Tanatolatria ou A estética da morte

Tanatolatria

ou

A estética da morte

Nelson Castelo Branco Eulálio Filho(*)

Num texto de 1938, portanto, de sua plena maturidade, intitulado Moisés e o Monoteísmo e com a autoridade de ser ele próprio um (erudito) judeu, Sigmund Freud (1856–1939), o pai da psicanálise, nos oferece um instigante estudo do povo e da religião judaicos. As teses que conduzem esse estudo são, dentre outras, as seguintes: 1) o faraó Amenófis IV (XVIII dinastia, por volta de 1.350 a.C.) depois auto-intitulado Akhenaton, revolucionou os rumos da civilização ao instituir, pela primeira vez na história, o monoteísmo. 2) Moisés é egípcio – um príncipe ou alto integrante da classe sacerdotal – e fervoroso adepto da nova doutrina. Premido pelos conturbados momentos que sucederam a morte do faraó monoteísta, no contexto de um movimento de restauração do antigo politeísmo pelos poderosos sacerdotes do deus Osíres, saiu do Egito levando consigo a nova religião, juntamente com um povo semita que vivia nas fronteiras do império a quem proclamou “escolhido”. Estavam nascendo aí o povo judeu e sua religião. 3) os fundamentos dessa nova religião estão estruturados na concepção de um Deus inefável, sem semblante, numa palavra, abstrato, e por isso mesmo a fabricação de Sua imagem era absolutamente proibida. Foi uma revolução conceitual de longo alcance, pois, como diz Freud (op. cit.), “essa proibição deveria ter um efeito profundo, pois significava que uma percepção sensória recebia um lugar secundário quanto ao que poderia ser chamado de idéia abstrata – um triunfo da intelectualidade (Geistigkeit) sobre a sensualidade”.

Servindo-me das teses de Freud como pano de fundo, quero tecer os seguintes comentários: 1) Jesus é inquestionavelmente judeu, conforme atestam os registros bíblicos de Sua genealogia (p. ex. Mateus 1, 1-16); 2) Jesus não criou nenhuma religião; apenas reformou a sua velha religião, o judaísmo, e isso é Ele mesmo quem o diz: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-la, mas completá-la” (Mateus 5,17); 3) o termo corrente “cristianismo” embora etimologicamente remeta ao Cristo, historicamente remete à religião fundada por Paulo muitas décadas depois da crucificação e, assim, é mais correto se falar em paulinismo no qual, no caso específico de minha crítica, se destaca o catolicismo.

Ora, se Jesus não veio revogar nem a Lei [mosaica] nem os Profetas [do Antigo Testamento] e a Lei e os Profetas proíbem imagens de Deus, então Jesus acata implicitamente a proibição de imagens de Deus. Se, como afirma o paulinismo, Jesus é Deus (uma das pessoas da Santíssima Trindade) e o crucifixo O representa, então o crucifixo é uma imagem de Deus e, portanto, uma desobediência à Lei e aos Profetas que Jesus valida; o que caracteriza em última análise desobediência ao próprio Jesus. Parece-me que a conclusão do raciocínio silogístico é inescapável: crucifixos são imagens e, enquanto tais, reduzem Jesus (que é Deus) a um ídolo (uma imagem) e a religião que os adora a uma idolatria – a mesma idolatria tão combatida pela Bíblia (Antigo Testamento) quando diz: “Os ídolos dos gentios não passam de ouro e prata; obras das mãos do homem; têm boca e não falam, têm os olhos e não vêem, têm ouvidos e não ouvem, nem há qualquer respiração na sua boca. Como eles serão os que os fazem, e todos os que nele confiam”. (Salmo 135 – Cântico dos eleitos).

A propósito de idolatria, e concedido o devido crédito a Voltaire (Dicionário Filosófico), é justo supor que a própria igreja não se entende bem a esse respeito. Vejamos o que diz o filósofo iluminista: “A lei mosaica proibia as imagens. Os pintores e os escultores nunca tinham feito fortuna entre os judeus. Sabe-se que Jesus nunca teve quadros, exceto, talvez, o de Maria, pintado por Lucas. Mas, enfim, em lado nenhum Jesus Cristo recomenda que se adorem as imagens. Os cristãos, todavia, adoraram-nas a partir do final do século IV, quando se familiarizaram com as belas-artes. O abuso foi tal que, no século VIII, Constantino Coprônimo reuniu em Constantinopla um concílio de 320 bispos, que anatematizou o culto das imagens, considerando-o pura idolatria”.

“A imperatriz Irene – continua Voltaire – a mesma que tempos depois mandou arrancar os olhos ao filho, convocou o segundo concílio de Nicéia, em 787: aí foi restabelecida a adoração das imagens. Pretende-se hoje em dia justificar o dito concílio, dizendo que tal adoração era um culto de dulia e não de latria. Mas quer de latria, quer de dulia, Carlos Magno, em 794, mandou celebrar, em Francfort, outro concílio, que acusou de idolatria o segundo concílio de Nicéia. O papa Adriano I enviou ali dois legados, mas não foi ele que o convocou. O primeiro grande concílio convocado por um papa foi o primeiro concílio de Latrão, em 1139; ali estiveram cerca de mil bispos; mas muito pouco obraram a não ser por anatematizar aqueles que diziam que a Igreja estava demasiado rica”, etc.

