UM DIPLOMATA PORTUGUÊS DO SÉCULO XVII

Oliveira Lima

UM DIPLOMATA PORTUGUÊS DO SÉCULO XVII

É interessante que no mesmo ano se hajam publicado tanto em Portugal como no Brasil trabalhos sobre a mesma personalidade do século XVII, trabalhos aliás de todo ponto diferentes, tendo um mais em vista o escritor e o outro o diplomata, que ambas as coisas foi, e com notável distinção, Antônio de Sousa de Macedo. O fato só depõe cm abono da sua personalidade que assim consegue transpor os séculos e impor-se à posteridade. Êle foi um tipo de diplomata-escritor, escrevendo muito não só sobre assuntos alheios à sua profissão como sobre as questões afetas à sua atividade política.

Um diplomata, para se não tornar tedioso, deve de preferência escrever sobre coisas que se não prendam diretamente com suas obrigações. Deve fazer literatura à côté, como Disraeli fazia romances, que eram entretanto romances políticos, porque êle era essencialmente, fundamentalmente, um político. Antônio de Sousa de Macedo pretendia também ajudar com a pena a sua palavra, mas fazia-o como um advogado, para isso amontoando em apoio das suas teses citações de jurisconsultos, de homens de Estados e de escritores sagrados.

O abuso das citações estraga muito a sua produção que faz sobremodo volumosa. Êle próprio, em carta ao Conde da Vidigueira sobre o calhamaço da Lusitânia-Liberata que estava imprimindo em Londres para mostrar a validade dos títulos de Dom João IV1 ao trono português, escreve que "não ficará nada por dizer, dei todos os princípios e progressos de Portugal, em histórias, direito] e curiosidades". E se assim o disse, melhor o fêz, quando o se-l grêdo da obra de arte literária está em deixar alguma coisa paraj o leitor pensar, refletir, comparar e… suprir. Lembro-me de que Eduardo Prado me observava um dia com sua graça habitual — passava-se isto em 1890 — que o governo provisório estava levantando muita oposição porque reformara tudo, nada deixando à aspiração nacional para se ir entretendo.

Antônio de Sousa de Macedo não é muito lido hoje em dia; não conta mesmo entre os autores de maior monta, apesar da nomeada de seu livro Flores de Espana y Excelências de Portugal. Na primeira metade do século XVII os letrados portugueses compunham igualmente bem, como é sabido, em castelhano, sendo D. Francisco Manuel de Melo um grande autor nas duas literaturas peninsulares.

Não podia contudo Antônio de Sousa de Macedo ficar fora do círculo de estudos do Sr. Dr. Solidônio Leite que tanto se tem empenhado, com discrição e gosto, em chamar a atenção sobre muitos "Clássicos esquecidos". Sua idéia de clássicos por êle sustentada cm artigos agora reunidos em folheto, a propósito de reparos do falecido José Veríssimo, é a mesma que a minha: que são os que escrevem com bons princípios e boa forma, podendo servir de modelos pelas idéias gerais com que jogam e pela linguagem de que se servem. A mina dos clássicos é inesgotável porque neles se encontra fartíssima messe de exemplos: apertando-se um bocado, até se encontram exemplos contraditórios, precedentes para qualquer opinião, inclusive a tão debatida colocação dos pronomes. Eis uma amostra:

Referindo-se que levou o Lusitânia-Siberata ao rei de Inglaterra

em huma larga audiência que me deu huma manhã passeando em hum jardim [escreve Antônio de Sousa de Macedo do seu augusto interlocutor, num começo de período: êle disse que a justiça dei Rei Nosso Senhor contra El Rey de Castella era evidente, etc.

O Sr. Dr. Solidônio Leite, no opúsculo que acaba de publicar, não se ocupa porém do diplomata-publicista como mero clássico: trata de provar, com razões circunstanciais, que foi êle o autor da célebre Arte de Furtar por longo tempo atribuída ao Padre Antônio Vieira e depois ao Desembargador Tomé Pinheiro da Veiga. O Dr. Solidônio Leite entregou-se a um sério estudo a respeito e aduz semelhanças de estilo, paridade de idéias, identidade de argumentos e conformidades de modismos entre livros conhecidamente do escritor e aquele outro, que são com efeito maiores do que simples analogias provenientes da tonalidade geral da literatura moralista e gongórica do século XVII na península. Das hipóteses até aqui aventadas é certamente a mais razoável.

