História da Filosofia na Antiguidade – Hirschberger
F. Deus
a) Existência de Deus
Se lermos as palavras cheias de vida que
o velho Platão dirige, nas Leis
(887 c ss.) a uma juventude que manifesta as maiores dúvidas sobre a
existência de Deus, teremos, imediatamente, a impressão de que, para este
filósofo, a religião toda depende do coração. Contudo, Deus não é, para Platão, apenas objeto da fé! Tal
concepção é ainda estranha ao homem antigo. A existência de Deus é para êle,
antes, objeto da ciência. Platão não
nos deixou nenhuma prova formal da existência de Deus. Mas há, nas suas obras,
dois processos de pensamento indicativas de uma via clara para Deus, e que foi
aproveitada na Filosofia posterior, como uma prova real dessa existência.
Podemos denominar a uma dessas vias, a física e, à outra, a dialética.
α) A via física para Deus. —
A via física para Deus é aquela reflexão de que Platão, ao mesmo tempo, se serve para provar a imortalidade
da alma. É brevemente tratada no Fedro (245cs.s.) e longamente
desenvolvida nas Leis (891 bss). O ponto de partida é o fato do
movimento. É incontestável, Ora, todo movimento ou o é por si mesmo, se vem de
dentro. ou por outro, se
veio de fora. Mas todo movimento proveniente de outro deve afinal, reduzir-se
ao auto-movimento. O auto-movimento, comparado com o procedente de fora, é o
primeiro, lógica, e ontologicamente. Assim, o fato do movimento do mundo
pressupõe uma ou várias fontes de auto-movimento. Mas, ao que a si
mesmo se move se chama, ordinariamente, alma. A alma é, assim, enquanto
comparada com o corpo, anterior; e foi um erro dos pré-socráticos não tê-lo
visto. Eles, com a sua posição materialista, abriram o caminho ao
ateísmo. Ora, as almas, como a experiência o mostra, ou são boas ou
más. Uma alma boa produz movimentos ordenados; desordenados, a má.
Ma.s os grandes e gerais movimentos
da natureza, sobretudo os dos corpos celestes, são absolutamente regulares e
ordenados. Movimentos
desordenados, era a natureza, são somente exceções de importância reduzida. Portanto, devemos admitir
que as almas, que governam e donde procedem
os movimentes cósmicos, são bons e bem ordenadas. E que a. suprema das almas,
aquela que é a mais importante para a explicação do-«movimento mais universal
e certo, é, também, a mais perfeita e a melhor. Mas
como certamente também há desordem
no mundo, teremos de concluir a existência de muitas almas, ou, pelo menos, de
mais de uma, para podermos explicar as causas de perturbação. Porém, o
essencial é o que sabemos sobre a existência da alma, a mais perfeita. Comparadas com ela, nenhum peso tem as exceções.
O
pensamento de Platão não
conduz a um verdadeiro monoteísmo; nem mesmo a um Criador do mundo, mas apenas
a um construtor do mundo; possivelmente, também, apenas a um Deus imanente, a
saber, a Alma do mundo, embora não se imponha necessariamente esta
interpretação. Pois a Alma de mundo é já pré-existente ao cosmos; e o
psíquico é anterior ao comprimento, á largura e à profundidade,
o que deixa concluir a transcendência de Deus. Seja como fôr, em todo
caso, Platão, com o seu modo de
pensar, lançou os fundamentos da
prova aristotélica da existência de Deus, deduzida do movimento. Só
poderemos devidamente apreciar a prova tirada
do motor imóvel, no sétimo e oitavo livro da Física, de Aristóteles,
se tivermos presente ao espírito o que Platão escreveu sobre esta questão na obra da sua velhice.
β) A via dialética para
Deus. — A via dialética para Deus é a ascensão de hipótese em hipótese,
para o anhypo teton, o derradeiro fundamento do ser, mas transcendente a
este e a tudo sobrepujando em força e valor. Já conhecemos esta ascensão (cf.
supra, pag. 150). Ela constitui uma antecipação histórico-doutrinal para a
futura prova da existência de Deus, tirada da causalidade e da contingência.
