Cap. II
Sócrates, por Émile Bréhier
Tradução de Miguel Duclós
O século que precedeu a morte de Alexandre (423 a.C.) é o grande século da filosofia grega; e sobretudo é também o século de Atenas: com Sócrates e Platão, com Demócrito e Aristóteles, atinge-se um momento de apogeu onde a filosofia, segura de si e seus métodos, reclama o direito de, com o apoio da razão, ser a condutora universal dos homens – É a época da fundação dos primeiros institutos filosóficos, a Academia e o Liceu. Mas neste mesmo século as ciências matemáticas e a astronomia adquirem também uma extensão extraordinária. Enfim, o desenvolvimento resplandecente dos sistemas de Platão e Aristóteles não deve nos fazer omitir a existência de escolas anteriores a Sócrates que, alheias ou opostas ao movimento platônico-aristotélico, preparam as doutrinas que irão tornar-se predominantes depois da morte de Alexandre, e que farão Platão e Aristóteles serem negligenciados por muito tempo.
No mês de fevereiro de 399 a.C., Sócrates morreu aos 71 anos, condenado por seus concidadãos. Defronte o tribunal democrático, foi acusado de impiedade e de não cultuar os deuses da cidade, de introduzir novas divindades e de corromper a juventude com seus ensinamentos. Este homem extraordinário não foi, como os outros de quem falamos até agora, líder de uma escola. As escolas que vão se declarar socráticas são numerosas e, em muitos pontos, opostas: não tem em comum nenhuma tradição doutrinal. Também não chegamos a Sócrates diretamente, já que ele não deixou nada escrito, e não há uma tradição única, mas tradições múltiplas, que nos dão, cada uma, um retrato diferente. Além disso, estes retratos não tem nenhuma intenção de serem fiéis. O mais antigo de todos, As Nuvens de Aristófanes (que se passa em 423 a.C., quando Sócrates tinha 47 anos), em que Sócrates entra em cena, é uma sátira. Depois de sua morte há toda uma literatura de Diálogos Socráticos onde os seus discípulos lhe dão o papel principal. Estes diálogos constituem uma forma literária nada zelosa de sua exatidão. Em primeiro lugar vem os diálogos socráticos de Platão, inicialmente os apologéticos, escritos sob forte indignação com a morte de seu mestre (Apologia, Críton), depois os retratos idealizados (Fédon, Banquete, Teeteto e Parmênides), e, por último, os diálogos onde Sócrates é apenas um porta-voz das doutrinas da Academia. Em segundo lugar, as Memoráveis de Xenofonte, escrita já bem tardiamente (por volta de 370 a.C.), é uma espécie de apologia, onde o autor – que não é filósofo, tenta reproduzir as lições do mestre, fazendo uma reprodução muito insípida dos discursos socráticos passados. Há ainda os títulos e mínúsculos fragmentos que restam dos diálogos de Fédon e de Ésquines – alguns dos quais fornecidos por Aristóteles, e também uma tradição inimiga de Sócrates, que dura até o fim da antiguidade, com Porfírio (século III), o orador Libânio (século IV), se torna importante com os epicuristas e é ligada ao panfleto escrito por Polícrates em 390. É certo que todos concordam acerca da estranheza e originalidade deste sábio, o filho de um escultor e da parteira Fenarete que, vestido com uma rústica túnica, passeava pelas ruas com os pés descalços, se abstinha do vinho e do luxo, tinha um temperamento extraordinariamente forte. Era um homem de aparência feia, com seu nariz arrebitado – semelhante a Silene, nada parecido com os sofistas ricamente vestidos que atraíam os atenienses e nem com os sábios de outrora, que foram, em geral, homens importantes em suas cidades. Um tipo novo, que futuramente torna-se um modelo constante da sabedoria pessoal que não se dobra diante das circunstâncias. Não um político, mas somente um cidadão excelente, sempre disposto a obedecer às leis, mantendo seu posto de combate na Potidéia, lutando no tribunal – onde o destino chamou-o -, contra as fantasias ilegais do tirano Crítias, ou, enfim, recusando, por respeito às leis do seu país, à fuga que Críton lhe propõe para que escape da morte, após ter sido condenado.
