram parte tanto na conquista como no descobrimento."

Sobre os
sucessos da guerra dos Emboabas anteriores à. ida do governador Mascarenhas âs
minas há muitos documentos; a segunda fase é pouco conhecida. Uma biografia
objetiva de Manoel Nunes Vianna, o cabecilha dos emboabas, preencheria 
importante   lacuna.

 

Não
esquecer que no Rio Grande do Sul, ligado desde muito a São Paulo pela estrada
de Lajes, a palavra baiano tem ainda hoje significação semelhante à de emboaba.

 

19 — C. H. Colonial

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