Marcha paralela à ascensão dialética para Deus, que se consuma, no
pensamento, indica a via fundada no belo, que nos fornece o Eros. Já o Symposion
a tinha esboçado, quando Diotima ensina
Sócrates a amar aquela arte, que
sobe a um amor ideal, que não deixa, mais nenhum desejo insaciável, mas é de
uma suficiência total, ιχανον, i. é, um absoluto
onde a alma descansa. É aquele repouso, do qual mais tarde escreverá Agostinho aquela famosa palavra:
"Inquieto, ó Deus, está o nosso coração, até repousar em Ti". A via
dialética conduz a um Deus transcendental no sentido do monoteísmo. Platão, é verdade, recorre
freqüentemente ao modo de exprimir-se usual da religião popular, embora fosse,
pessoalmente e sem dúvida, monoteísta, Sempre que fala com total seriedade e
externa o seu íntimo, diz em regra Deus era vez de deuses.
b) Essência de Deus
Se se lhe perguntasse a respeito da
essência de Deus, sem dúvida teria respondido como sobre a essência do Bem: o
assunto é demasiado excelso para poder eu, imediatamente, responder. Apenas
indiretamente, podemos concluir a sua concepção sobre Deus, por certas
modalidades ocasionais do seu pensamento. Se considerarmos a via dialética para
Deus, torna-se então claro que, para Platão,
devemos fazer consistir a essência de Deus na asseidade como na sua
absoluta valoração. Deus é o ser e Deus é o bem. Mas se levarmos em couta a via
física para Deus até ao fim, então Deus se mostra como atualidade pura. Deus é
vida e Deus é ação. Contudo Platão desconhece
um Deus pessoal.
c) Justificação de Deus
α) Deísmo antigo. — Mas
Platão já conhece o problema de
Teodicéia, consistente na questão da justificação de Deus em face da desordem,
do irracional, do mal e do pecado existentes no mundo. Depois de ter provado,
contra o ateísmo, a existência de Deus, volta-se êle contra aqueles céticos,
que bem admitiam crer na existência de Deus, mas, em presença da referida disteleologia,
chegavam à conclusão de que, certo, Deus produziu o mundo, mas, depois, já não
se ocupa com ele (Leis, 899 d — 900b. É o modo de pensar, designado na
Filosofia moderna como deísmo. Já demos uma indicação para resolver-se esse
problema de Teodicéia.
β) Visão do conjunto. — Agora
ouvimos, de Platão, que há um
erro incluído nessas objeções contra a existência de Deus. É que se julga das
coisas e das relações, de um ponto de vista limitado, levando em conta apenas o
sujeito e as suas momentâneas situações, sem se visionar o conjunto. Mas se
considerássemos esse conjunto na sua totalidade, então as coisas mudariam de aspecto e se alteraria,
fundamentalmente, o critério da valorização. E, finalmente, devemos refletir
que a vida do homem neste mundo encerra a
totalidade da vida humana. Há uma sobrevivência depois da morte, e, se
quisermos pensar, desde já, na justiça de Deus, devemos, desde já, levar em
conta o que lá acontecerá. Só almas pequeninas totalizam a sua visão em aspectos parciais das coisas. As almas
melhores, pelo contrário, supervisionam tudo, mesmo .o além, e nada do que concerne o homem lhes
escapa. "Embora fosses minúsculo e te escondesses nas profundezas da
terra; ou se tivesses asas e te
alçasses até ao céu, mesmo assim, não poderias escapar à efetivação do castigo
dos deuses sobre ti, quer seja nesta terra quer no Hades inferior ou num lugar ainda
mais temeroso" (Leis, 905 a). É esta uma posição que encontramos
em todos os pensadores cristãos, quando tratam de justificação de Deus, no
além, e que reaparece mesmo em Kant, quando
trata de fundar o postulado da imortalidade da alma.
d)
Deus e o homem
α)
A bondade onipotente. — Quais as relações entre Deus e o
homem? Na obra da sua velhice, quando o filósofo então já se encontrava no
limiar da eternidade, a significação de Deus alcança, para êle, o seu
ponto culminante. Nós homens, aí se diz, somos uma criação admirável,
saída das mãos de Deus, feitos talvez para sermos meros joguetes da divindade, mas
formados, porventura, com um mito mais nobre; .seja como fôr, somos
propriedade de Deus, somas uns como escravos e brinquedos nas suas mãos. Só êle
maneja os fios e dirige a nossa vida. "Por isso, as coisas humanas não são
dignas de grande afã" (Leis, 808 b). Mas o homem justo, moral e
bom, amará sempre a Deus. Ser-lhe-á amigo. Eis porque o homem deve esforçar-se
por fugir a este mundo.
