AS TRÊS PERGUNTAS DO REI – Contos de Adivinhação

AS TRÊS PERGUNTAS DO REI

Deu um príncipe poderoso uma comenda grande de muita renda a um fidalgo pobre, que, além de a ter ganhado em África, segundo o costume, a merecia por sua virtuosa condição e bons costumes.

Este comendador, tanto que tomou posse da comenda, recolheu-se a viver no mesmo lugar onde a tinha. Era uma boa vila, e êle fez da renda cinco partes, das quais duas bastavam para êle e toda sua família comer, beber, vestir e calçar, e para servidores; e as outras duas gastava com os pobres que havia naquela comarca, dando-lhes ordinariamente tudo o que lhes era necessário; e uma quinta parte andava sempre de sobressalente, para mercês extraordinárias, "hóspedes, ou fábrica de alguma propriedade.

E trazia isto tão redondo e bem partido, que a todos tinha provido do que cumpria, e a sua casa sempre aparelhada para as necessidades que podiam suceder. E àcêrca do dar das esmolas levava tanto gosto que se fizessem, e temia-se de maus servidores as não darem como êle queria, que tinha por exercício uma vez na semana fazer êle por sua mão o que mandava que se fizesse cada dia, que era repartir com os pobres — que já tinha determinado o que se havia de dar a cada pessoa.

E no dia que êle o dava perguntava se nos dias atrás haviam descuidado alguma cousa; e, achando nisto falta, estranhava-o muito a quem tinha a cuIpa e se o caso o requeria, castigava-o bem. Porque, de sua parte, eram os ministros desta obra tão provi dos e pagos, que nunca com necessidade viessem a fazer vileza.

E, ainda que para este efeito tinha homens mui virtuosos, entre eles acertou haver um de tão ruim condição, que tudo o que davam, ainda que fosse de esmola, se lho não davam a êle, parecia-lhe que era mal gastado; e tudo o que êle tinha, e podia haver, cuidava que era pouco.

E um dia disse ao senhor que lhe pedia por mercê que olhasse, que gastava sua fazenda mal. e que se podia dizer que tirava o pão aos filhou e o dava aos cães, porque não olhava por êle, que era um homem honrado, que havia doze anos que o ser via, e que não tinha para si mais que quarenta mil réis por ano e um vestido. Que lhe pedia que del xasse de gastar um mês com aquela caniçalha que mantinha, que lhe gastava cada dia muito; o que lhe fizesse mercê daquilo por seu serviço, que bem lhe tinha merecido. E não quisesse ter ali tanto saloio, gente ruim, que vinham esgalgados — maridos, mu lheres e filhos — que lhe comiam tanto, que eles, nem os seus, não podiam forrar ao cabo do ano se quer cinqüenta cruzados, porque aqueles comiam tudo.

Disto se riu o senhor, e disse:

— Vós cuidais que tendes pouco de mim, tendo mais de um tostão por cada dia. E dou-vos vestido e casa, e calo-me ao que vejo que aproveitais paravós. E parece-vos muito dois vinténs que dou a cada pobre homem para ele, e trinta réis para cada mulher, e vintém para filho ou filha. E quereis que lhes tire isto e que a vós, que tendes mais de cem réis cada dia, vos acrescente, estando em minha casa das portas a dentro! Desengano-vos que o não hei-de fazer, por nenhum caso. Contentai-vos, se quiserdes; e, se não, i-vos embora, e pagar-vos-hei o serviço que alegais, que por doze anos que há que servis, danão-vos eu de comer, beber, vestir, e calçar, por justiça bem vos pagaria outrem com quarenta mil réis pagos em dinheiro. Ora eu dou-vo-los de tença cada um ano, e visto-vos? Que me pedis? Não peçais o sobejo, que parece muito mal.

Desta resposta ficou este homem muito agastado. E foi-se a El-rei, que o conhecia por familiar criado daquele comendador, e disse-lhe:

— Senhor: eu sou do comendador D. Simão. Criei-me em sua casa doze anos há, e não posso sofrer tal desmancho, que ‘parece que o que trabalhou por haver toda a sua vida agora se pós a gastar em um ano. Eu lho repreendi muito: não dá nada por mim. Parece razão que Vossa Alteza atente nisso, porque ele mantêm um caniçalha que são mais de duzentas cabeças. Faça com êle que os despida e gaste aquela regida com os seus; e se não, tire-lha antes que deixá-lo esperdiçar tanto dinheiro.