Nem sofista e nem político. Nas conversas que mantém no mercado e nos ginásios assim como nas casas ricas, não tem nenhuma legislação e nenhuma doutrina a propor. Ele tem, sobretudo, a vontade manifesta de fazer seu ensino escapar da forma agonistíca; não propõe teses para serem julgadas, pretende apenas fazer com que cada um torne-se seu próprio juiz. Nos diálogos de Platão, Sòcrates é quase sempre o desmancha-prazeres que não obedece as regras do jogo e que as interrompe. “Escolha”, aconselha Cálicles a Sócrates e Protágoras, que recusa-se a debater por longos períodos, “escolha um árbitro, um magistrado, um pritaneu”. Sócrates responde amavelmente “que não seria adequado escolher um árbitro, porque isso seria ofender Protágoras” (338b). Mas a verdade é que a sua intenção é a de examinar as teses, testá-las e não as deixar triunfar. A esse respeito se encaixa bem a terceira parte do Górgias: o discurso de Cálicles contra a filosofia é um tipo de competição curta. Platão o fez recordar várias vezes a Antíope de Eurípedes, uma peça na qual dois irmãos sustentam alternadamente, num desses duelos onde o trágico ocorre frequentemente, a superioridade da vida prática contra a vida dedicada às musas. Como no caso do segundo irmão, Sócrates deveria, em resposta á acusação de Cálicles, fazer uma apologia da filosofia. Nada disso. Ele não emite opinião alguma, mas força Cálicles, através de questões, a se auto examinar. Por fim, a filosofia (e isso pode ser o que a tornava suspeita aos olhos de um ateniense do século V) é o que não pode se ater à forma agonística, e o que, consequentemente, subtrai-se do julgamento da turba.
Antes de ensinar aos outros, ele mesmo deve ter se educado. Não sabemos nada de sua formação pessoal; o Sócrates das Nuvens é um homem maduro, e já tinha passado dos sessenta quando Platão o conheceu. Pelo menos um documento precioso nos revela Sócrates como um homem de paixão violenta: o testemunho do seu contemporâneo Spintharos, cujo filho, Aristoxeno, escreveu recordações sobre Sócrates: “Ninguém deixava de ser persuadido por sua palavra e por seu caráter, que parecia com sua fisionomia, e, para ser franco, por tudo que esta pessoa tinha de especial. Porém, apenas enquanto não lhe acendia a cólera. Quando esta paixão lhe queimava, sua ruindade era horrível. Não evitava, então, nenhuma palavra e nenhum ato.” Seu controle de si foi, portanto, uma vitória contínua sobre si mesmo.
Este magnetismo interior que possui é, sem dúvida, o motivo de fascinar todas as naturezas ardentes, seja a de um Alcibíades ou a de um Platão. O temperamento de Sócrates é rico demais para fazê-lo limitar-se a uma reforma somente interior, sem querer disseminar sua sabedoria ao redor. Não é na solidão que quer viver, é com os homens e para os homens que precisa comunicar o bem mais valioso que adquiriu: o controle de si. Sócrates sente esta força interior que o empurra sobre os outros como uma missão divina. É necessário insistir nesta característica religiosa: o ponto de partida de suas atividades em Atenas não é a resposta da Pítia ao questionamento de seu fiel amigo Querofonte, a quem foi revelado que nenhuma pessoa era mais sábia que Sócrates? É Apolo que “lhe designou a tarefa de viver filosofando, interrogando a si mesmo e aos outros.” Nessa época não é estranha, por outro lado, a interpretação que Sócrates dá à sua habilidade. Não faltavam homens com entendimento especial do divino, como é o caso de Eutífron que Platão relata. Sócrates, em particular, parece sentir a presença divina através do famoso daimon, ou melhor, deste sinal demoníaco, esta voz interna, que, sempre que a sabedoria humana falhava en prever o futuro, lhe revelava as ações que deveria evitar. No entanto, sob este aspecto religioso do pensamento de Sócrates, é necessário que se entenda: a religião lhe dá fé e confiança em si, mas não proporciona nenhuma visão doutrinal sobre o destino humano, e não há nenhuma razão para crer que Sócrates tenha sido adepto do orfismo.