β) O assemelhar-se com
Deus. — "A. fuga, porém, consiste em nos assemelharmos com Deus,
tanto quanto passível" (Teeteto, 176 a). Ao lado do esforço moral pela perfeição própria, pela ssemelhança
com Deus, há uma outra maneira mais ampla de união com Deus — a oração.
γ) A oração. — Platão a aconselha, particularmente, em
ocasiões mais importantes e .solenes, por exemplo, na celebração do casamento
ou ao assumir uma grande empresa. Mas não devemos orar em vista de ninharias,
para obter ouro ou prata ou alguma coisa que não é para quem pede um verdadeiro
bem. Mas, sobretudo, não devemos crer possamos captar as boas graças de Deus,
por meio de oração ou de .sacrifício, mais ou menos como podemos convencer ou
subornar um homem. Deus é imutável. Quem crê poder, pela oração e pelo
sacrifício, conciliar a divindade para uma ação injusta, é ainda pior que as
aderentes do deísmo ou do ateísmo. O sentido próprio da oração não pode ser o
obtermos, exatamente, o que desejamos, como fazem as crianças, mas devemos
pedir para vivermos sensata e racionalmente. Este é o genuíno platonismo. A
oração que vem no fim do Fedro espelha o alto ethos e o nobre
sentimento deste filósofo, que é coutado entre os primeiros espíritos
religiosos da humanidade: "ó querido Pan e todos os demais deuses deste
lugar, fazei-me tornar-me belo no meu íntimo. O que possuo de bens externos,
oxalá possa harmonizar-se com o meu ser. Que me pareça rico o sábio. De
riquezas materiais, seja-me dado passuir tanto quanto convém a um homem
prudente o sóbrio".
e) Teologia natural
a) Religião e moral. — O esforço de
Platão por assegurar a
existência de Deus contra o ateísmo; a sua providência, contra o deísmo; e a
.sua justiça e santidade, contra uma concepção religiosa, mais mágica do que
ética, é apoiado m reflexões ético-pedagógicas. Erros nesta matéria arruínam a
alma e o caráter, pensa êle. Mas Deus e a imortalidade não são, para êle,
postulados assumidos apenas por necessidades práticas, i. é, morais.
β) Fé e saber. — A sua
teologia pretende ser um conjunto de verdades teóricas, e existir, portanto,
justificada pe-panto a razão, e não apenas perante a vontade e o coração. Ooin
os seus- pensamentos .sobre a existência, a essência, a providência, a justiça
e a santidade de Deus, nas Leis, Platão
se tornou o fundador da teologia natural (theologia naturalis), que
desempenhará tão grande papel na história do espírito Ocidental. Hoje, muitas
vezes, se considera o conceito da teologia
natural em oposição á religião sobrenatural revelada. Mas êste não é o
sentido original desta expressão. Podemos rastrear a sua existência já
em Varrão, contemporâneo de
Cícero. Este distingue três modos
de se "falar de Deus": o poético, o civil, e o natural ou filosófico.
A teologia poética coincide com a mitologia; tem significação apenas estética.
A civil é idêntica ao culto público ao Estado; condiz, assim, com o ordenamento
das festas e cerimônias prescritas pelo calen-diário. Nada tem a ver com a
verdade e a falsidade, mas procede só por motivos de finalidade
político-administrativa, como Múcio Scevola,
o Pontífice romano, o disse lacônicamente, mas de modo puramente
romano. Ã teologia natural, ao contrário, importa mais a indagação da verdade
filosófica a respeito de Deus, do que o prazer estético e as utilizações
políticas. O que o homem pode saber e estabelecer, fundado na sua experiência e
reflexão, sobre a natureza e o mundo, isto constitui o objeto da teologia
natural. Ela busca a ver-dade real com o auxílio da ciência real. "Sobre esta
teologia deixaram os filósofos muitos livros", como já o cita Agostinho (De Civ. Dei, VI, 5), haurindo em Varrão. O primeiro desta longa série
foi Platão. Foi o primeiro a
usar o termo
"Teologia"
(Θεολογια) (Rep. 379 a) e
é êle, certamente, o
criador deste conceito (W. Jaeger).