Pareceu-lhe a El-rei que este dizia verdade e que D. Simão era caçador e tinha muitos galgos e outros cães, e que por isso o repreendia do gasto demasiado e sem necessidade. E quando ouviu dizer duzentos cães, pasmou; e, sem atentar o que fazia,

se indignou tanto contra o fidalgo, que determinou destruí-lo ou matá-lo.

E assim, com súbita melancolia, fez fazer pres tes, e cavalgou afoitado, e em cinco dias foi ter | Comenda onde o bom comendador estava, bem fora de cuidar a melancolia que El-rei trazia contra êle,

* * *

Tanto que El-rei chegou, foi o comendador para lhe beijar a mão. El-rei lhe mostrou no rosto a má vontade que lhe trazia, e o apartou logo, e disse-lhe:

 Eu me tenho informado dos males que fazeis os quais determino castigar. E há-de ser amanhã, salvo se, em amanhecendo, me responderdes a três cousas que eu agora vos quero perguntar. E acertando em todas, terei para mim que acertais no que fazeis; e se não, sois condenado à morte.

Muito lhe pesou ao comendador em ouvir isto, e quisera saber as culpas quê lhe punham, para desculpar-se delas; porém El-rei o não quis escutar, mas disse-lhe:

 Pela manhã, mui cedo, vinde-me aqui dizer em que lugar do mundo é o meio dele; e quanto há de altura da terra até o céu; e que cousa está imaginando o meu coração naquele momento em que vós me responderdes. E sem estas respostas, e certas, não apareçais ante mim, nem me faleis.

E sem o querer ouvir, se recolheu a uma câmara a cear e dormir; e o comendador ficou agastado, imaginando no caso, sem saber porque estava El-rei melancólico dele. Nem entendia o que havia de responder a suas perguntas; e quando lhe representava a imaginação que se fosse, em tal caso tinha maior pena, pela esmola que os pobres perdiam dele, se, por padecer seu desterro, deixasse a Comenda.

E com isto se saiu a passear pela horta daquela sua casa, em a qual estava por hortelão um virtuoso homem, que na idade, fisionomia do rosto, e fala, se parecia muito ao comendador e diferençava no traje somente; tanto que algumas vezes, querendo por passatempo fazer festa, se vestia o hortelão de roupas do senhor, e Levemente se enganavam os criados da casa.

E andando assim passeando, foi vista sua tristeza do hortelão, que era virtuoso e de boa criação; e foi-se ao senhor, ao qual afincadamente pediu por mercê que lhe desse conta da sua paixão, que poderia ser que por seu meio lhe daria Deus algum remédio; e, quando não fosse assim, ao menos em publicá-la desabafaria mais levemente.

O senhor, que sabia que este hortelão era homem de muita habilidade e saber, lhe contou o caso, como se passava com El-rei. E mais além disto disse-lhe de si:

 O que aqui mais sinto é que amanhã havia eu de partir a esmola com os pobres, segundo meu costume; e com esta vinda de El-rei convêm que o deixe de fazer, por ir ter ‘com Sua Alteza pela manhã. E assim deixo de fazer, o que soía a fazer, e é serviço de Deus e meu gosto, e irei responder ao que não sei; nem queria ir a isso, porque tenho temor que suceda de ali algum mal sem eu ter culpa.

O hortelão que era muito sisudo, disse:

 Senhor: tudo se remediará com uma cousa. Mandai-me chamar pela manhã por um homem, dizendo que quereis que eu vá partir as esmolas em vosso nome, porquanto está aqui El-rei e vós que reis. ir para êle. E, eu lá, ambos daremos remédio a tudo como seja bem. Confiai em Deus que sem pre provê nas maiores necessidades, que êle vos proverá em esta.

