Raul Pompéia – Biografia e Obras

BIOGRAFIA – RAUL D’ÁVILA POMPEIA (Rio de Janeiro, 1863-1895) foi um moço de grande e vivo talento, extremamente nervoso e que tendo estudado primeiramente no Colégio de Pedro II e depois na Faculdade jurídica de São Paulo, entrou, mesmo na sua fase acadêmica, a ser vantajosamente conhecido pelas produções em verso e prosa que publicava nos jornais.

Em folhetim, na Gazeta de Notícias e depois em livro estampou um romance, O Ateneu, no qual deixava perceber recordações pessoais do Colégio Abílio.

Escreveu um prefácio às Festas Nacionais, de Rodrigo Otávio, e póstumas saíram a lume suas Canções sem Metro.

Era também hábil desenhista, e diz-se que igualmente escultor.

Proclamada a República, foi nomeado secretário da Escola Nacional de Belas Artes, dirigiu depois a repartição de Estatística, o Diário Oficial e a Biblioteca Nacional.

Por motivos nunca bem averiguados suicidou-se na sua própria casa, e no meio da consternada família.

É de sua lavra o artigo seguinte, que apareceu anônimo.

Uma Noite Histórica – obra de Raul Pompéia

Às três da madrugada de domingo, enquanto a cidade dormia tranqüilizada pela vigilância tremenda do Governo Provisório, foi o Largo do Paço teatro de uma cena extraordinária, presenciada por poucos, tão grandiosa no seu sentido e tão pungente, quanto foi simples e breve.

Obedecendo à dolorosa imposição das circunstâncias, que forçavam a um procedimento enérgico para com os membros da dinastia dos príncipes do ex-Império, o governo teve necessidade de isolar o paço da cidade, vedando qualquer comunicação do seu interior com a vida da capital.

A todas as portas do edifício principal, na manhã de sábado e às portas das outras habitações dependentes, ligadas pelos passadiços, foram postadas sentinelas de infantaria e numerosos carabineiros montados. O saguão transformou-se em verdadeira praça de armas.

Muitos personagens eminentes do Império e diversas famílias, ligadas por aproximação de afeto à família imperial, apresentaram-se a falar ao imperador e aos seus augustos parentes, retrocedendo com o desgosto de uma tentativa perdida. À proporção que passavam as horas, foi-se tornando mais rigorosa a guarda das imediações do palácio. As sentinelas foram reforçadas por uma linha de baionetas que a pequenos intervalos se estendeu pelo passeio, em todo o perímetro da imperial residência, transformada em prisão do Estado.

Novas determinações anunciadas por ajudantes de ordens que chegavam freqüentemente do quartel general, desenvolviam ainda as manobras da guarnição do edifício.

Depois que anoiteceu, foi fechado o trânsito (145) pelas ruas que o rodeiam. Às onze horas, havia sentinelas até ao meio da grande área compreendida entre o pórtico do palácio e o cais. Por todas as imediações vagueavam soldados de cavalaria, empunhando clavinotes, de coronha pousada no joelho.

Adiantava-se a noite, adiantavam-se gradualmente para o mar os cordões de sentinelas.

Um boato oficial, inspirado pela conveniência do interesse público, espalhava a notícia de que o Sr. D. Pedro de Alcântara (que se sabia dever embarcar para a Europa em conseqüência da revolução do dia 15) só iria para bordo no domingo de manhã. A polícia excepcional do Largo do Paço, porém, durante a noite de sábado, deu a certeza de que o embarque se faria muito antes da hora do propalado consta.

 

(145) Em trânsito unem-se a forma iro, procedente de itus latino, da raiz do verbo ire e que significa ida, saída, marcha, movimento, e o prefixo trans, exprimindo assim o vocábulo marcha através, vaivém. Com esse mesmo elemento ito, unido a outros prefixos, formaram-se os seguintes termos: âmbito (ambitus), o que está de um e de outro lado, em redor; circuito (circuitus) o que cerca, o que envolve; êxito (exitus), saída, marcha para fora, resultado; intróito (introitus), entrada, marcha para dentro, começo; óbito (obitus), saída para [a morte]; (obire mortem); pretérito (praeteritu), o que já passou, foi além; súbito (subitus) o que vem de repente, inesperadamente.

Demorados por esta suspeita, muitos curiosos estacionavam pelas vizinhanças do Mercado, das pontes das barcas, na rua Fresca, na rua da Misericórdia, na esquina da rua Primeiro de Março. Da uma hora da madrugada em diante, as patrulhas de cavalaria começaram a dispersar os ajuntamentos. Para os últimos passageiros das barcas Ferry não havia mais caminho, do lado do Mercado, senão beirando rentinho (146) ao cais. Depois da última barca, o trânsito foi absolutamente impedido.

Também os mais renitentes curiosos tornaram-se muito raros, mesmo nas proximidades do lugar sitiado.