O Sr. Edgar Prestage trata historicamente de Antônio de Sousa de Macedo. A época da Restauração portuguesa está cada vez monopolizando mais as investigações desse scholar inglês que se converteu num erudito português. Já nestas colunas me ocupei, três anos há, do seu magnífico ensaio sobre D. Francisco Manuel de Melo, escritor que teve o condão de apaixoná-lo, e agora me permite a indiscrição de tornar pública a série de trabalhos que Edgar Prestage tem em mãos, segundo uma sua carta recente.

Em primeiro lugar vai breve apresentar à Academia das Ciências de Lisboa, da qual é membro prestimoso, e que é uma corporação que trabalha um pouco mais do que a nossa Academia de Letras, o primeiro volume da correspondência de Francisco de Sousa Coutinho na embaixada da Holanda (1643-46), devendo constar a obra de três volumes, incluindo a correspondência com o rei, os ministros e o Conde da Vidigueira, embaixador cm Paris. Aquele primeiro volume compreenderá uns 200 documentos. Em seguida editará a Relação de Franco Barreto, já toda impressa, bem como os documentos elucidativos, faltando apenas a introdução, a cargo do General Bocage. Finalmente, este ano ainda conta o ilustre estudioso concluir sua monografia sobre as cartas escritas da Espanha, após sua queda do poder e seu exílio, pelo Conde de Castello Melhor, um dos mais simpáticos ministros que teve a realeza absoluta em Portugal, celebrando o Reverendo Colbatch, capelão da feitoria inglesa em Lisboa, a sua rara suavidade de maneiras.

O Sr. Edgar Prestage não compreende por assim dizer um trabalho histórico sem uma parte de investigação pessoal, o que o torna tão consciencioso quanto interessante. Interessante para nós também, porque em toda essa época da Restauração portuguesa se jogaram muito os destinos do Brasil. Não foi só a questão de reconhecimento do Brasil holandês: a Inglaterra namorava o Amazonas, e por várias vezes se viu Antônio de Sousa de Macedo obrigado a dirigir representações enérgicas ao Parlamento para evitar a saída de expedições com destino ao Norte do Brasil — res nullius. A 28 de setembro de 1645 escrevia êle a Vidigueira:

Estou sempre com ciúmes do Grã-Pará, porque sei que estas gentes o amam muito.

Parnamirim, junho de 1917.

II

Wicquefort, nas suas Mémoires Touchant les Ambassadeurs, escreve de Antonio de Sousa de Macedo,

qu’il avoit l’esprit trop chaud pour avoir de la conduite.

Por sua vez o capelão da feitoria inglesa em Lisboa, falando de oitiva, pois que não chegou a conhecê-lo, acusa-o de ser azedo e rabujento, tratando mal as partes quando ocupava o cargo de

secretário de Estado, a ponto dos pretendentes se retirarem descontentes, mesmo quando obtinham o que queriam. Era de fato um homem assomado, e tanto que não trepidou em mandar dizer aos residentes de Veneza e de Florença que mandaria dois lacaios enchê-los de bofetadas e coices (sic), se num banquete na embaixada de França fizessem questão da sua precedência.

A opinião corrente é que um diplomata não deve ser um homem esquentado, mas isto afinal depende das circuntâncias, melhor dito do êxito da sua missão. Se satisfatória, não terá havido inconveniente nos acessos de cólera. A missão de Antônio de Sousa de Macedo em Londres foi agitada, mas foi em suma feliz. Secretário da embaixada mandada pelo novo governo, depois de aclamado rei de Portugal o Duque de Bragança, foi graças às razões do seu memorandum que a embaixada obteve a admissão que significava o reconhecimento.

Ficou então de residente, após a partida dos embaixadores. Era ao tempo da guerra civil. Antônio de Sousa de Macedo tomou partido por Carlos I contra o Parlamento, servindo de intermediário para a correspondência do soberano com alguns dos seus súditos e com a rainha, a qual fora para a Holanda e França a solicitar socorros; fazendo chegar ao rei, então em Oxford, munições obtidas pelo monarca português, e entretanto procurando negociar o casamento da infanta D. Joaquina com o Príncipe de Gales, que mais tarde, quando Carlos II, veio a desposar a infanta D. Catarina.

As relações do residente português não podiam deixar de ser bastante tensas com os puritanos do Parlamento, os quais interceptavam sua mala, para ver se não haveria dentro correspondência suspeita, e foram até mandar dar busca à noite na Legação, ao que se opôs Macedo com tamanha energia que, no dia imediato, se lhe mandou desculpa do ato, atribuindo-o a excesso de oficiais inferiores.