Mas o problema não se restringe a uma simples questão de ser ou não ser idolatria. É muito mais séria e envolve aspectos da ordem do que estou chamando aqui de uma “estética da morte”. Nesse sentido, às vezes eu fico pensando se essa tendência à dor e à morte, típica da vertente católica do cristianismo, não acaba sendo tão somente a expressão de expectativas de expiação de culpas – no sentido psicanalítico do termo – maturadas na escala dos milênios nos corações e mentes dos “transmundanos” (Salve, Nietzsche!) de sempre. Expectativas que são, na verdade, vontade inconsciente de morte, de negação da vida e do mundo. Expectativas de um além-mundo que somente existe nos delírios dos infelizes, dos fracos, dos inimigos da Terra (obra de Deus, dizem) e negadores da vida. É uma doença que não somente não é combatida, mas adubada e sovada nas igrejas. O assassinato de Cristo (Salve, Wilhelm Reich!) segundo ato da tragédia teológica iniciada com um outro assassinato, a saber, o de Moisés (Salve, Freud), foi maturado no inconsciente coletivo (e culpado) do povo judeu por mais de um milênio – e perdurou por mais dois no inconsciente cristão.

A redenção ficou a cargo de Paulo, o fariseu, que cuidou de transmudar essa culpa ancestral em mensagem de salvação. “Salvação” entenda-se, daquilo que sua consciência mórbida achava ser o mau: o amor erótico, Eros e Afrodite, a paixão, a pulsão, o esplendor da vida. Aliás, vale registrar aqui mais umas reflexões de Nietzsche no seu Aurora: “As paixões se tornam más e pérfidas quando são consideradas mal e perfidamente. Assim o cristianismo conseguiu fazer de Eros e Afrodite – grandes potências capazes de se tornarem ideais – duendes infernais e espíritos enganadores, pelos martírios que fez surgir na consciência dos crentes por ocasião de todas as emoções sexuais. Não é pavoroso fazer de sentimentos necessários e regulares uma fonte de miséria interior e, dessa forma, querer fazer da miséria interior, em todo homem, algo necessário e regular? (…) Não é próprio de almas vulgares sempre pensar mal de um inimigo? Em si os sentimentos sexuais têm em comum com os sentimentos da compaixão e adoração que aqui um ser humano, através de seu contentamento, faz bem a outro ser humano – não é tão freqüente encontrar na natureza arranjos tão benevolentes! E é precisamente isso que querem caluniar e corromper com a má consciência! Irmanar a geração do homem com a má consciência!”

Entretanto, Paulo e a multidão de simpatizantes que o seguiu não vacilaram um só minuto em transformar em ícone dessa desesperada, “pia” patologia, o cadáver (torturado, vilipendiado, esfolado, chutado, pisoteado, cuspido… enfim, humilhado ao limite do aceitável por qualquer mente sã) da luminosa e radiante figura de Jesus; do homem que ainda não crucificado, resplandecia a fulgurante luz da vida, a radiante luz divina, a promessa de vida plena e transbordante, a força eterna, incriada, de um Deus que não cabe em igrejas, sinagogas ou mesquitas; que não veste batinas, que não usa solidéus nem turbantes. Mas… Meu Deus! Há quase dois mil anos uma legião de tanatólatras se ajoelha e adora a morte tão violentamente representada na imagem fabricada e perenizada por tantos idólatras da morte. Não percebem o paradoxo, a contradição nos termos: “Deus deu seu filho em sacrifício para o perdão dos pecados. De uma só vez acabou-se o evangelho! O sacrifício expiatório, e em sua forma mais bárbara e repugnante, o sacrifício do inocente pelo pecados dos culpados! Que pavoroso paganismo! Jesus havia abolido o próprio conceito de ‘culpa’, ele negou todo abismo, ele viveu essa unidade de Deus e homem como sua ‘boa nova’… E não como prerrogativa!” (Nietzsche – O Anticristo § 41). Que Jesus não os perdoe – a Paulo e alguns dos seus seguidores – pois ainda que concedido que eles não saibam o que fazem, é bom que não esqueçam que a ignorância da lei não isenta o criminoso da pena – e um justo não perdoa!

Ao fariseu Paulo (o “desangelista”, na expressão de Nietzsche) e aos seus seguidores parece que não foram suficientes a tortura e morte de Jesus; mas precisaram perpetuar essa morte na imagem do crucifixo. Quão paradoxais esses idólatras da morte! O Homem a quem dizem seguir declarou com todas as letras: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”, e eles adoram as veredas, a mentira e a morte! (Fica explicado, portanto, o lobby da Igreja contra o que será – Deus assim o queira – a corajosa e sensata decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a descriminalização de abortos de fetos anencéfalos). Ao pensar em tantas mulheres que podem estar nesse momento condenadas a gerar a morte, vem-me à mente o grande Castro Alves quando, no seu Navio Negreiro, a propósito de outros sádicos necrófilos, diz: “Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se eu deliro… ou se é verdade tanto horror perante os céus…”. E eu, pedindo licença ao poeta pela paráfrase, completo: E existem uns padres que as batinas emprestam p’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!… E deixa-as transformar-se nessa festa, em manto impuro de bacante fria!… Meu Deus! Meu Deus! Mas que batinas são estas que impudentes nas igrejas tripudiam?!… Silêncio!… Maria! Chora; chora tanto que essas batinas (e algumas togas) se lavem no teu pranto.

(*) O autor é graduado e mestre em Filosofia.

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