Um grande sossego, com uma nota acentuada de pânico, (147) reinava neste ponto da cidade. Para mais carregar a fisionomia do momento, circulavam nessa hora as notícias de um conflito entre marinheiros e praças do exército, havendo troca de tiros. Apesar da brandura de modos com que os militares convidavam as pessoas do povo a se retirarem, apesar da completa abstenção de atos de violência que tem caracterizado o sistema policial, enérgico, mas extraordinariamente prudente do Governo Provisório, sentia-se ali como que uma atmosfera de vago terror, como se a calada (148) da noite, a escuridão do lugar, a amplitude insondável da praça evacuada respirassem à presença de uma realidade formidável (149). Sentia-se todo aquele imenso ermo ocupado pela vontade poderosa da revolução. Em cima, o céu tristíssimo, povoado de nuvens crespas, muito densas, que um luar fraco bordava de transparências pálidas.

De vez em quando, das perspectivas de sombra saía um rumor de vozes abafadas, logo feitas em silêncio; de vez em quando, um rumor seco de bainhas de folha contra esporas e um estrépito de patas de cavalo, escarvando o calçamento, batendo a passos regulares, espalhando-se em estalado galope. Em geral, silêncio de morte.

Entre as poucas pessoas que, iludindo o consentimento da polícia, tinham conseguido ocultar-se em diversos sítios de observação, murmurava-se que não devia tardar o embarque do ex–Imperador.

Duas horas da madrugada, entretanto, tinham marcado os relógios das torres, e nada de novo dos lados do paço viera agitar o solene sossego (150) do largo.

Pouco antes dessa hora, houvera um grande movimento do lado do mar. Daí soara repentinamente um grito de alarma. (151).

À notícia divulgada de assaltos prováveis de gente da armada contra a tropa, assaltos que seriam razoavelmente favorecidos pelo negrume da noite, que subia do mar sobre o cais como uma muralha preta furada apenas pela linha de pontos lúcidos da iluminação de Niterói, dava para impressionar de susto um grito perdido da sentinela. Houve um tropel de cavalos, e logo uma, duas, outra, outras muitas detonações de espingarda, em desordenado tiroteio.

Nada havia de grave. Um indivíduo que tentara embarcar–se contra a vontade da ronda, fora preso: escapando às mãos da patrulha de infantaria que o prendera, tinha-se lançado ao mar para fugir nadando. Alguns soldados atiraram a esmo para assustá-lo, enquanto outros tomavam um bote, com o qual pegaram de novo o evadido.

Logo em seguida foi visto o preso passar, à luz dos lampiões, empurrado pelos guardas.

Houve quem supusesse que os tiros foram um sinal. Com efeito, tal qual se assim fosse, ouviu-se pouco depois no meio das trevas da baía, o rebate chocalhado da hélice de uma lancha a vapor.

Uma pequena luz vermelha estrelou-se no escuro diante do cais e ao fim de poucos momentos, ao lado do molhe (152) de embarque do Pharoux, vinha cessar o barulho da hélice, com duas pancadas de um tímpano de bordo e a passagem de uma rápida sombra flutuante sobre a sombra inquieta das águas.

— É a lancha do Imperador: pensaram os que viam com a opressão natural que devia provocar aquele anúncio da iminência de um grande momento.

Bastante tempo se passou depois deste incidente antes que de novo fosse alterada a monotonia do sossego da noite.

A suspeita de que acabava de atracar a embarcação que devia receber o monarca deposto, a ansiedade de perceber o movimento significativo no portão do paço, (153) prolongavam indefinidamente a duração desta expectativa.

O profundo silêncio do lugar pareceu fazer-se maior, nesta ocasião, como se a noite compreendesse que se ia, ali mesmo em poucos momentos, estrangular a última hora de um reinado. A tranqüilidade que havia era lúgubre. Ouvia-se com certo estremecimento o barulho do morder dos freios dos corséis (154) da cavalaria em recantos afastados. Frouxamente clareados pela iluminação urbana, as casas ao redor do largo, os edifícios públicos, pareciam adormecidos. Nenhuma luz nas janelas, a não ser nos últimos andares de uma casa de saúde.

Apesar disso, que se acreditaria indicar a completa ausência dos espectadores para a cena que se ia passar, algumas janelas abertas apareciam como retábulos negros, nas mais altas sacadas, e percebia-se uma agitação fácil de reconhecer nos peitoris escuros. ..

Pobre D. Pedro! Em homenagem à severidade da determinação do governo revolucionário, ninguém queria ter sido testemunha da misteriosa eliminação de um soberano.

Às três da madrugada menos alguns minutos, entrou pela praça um rumor de carruagem. Para as bandas do largo houve um ruidoso tumulto de armas e cavalos. As patrulhas que passeavam de ronda retiraram-se todas a ocupar as entradas do largo, pelo meio do qual, através das árvores, iluminando sinistramente a solidão, perfilavam-se os postes melancólicos dos lampiões de gás. (155).

Apareceu, então, o préstito dos exilados.