Da violação da sua correspondência tirou Antônio de Sousa de Macedo um desforço divertido. Um dia que o Parlamento exigiu que o correio fosse aberto diante do secretário da legação para se poder verificar se parte não era destinada a pessoas estranhas, à missão, descobriram-se três cartas com os sobrescritos em cifra. Rasgados estes com alvoroço, encontraram-se dentro garatujas, cruzes pintadas e o desenho de um homem oferecendo uns óculos aos censores para lerem as ditas cartas. A partida fora combinada com a embaixada portuguesa em Paris. E para cúmulo de troça, o residente mandou reclamar os óculos, que dizia serem para êle.

A missão de que fora incumbido era árdua por muitos motivos, entre eles porque o sentimento dos realistas e dos católicos ingleses era favorável à Espanha, ao passo que os interesses portugueses estavam com a França, que não ajudara Carlos I nas suas dificuldades, não indo mais longe de que oferecer-se de medianeira entre o rei e o Parlamento. Por seu lado arreceavam-se os puritanos muito mais da França de Luís XIV, vitoriosa nas Flandres, do que do poderio já decadente dos Fclipes. A expansão francesa assustava, e já se definia a teoria política do balance of power.

Não podendo conviver, como êle escrevia a Vidigueira, com pessoas de consideração porque eram inimigas do rei, Antônio de Sousa de Macedo desforrava-se, franqueando seus salões ao populacho cm dias de festa. Ao celebrar a vitória de Montijo à portuguesa, com luminárias, foguetes, fogueiras e buscapés, mandou pôr músicos nas janelas e acudiram "muitas moças, ainda que de pouca qualidade, que grande parte da noite estiveram dançando na minha sala ao som dos rabicóis. Os ingleses dizem que nunca viram tal festa". Quero bem crer.

Antônio de Sousa de Macedo não gostava dos ingleses. Ao Conde da Vidigueira, descendente de Vasco da Gama, que lhe encomendara certas buscas genealógicas, respondia:

Farcy diligencia aserca da família dos Gamas, porém não me persuado a que homem tam generoso como foi o grande Dom Vasco da Gama, tinha origem inglesa.

Levava sua prevenção ao ponto de afirmar que "esta nação geralmente não tem talento para escrever em nenhuma matéria". Note-se que a esse tempo já a Inglaterra tinha produzido Shakespeare e Bacon. Macedo, que era um homem culto e um homem de letras, esquecia-os porém, para encarnar o avô do personagem de Eça de Queirós que perguntava, espantado, se a Inglaterra tinha poetas? O desenfado com que o Sr. Edgar Prestage trata essa e outras boutades de residente depõe muito em abono da sua probidade de escritor, pois que não cessa de enaltecer-lhe o mérito.

Um diplomata, para ser útil ao seu país, não carece de ter afeição pelo país onde se acha acreditado: c mesmo conveniente que tal afeição, a dar-se, não seja viva, pois poderia empanar a visão exata dos interesses nacionais. Antes lhe seja um quase nada hostil, para melhor se destacarem à sua vista os perigos. Macedo exagerava a hostilidade a uma das facões que se disputavam o mando na Inglaterra: "Eu terei bem de contar, se escapar daqui com orelhas". Escapou inteiro, mas não sem injúrias, como aliás foram assacadas ao embaixador de França e a outros diplomatas.

O seu programa não pôde ser todo executado, porque era ambicioso em demasia e tinha contra si a força crescente do Parlamento. Por meio do consórcio da infanta, queria Macedo granjear a liberdade de consciência para os católicos ingleses, disto fazendo condição. Também queria negociar uma liga entre França, Inglaterra e Portugal contra Castella, o que não era factível: obteve contudo que Carlos I mandasse para Portugal um embaixador, o que era a melhor confirmação do reconhecimento de Dom João IV.

Afinal, aborrecido, atrasado na sua fazenda, recebendo tarde e a más horas os seus vencimentos, apertaram-no as saudades de Portugal e insistiu tanto para que o deixassem voltar, que lhe foi feita a vontade, sem que precisasse, para sua justificação, de levar a cabeça quebrada, como êle dizia quando o seu soberano o autorizou a partir em caso de perigo. Queria ir gozar da luz do sol, que eu não tenho visto ha sinco annos, como Deus o criou, e tenho passado sinco invernos em que os dias sam noites claras, e sinco vcrõis, cm que os dias sam dias obscuros, e pelos invernos estive sempre tremendo de frio e nos verõis tremendo da peste, e sem ter a converçaçam senão de homens pelo menos meios bêbados, e emfim, sem refrigério algum…

Dois séculos e meio depois conheci em Londres um secretário da legação portuguesa, minado pela tuberculose, que dizia com graça regressar para Portugal "para pôr-se a secar". Antônio de Sousa de Macedo foi mais feliz do que êle, por ter sobrevivido quase 40 anos à sua residência.

Parnamirim, junho de 1917

 

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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