VERGÍLIO FERREIRA NOS CAMINHOS DA INTERROGAÇÃO

VERGÍLIO FERREIRA NOS CAMINHOS DA
INTERROGAÇÃO

por Isabel Rosete

 

 

A interrogação tem, para Vergílio
Ferreira, um sentido ontológico e não apenas lógico, tal como as perguntas para
as quais encontramos sempre respostas, nesses mesmos espaços prometaicos de que
o autor sistematicamente se afasta.

Perante as interrogações que o intrigam, e
à medida que vai chegando ao fim, Vergílio Ferreira guarda o silêncio,
vocábulo de mérito primeiro em toda a sua obra.

A Natureza, por si mesma, encarrega-se de
ir organizando esse espaço metafísico, bem como o modo de ser e de sentir do Eu
que o incorpora, para o harmonizar com a morte real, sempre presente em cada
acto humano, que um dia virá, amanhã ou depois, sempre acompanhada das mais
radicais interrogações, por entre as quais se entretece o jogo da temporalidade
da existência, quiçá a hora do balanço final, onde se esgotaram todas as
perguntas e, por conseguinte, todas as respostas.

Esta postura, assumida por Vergílio Ferreira,
puramente conceptual e que o conduz a fazer uma distinção clara entre
interrogação e pergunta, emerge, no seio da sua obra, como uma das teses centrais,
defendidas em Invocação ao meu Corpo.

As diferenças entre os dois termos são
substanciais. Convém atentar, com precisão, em cada uma delas. Não se trata aqui
de simples nuances, mas de questões de fundo que marcam a finura e a própria
trajectória, a concepção de mundo, de vida e de homem perfilhada pelo autor.

À semelhança de Heidegger faz-nos entrever uma
postura que, adopta como traço marcante, a indagação permanente, a interrogação
não apenas como forma de estar, mas, sobretudo, como forma de ser de um Eu inextrincavelmente
irredutível.

Senão vejamos: «Uma pergunta não
interroga: uma pergunta diz a resposta. Porque uma pergunta está do lado do
problema a resolver, do ainda simplesmente desconhecido; e a interrogação está
do lado do insondável. A pergunta desenvolve-se na clara horizontalidade; a
interrogação na obscura verticalidade. Como em jogo de cabra-cega, em que há
seres à nossa volta, a pergunta orienta-se entre os que lhe não pertencem até
achar o que procura. Mas a interrogação não encontra, porque nada há para
achar. O limite da sua
esperança está menos no triunfo de um encontro,
do que no cansaço, na
resignação, ou na evidência natural do que nos
coube, como nos é evidente ter cinco sentidos e não mais
»[1].

Digamos que a história do pensamento ocidental nos legou
a tradição, cada vez mais comum, da «pergunta-e-resposta» como um mero
passatempo, como um simples jogo que brota e está presente na nossa linguagem
de todos os dias. E assim vamos jogando esse jogo, sem que nos apercebamos da
sua existência, em cada acto de pensamento ou em cada acto de fala.

Até mesmo o interrogar depressa degenerou em pergunta. O interrogar, qual modo inaugural de questionar o mundo, tivializou-se no jogo de «pergunta-e-resposta»
quotidiano, perdendo, deste modo, o seu enraizamento ontológico primordial.

O espanto original quebrou-se. O mundo tornou-se
deveras evidente para comportar essa interrogação autêntica: aquela que quer
captar o sentido último das coisas, no seu brotar primordial; aquela que
procura o verdadeiro significado daquilo que é em si mesmo, algures perdido na
trivialidade das aparências e na falsa evidência das sombras que nos percorrem.

Ao espanto original de um olhar virgem e indefeso,
pré‑conceptual, não moldado pelos traços artificiosamente
construídos pela “civilização”, pela “cultura”, que só vê e faz
ver o quer que seja visto, o que nos respondeu não foi, ainda, a suspensão
atónita. O que respondeu foi a resposta. E, assim, sofismado o primeiro porquê,
organizou-se uma cadeia ininterrupta de porquês, sob a base de uma certa
confiança, fácil, ilusoriamente evidente e esquecida como um sono. Não se
perturba mais a certeza ou a suspeita da emergência de uma resposta provisória,
porque uma resposta é, em si mesma, definitiva.

O que está em causa, o que se põe em questão, é a
inteligibilidade da vida. Sabemos que o reino do homem é o reino do humano, que
a expressão do seu poder não é propriamente o domínio da Terra, dos mares ou
dos astros, mas o domínio das sombras.