Nada mais triste. Um côche negro, puxado a passo por dois cavalos que se adiantavam de cabeça baixa, como se dormissem andando. À frente duas senhoras de negro, a pé, cobertas de véus, como a buscar caminho para o triste veículo. Fechando a marcha, um grupo de cavaleiros, que a perspectiva noturna detalhava em negro perfil.

Divisavam-se vagamente, sobre o grupo, os penachos vermelhos das barretinas de cavalaria.

O vagaroso comboio (156) atravessou em linha reta, do paço em direção ao molhe do cais Pharoux. Ao aproximar-se do cais, apresentaram-se alguns militares a cavalo, que formavam em caminho.

— É aqui o embarque? perguntou timidamente uma das senhoras de preto aos militares. O cavaleiro, que parecia oficial, respondeu com gesto largo de braço e uma atenciosa inclinação de corpo.

Por meio dos lampiões que ladeiam a entrada do molhe passaram as senhoras. Seguiu-se o côche fechado.

Quase na extremidade do molhe, o carro parou e o Sr.. D. Pedro de Alcântara apeou-se — um vulto indistinto, entre outros vultos distantes — para pisar pela última vez a terra da Pátria.

Do posto de observação em que nos achávamos, com a dificuldade, ainda mais, da noite escura, não pudemos distinguir a cena do embarque.

Foi rápida, entretanto. Dentro de poucos minutos ouvia-se um ligeiro apito, ecoava no mar o rumor igual da hélice da lancha, reaparecia o clarão da iluminação interior do barco, e, sem que se pudesse distinguir nem um só dos passageiros, a toda a força de vapor, o ruído da hélice e o clarão vermelho afastavam-se da terra.

(146) O sufixo diminutivo, aposto ao advérbio, dá-lhe maior intensidade à idéia: rentinho, pertinho, agorinha, cedinho, juntinho, devagarinho, usados na linguagem popular. (147) Pânico (do gr. panikós) é adjetivo que se substantivou: terror pânico, terror causado entre os homens pela aparição súbita do deus Pã. (148) a calada — p. pass. fem. do v. calar, substantivado, como tantos outros (a entrada, a sacada, a saída, a vinda, a bebida, a montada, a assentada, a partida). Significa o silêncio completo, "a calada soturna da noite" (Rui). (149) O adjetivo formidável, aqui bem adequado, vem perdendo, no falar comum, o primitivo sentido. O latim formidabilis diz temível, terrível, que causa medo, que traz perigo, apavorante’, tem a raiz de formido, terror, espanto, temor, e do v. formidare, temer. Uma inundação, um incêndio podem ser formidáveis. Com o sentido já alterado, de grande, Rui escreveu nas Cartas de Inglaterra: "…mais formidáveis a soma de interesses e a força do poder"… (2.a ed., p. 145) e Mário Barreto deixou no Cap. I dos Novos Estudos: …"massa formidável de todo o vocabulário da língua"… A significação originária pode-se ver em Fr. Luís de Sousa: …"se o imperador quisesse usar do favor que a fortuna lhe ia mostrando, podia facilmente ser senhor universal de Itália e ficar formidável a França e Inglaterra" (Anais, livro IV, cap. IX; e também em Rui: …"espécie de dragão muito mais formidável do que os monstros míticos"… (Osv. Cruz, p. 27). (150) V. a n. 39). (151) Formas sincréticas: alarme e alarma, da loc. italiana alie arme, às armas. É um grito de rebate, transfeito em substantivo. (152) Molhe = paredão do cais, do lat. meles, massa. (153) Paço e palácio — formas divergentes de palaliu. Aula, ae também significa palácio, ou corte, e, sucessivamente, a sala principal, a sala de estudos, nas Universidades e, por fim, a própria preleçüo do mestre; este dá aula na sala de aulas. Áulico é o palaciano; aulista o escolar. V. as nn. 183 e 615. (154) Corsel com — J — é a boa grafia, assente em curso, corso, do lat. cursum, ou o b.-lat. curseriu, raiz do v. curríre. O Pequen Vocabulário da Academia averba corcel com c, à semelhança do castelhano, ou por seguir a grafia averbada por G. Viana no Voca bulário; mas é pena que não se desse a esse termo a forma correta, com — s —, como se vê no fr. coursier, no ital. corsiere, no ingl. courser. Convinha emendado esse vocábulo, como ocorreu com vários outros, cuja escrita o sistema corrigiu: dossel, essa, pêssego, sossego, ânsia, cansar, Suíça, maciço, almaço etc, (155) Gás (não gaz), vocáb. criado no séc. XVII, por van Hel-mont que, presume-se, o tirou do termo flamengo geest, que significa espírito. (J. Vendryes, João Ribeiro, A. Nascentes). Dauzat elege outro étimo, pouco aceitável. (156) No Brasil não se pronuncia comboio, como em Portugal; aqui comboio é a forma verbal.

 

 


Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte: Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.

 

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