O que ensinou ele? Se dermos crédito a Xenofonte e Aristóteles, Sócrates foi sobretudo o inventor da ciência moral e o iniciador da filosofia dos conceitos. “Sócrates, disse Aristóteles, tratou das virtudes éticas, e a respeito disso, procurou defini-las universalmente. Ele procurava saber o que as coisas são. Tentava fazer silogismos, e o princípio do silogismo é saber o que as coisas são. O que se atribui a Sócrates, com razão, é, ao mesmo tempo, o raciocínio indutivo e as definições universais, que estão, de uma forma ou de outra, no princípio da ciência. Mas para Sócrates as definições e os universais não estão separados. São os platônicos que os separam e lhes dão o nome de idéias”. Portanto, de acordo com Aristóteles, Sócrates compreendeu que as condições para a ciência moral estavam no estabelecimento metódico, pela via indutiva, de conceitos universais, como a justiça ou a coragem. Esta interpretação de Aristóteles tem apenas o objetivo de atribuir à Sócrates a criação da doutrina idealista que, através de Platão, prossegue até ele e é, evidentemente, inexata. Se seu objetivo tivesse sido definir as virtudes, seria preciso admitir que nos diálogos onde Platão mostra Sócrates procurando, sem sucesso, o que é a coragem (Laques), a piedade (Eutífron) ou a moderação (Cármides) seu objetivo era apenas o de mostrar insistentemente o fracasso do método do mestre. É algo positivo este teórico dos conceitos, que diz de si mesmo estar “ligado aos atenienses pela vontade dos deuses, para incitá-los como um mosquito que morde o cavalo”, e que não cessa de exortá-los e reprová-los, obcecando-os da manhã até o entardecer? De fato, o ensinamento de Sócrates consiste em examinar e testar não apenas os conceitos, mas os homens mesmo, levando-os a compreender o que são. Cármides, por exemplo, é na opinião de todos o modelo de um adolescente modesto; porém ignora o que seja esta modéstia ou temperança, e Sócrates conduz o interrogatório de maneira a lhe mostrar que não sabe o que ele mesmo é. Da mesma forma, Laques e Nicias são dois bravos que não sabem o que é coragem. O justo e piedoso Eutífron, interrogado de todas as formas, não consegue chegar a dizer o que seja coragem. Assim, todo o método de Sócrates consiste em fazer os homens conhecerem a si mesmos. Sua ironia consiste em lhes mostrar que a tarefa é difícil, e que eles acreditam erroneamente que conhecem a si mesmos. Enfim, sua doutrina, se é que tem uma, é a de que esta tarefa é necessária, porque ninguém é voluntariamente mal, e que todo mal deriva unicamente de uma ignorância que se toma como ciência. A única ciência, afirma Sócrates, é saber que nada se sabe.
Uma conversa com essa modifica o ouvinte: o contato de Sócrates é como o de um torpedo, paralisa e desconcerta, induz a olhar-se a si mesmo, a dar um sentido diferente à sua visão. Os apaixonados, como Alcibíades, bem sabem que encontraram junto a ele todo o bem de que são capazes, mas ainda assim fogem dele, porque temem esta forte influência que os levará a repreender a si mesmos. O efeito do exame de Sócrates força o ouvinte a efetivamente perder sua falsa tranquilidade, colocando-o em desacordo consigo, e propondo-lhe como o bem reencontrar este acordo. Sócrates não tem outra arte que não a maiêutica, a arte de dar à luz de sua mãe Fenarete, tira das almas aquilo que já está nelas, sem pretensão nenhuma de introduzir um bem que já não exista como embrião.
Não podemos, de nenhum modo, ter uma idéia da quantidade de assuntos de suas conversas. Não há nenhuma razão para crer que Sócrates não tenha sido um homem culto, capaz de se interessar pelas ciências e pelas artes. A bem dizer, tudo lhe convinha para testar os homens, desde as discussões estéticas sobre a expressão na arte até a escolha do destino dos magistrados, quando demonstrava o absurdo do regime democrático de Atenas. É necessário lembrar, contudo, ao contrário da crítica dos sofistas, a de Sócrates não se dirige nem às leis nem aos costumes religiosos, mas somente aos homens e suas qualidades humanas. Na mesma medida em que é conservador nas suas idéias políticas, é liberal em relação àqueles que quer conservar e aos quais mostra sua ignorância. É sem dúvida esta liberdade radical que o derrubou. O governo tirânico de Crítias tinha lhe proibido a palavra, mas foi a democracia que lhe tirou a vida.
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