f) Bibliografia
A. Diès, Le
Dieu de Platon et la Réligion de Platon. Ambos em: Autour de
Platon (Paris 1927) 523-603. P. SolmseM,
Plato’s Theology (Ithaca, N. Y. 1942). W. J. Verdenitus, Platons Gottes begriff.
La notion du divin dépuis Homère junqu’à Platon, Rócueil de
sept. eixposées et discussion par M. M. Chamtraine (Paris 1955).A. Manno, Il Teiumo di Platone (Napoli
1955). Do mesmo: Sul rapporto tra le idee e Dio m Platone (Napoli 1955).
Para o conceito de "Teologia Natural", consulte-se, especialmente, W.
Jaeger, em Dic Theologie der frühen griechischen Denker — A Teologia dos Primeiros
Pensadores Gregos (1953) págs. 9 ss.
G. A Antiga Academia
Costuma-se abranger, com o nome de
"Antiga Academia", os homens que ensinavam na Academia, nos anos
subseqüentes à morte de Platão. Chefes
da escola nesses tempos foram: o sobrinho de Platão,
Speusipo (847-388); Xenócrates (338-314);
Polemon (314-269) e Orates (269 até 246). Um dos mais
significativos entre os sábios da Antiga Academia é Heraclides Pôntico (v. supra pág. 150), ainda pertencente ao
4.° século. Tanto êle como as figuras do matemático Filipo de Opunte e do botânico Diocles permitem conjeturar que, na Antiga Academia, também
foram cultivadas as ciências particulares. No fundo conservou contudo a escola,
e isso cada vez; mais, o caráter de uma confraria pitagórica. Também na
orientação filosófica do pensamento, fizeram-se sentir as inclinações
pitagóricas, ainda mais do que influíram sobre o velho Platão. Nela constitui um dos problemas mais importantes a
questão das relações entre a Idéia e o número, Platão distinguira entre números ideais e matemáticos: Xenócrates identificou números ideais
e matemáticos. Uma outra problemática, objeto de repetidas reflexões, era a da
relação entre a sensibilidade e o pensamento, que levou a suprimir o dualismo
platônico. Um terceiro problema surgiu da doutrina do prazer. Também se atenuou
a dogmática, e os bens externos vieram a considerar-se entre os fatores da
felicidade, com o que a Academia mostrou maior amplitude de vistas do que a
ética dos cínicos e dos estóicos. No fim da sua evolução, fizeram-se sentir
influências estranhas ao genuíno platonismo: eram posições, em parte, místicas
e, em parte, pré-científicas. Foram provocadas por Xenócrates; a Academia se abre às especulações orientais; a
natureza é demonizada, a doutrina dos números se torna pura fantasia. O número
um é o primeiro Deus, a saber, Espírito, Pai e Rei do céu; o número dois é
feminino; a mãe dos deuses é alma e governa o mundo infra-celeste. Os
da ciência está para além do céu; o da sensação, aquém; e o
da opinião é o próprio céu. Só com a Média Academia o bom senso ressurgirá.
Bibliografia
P. Lang, De Speusippi Academici
Scriptis. Accedunt fragmenta (Bonn 19ll). R. Heinze, Xenokrates. Darstellung der Lehre. Samm lung der
Fragmente. Xenócrates. Exposção da Doutrina e Coletânea dos Fragmentos (1892). K. v. Fritz, Die Ideenlehre des Eudoxos
von Knidos …. ihr Verhältnis zur platonisehen Ideenlehre — A
Doutrina das Idéias de Eudóxio de Cnidos e a sua Relação com a Doutrina das
Idéias de Platfío (1927). H. Karpp, Untersuchungen
zur Philosophie des Eudoxos ron Knidos — Pesquisas sobre a Filosofia de
Eudóxio de Cnidos (1933).
Fonte: Ed. Herder
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