A interrogação alarmou-nos e, deste modo, acabou em pergunta. Fecharam-se todas as portas e todas as janelas e, mesmo assim, não pudemos
permanecer no reino das mónadas leibnizianas, mas apenas no espaço limitado que
enquadra a nossa dúvida no extremo rigor de uma construção.

Aí encerrados, jamais alguma interrogação nos solicita
do espaço livre: «Pesados muros do nosso repouso, aí se dorme tranquilo, e a
pergunta que se formula é a resposta que a dá, que a condiciona no traçado dos
muros onde ela embate, onde ela se estrutura e se molda
»[2].

Vergílio Ferreira instaura, neste contexto, a
dialéctica claridade/sombra, ou, se preferirmos, luz/sombra, nos
mesmos moldes em que Platão no-la apresenta, logo no início do Livro VII da República,
aquando da exposição da “alegoria da caverna”, a qual corresponde, por
sua vez, à dialéctica realidade/aparência, modelo/cópia, inteligível/sensível.

Caminhando para além de Platão, ao reino das sombras,
Vergílio Ferreira acrescenta o espaço específico do mistério, de cuja
voz demoníaca o homem se alimenta e vivifica.

Mas há, também, o miraculoso e o estranho, o espanto e
a inquietação. Há sempre uma outra realidade, para além da realidade, um outro
homem para além do homem, um outro mundo para além do mundo… E quando o nosso
sono se quebrar, o nosso mundo ressurge, esse mundo das superfícies distintas,
mas também das formas perecíveis. Assim, «à pergunta dos nossos olhos, a
resposta vem ter connosco, adianta-se à sua formulação
».

O reino das sombras continua a fascinar-nos,
exactamente do mesmo modo que seduzia os prisioneiros algemados, de pernas e
pescoços, dentro da caverna platónica. Talvez ainda não nos tenhamos
libertado dela e, por isso, a voz do mistério continua a atrair-nos com a mesma
intensidade, apesar da sua natureza demoníaca. Além disso, se a claridade
encanta, também decepciona, ofusca, confunde…, porque o que nos é revelado,
quando é revelado, apresenta-se, a um tempo, como vitória e como derrota.

Se a nossa ânsia de revelação se nos apresenta sempre
como infinita, se o nosso desejo de aceder à suprema epifania é indeterminável,
não deixamos, porém, de manter o obscuro desejo de que o mistério aí habite e
permaneça.

O que nele nos atrai é absolutamente invencível: é o
desejo contraditório de aniquilar o desconhecido e, ao mesmo tempo, de
conservar o miraculoso. É o contraditório desejo de subordinar o estranho à
claridade inteligível e, concomitantemente, de manter nele ainda a voz do
insondável. Caminhamos sempre, mesmo que algum freio nos retraia, para o ex‑traordinário,
para o im-possível, para o e-norme, a limite, para o mais
inquietante
.

Para Vergílio Ferreira, o mistério é uma forma de
mensagem que se traduz, tanto «na evidência desinteressada, como no
desventrado logro do
prestidigitador. Assim reconhecemos que há uma voz
atrás da voz
, uma força além da evidência, uma realidade atrás da
realidade, uma interrogação além da pergunta. Assim reconhecemos que um vasto
mundo de sombra nos engloba, o da claridade, e que esse nos fascina
»[3].

Sentimos o eco de uma pergunta que nunca chega a
perguntar, mas também o eco da interrogação que não é senão imóvel espanto.
Deste espanto brota a notícia na inquietação de tudo o que nos inquieta, a
notícia na sedução do enigma e, também, o mistério que é apenas a grande incógnita
do desconhecimento.

A interrogação é o limite de todas as perguntas
que possamos colocar, tal como o mar, infinito, é o limite de todos os rios que
possamos imaginar. Lancemo-nos na profunda interrogação, a única que
verdadeiramente interessa. Na interrogação que ultrapassa todos os limites,
todas as fronteiras; na interrogação que fala ao que não tem fim e à morte: «Como
a luz vibrada ao espaço aí se perde em vazio, no vazio se nos esgota o interrogar.
Não assim na resposta destes muros que me cercam onde embata a chama breve da
pergunta acidental
[4].

4 de Março, de 2007


[1] Vergílio Ferreira, Invocação
ao Meu Corpo
, pp. 20 – 21.

[2] Idem, Ibidem, p. 22.

[3] Idem, Ibidem p. 23.

[4] Idem, Ibidem, p. 24.

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