O comendador, que tinha experiência que este hortelão era mui sagaz em suas cousas, se esfor çou; e, ficando na câmara, como foi manhã lhe mandou dizer por um homem de sua casa que viesse ali, para que êle desse as esmolas aos pobres, por que se queria ir a falar com El-rei.

O qual homem foi e o chamou. E o hortelão, que esperava aquele recado, tanto que lho deram foi logo, e ia dizendo pelo caminho:

 Hoje reparto eu. Todos me hão-de obedecer senão saberá o sr. D. Simão como me tratam, que êle me mandou chamar para me dizer o que hei-de fazer.

E tanto que entrou na câmara, disse:

 Senhor: o que é necessário fazer para remédio da afronta em que estamos é que dispais essas roupas e vistais estas minhas. E saireis daqui fingindo ser eu, pois que sabeis o que haveis de fazer na repartição da esmola. E eu fingirei ser vós e irei ter com El-rei, que já tenho cuidado tudo o que hei-de dizer e fazer para, com ajuda de Deus, livrar a vossa pessoa e a minha da afronta presente.

O que tudo se fez assim. O comendador foi dar a esmola como tinha de costume, vestido no hábito de hortelão, e com seu nome; e enquanto a dava rogava a Deus Nosso Senhor que livrasse de mal a êle e a seu hortelão. E o hortelão, no hábito e nome do comendador, foi falar a El-rei.

E isto foi feito Com tanto segredo e resguardo, que ninguém na casa o soube nem o suspeitou. E o fingido comendador começou a passear à porta da câmara onde El-rei dormia; e, tanto que sentiu que estava vestido, lhe mandou recado que estava ali para lhe dar a resposta do que Sua Alteza perguntara ontem.

El-rei folgou disso e saiu para fora, a um corredor que ali se fazia, que ia ter sobre a horta. E, postas ambos ali, disse o hortelão, fingindo ser o comendador:

 Ontem perguntou Vossa Alteza três perguntas a que, respondendo, digo: Que quanto à ‘primeira {que ê onde está o meio do mundo) lhe afirmo que está ali.

E, lançando mão de um arremessão, de muitos que naquele corredor estavam, o pregou na horta, fazendo com êle formoso tiro.

 E para provar isto digo que o mundo ê redondo, e ninguém diz o contrário; e, sendo tal como é, em qualquer parte é o meio dele, como se pode ver em uma bola redonda, a qual aonde lhe puserem o dedo é o meio dela. Está Vossa Alteza nisto satisfeito ?

El-rei disse:

 Sim. Dizei as outras. Êle respondeu:

 A segunda é quanto é daqui da terra ao céu. Saiba Vossa Alteza que isto. tem medida igual — e é uma vista de olhos. Abaixe os olhos ao chão, e logo levante-os ao céu, que com uma só medida chegam; e mostra-se que é, como digo, uma vista d". olhos…

 Bem respondestes; livre estais das duas. Porém a> terceira, lenho para mim que nunca acrr tareis.

E êle disse:

 A essa melhor, Deus querendo. Porqve a terceira é que hei-de dizer que é o que Vossa Alteza cuida, no seu coração a esta hora de agora. E por que isto não tem outro juiz senão êle mesmo, eu lhe peço que o queira ser justo, como o é em tudo o mais, E, respondendo, digo que a esta hora Vossa Alteza, com todo o seu coração, cuida que está falando com D. Simão, o comendador; e fala com seu hortelão, que eu não sou êle, mas o hortelão da sua horta, que sua pessoa no serviço de Deus está empregada. E, se o quer ver vestido de minhas roupas, está dando esmolas aos pobres que mantêm cada dia nesta Co menda. E porque hoje Vossa Alteza o chamou, e êle tinha aquilo que fazer, trocámos os vestidos, para que, fazendo êle uma cousa, pudesse eu fazer outra e ajudá-lo.

El-rei, vendo a habilidade deste homem, e que em tudo dissera bem, quis saber dele com juramento a vida do comendador e seu exercício. O qual lhe disse miudamente tudo o que fazia, e como repartia sua renda, assim e da maneira que fica dito atrás, que El-rei folgou muito de saber, e disse que queria ir a ver.

Assim foi, e viu tudo miudamente; e entre os que ajudavam o comendador viu que andava ministrando o mau servo que lhe foi com o mexerico mentiroso. E o mandou prender, e foi condenado a perder todos os seus bens para o comendador, e a pessoa em perpétuo desterro. E ao hortelão dava

El-rei cargos honrosos na corte, por que andasse nela, o que êle não aceitou, por servir a seu senhor, que lho agradeceu e pagou, tratando-o dali por diante como irmão carnal.

E despedindo-se El-rei do comendador, lhe mandou dar das rendas da Coroa dois mil cruzados cada ano para esmolas, vendo como as fazia.

Perdoando ao mau servo, o comendador lhe tornou a fazenda por amor de Deus e o tornou a meter em casa, o que êle não soube agradecer, mas fez outros delitos a El-rei, com que perdeu a vida, que assim acontece aos maus.

Gonçalo Fernandes Trancoso, 1515-1596, "Histórias de Proveito e Exemplo", edição antológica pelo prof. Agostinho de Campos, Lisboa pp. 77-90, 1921, XII da coleção, XVII no original.

Teófilo Braga, "Contos Tradicionais do povo Portuguez", pp. 86-89, II» da ed. de 1883, publica um resumo, registando (pp. 157-158, 1°) uma versão popular, "Frei João sem Cuidados". Sílvio Romero recolheu uma variante brasileira de Sergipe, "O Padre sem Cuidados", pp. 250-252, "Contos Populares do Brasil", Rio de Janeiro, 1897. Já era divulgado no século XII, figurando no "Anecdotes historiques, légendes et apologues tirés du recueil inédit d’Etienne de Bourbon", edição de Lecoy de la Marche, comentado pelo conde de Puymaigre, "Folk-Lore", pp. 239-252, Paris, 1885. No conto de Estêvão de Bou-rbon o Rei intima a um sábio para que responda a três perguntas sob pena de multa excessiva. A primeira é: — onde se encontra o centro da terra? Dá o sábio resposta idêntica ao hortelão português. A segunda, quanta átom contêm o mar, foi respondida semelhantemciiU ao que disse o moleiro, na versão popular dl Teófilo Braga, conto 71. No "Patrafiuelo" de Juan Timoneda, (n.° 14) da época de Tran coso, há igualmente um Rei que recebe o co/.l« nheiro do abade, julgando-o em pessoa, para i i tisfazer a três problemas. O segundo é o mm» mo sobre o centro da terra. O último é a curió j identificação. Franco Sachetti, contemporâneo dl Dante, regista novela 4.a, versão tradicional nu Itália e repetida, com deformações, por Pitré, (1) Imbriani, Michel Zezza. Anderson, reunindo extenso material, publicou o completo "Kaiser und Abt", volume XLII das "Folk-Lore Com munications", Helsinki, Finlândia. É o conhe cido tema "The King and the Abbot" dos fol cloristas ingleses e norte-americanos. Geoffey Chaucer, "The Canterbury Tales."

Na classificação dos tipos de contos popula res, de Antti Aarne, figura como o Mt. 922. No Método, hoje clássico, de Aarne-Thompson, o conto de Trancoso é: — Mt. 922, H685 e H52II, para as respostas. Sobre a medida de altura do céu, não há entre as catalogadas pelo erudito professor da Universidade de Indiana. A ver são popular de Teófilo Braga é: — Mt. 922, H691. 1. 1, H704 e H5241. Todas as respostas estão registadas no volume III do "Motif-Index of Folk-Literature", de Stitt Thompson, colhidas em fontes alemãs e da Europa do Norte. Creio, pelo exposto, que a página de Trancoso i literária, com aproveitamento parcial de uma "estória" corrente na península. A fonte (ouse universalizou é a do conto de Teófilo Braga cujas transformações são encontradas em quási todos os folclores do Mundo. (C. CASCUDO)

(1) Fiabe Novelle e racconti popolari siciliani — II — 324, n.» 97.


 

Fonte: Os melhores contos Populares de Portugal. Org. de Câmara Cascudo. Dois Mundos Editora, 1944.

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