Anotações de aula do curso sobre Sartre ministrado pelo professor dr. Franklin Leopoldo e Silva na FFLCH-USP
Material Enviado por José de Medeiros Machado Jr.
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[SARTRE,
J-P. Questão de Método – primeiro capítulo (2)]
A diferença entre idealismo e materialismo não pode ser reconhecida
apenas em termos de opção metafísico-doutrinária se o que estiver em questão
for a efetividade concreta da realidade. Assim, não se trata somente de
abandonar o idealismo, uma vez constatado que a totalização abstrata a partir
de uma subjetividade formal serve ao interesse de classe burguês concernente à
universalização de uma determinada concepção de homem. O que se deve conseguir,
a partir dessa relativização do idealismo, é o reconhecimento concreto do homem
em meio às práticas efetivas pelas quais ele realiza a sua humanidade. O que
está em jogo, portanto, é, em última análise, a substituição de uma natureza
simples por uma pluralidade complexa, ou a diferença entre conhecer o homem
pela unidade de essência ou pela apreensão do sentido de um processo concreto.
Daí a inutilidade de uma discussão que se paute unicamente pela oposição entre
idealismo e materialismo, tentando avaliar qual dessas orientações conceituais
deveria constituir o quadro teórico exclusivo do conhecimento. Em princípio,
essa polarização não deveria existir, uma vez que a própria orientação histórica
do
Materialismo em Marx nos dispensaria da opção metafísica, já que o
teor indissoluvelmente histórico e material do processo de construção do humano
torna desnecessário conceber um quadro metafísico ou formal a partir do qual a
totalidade se defina a priori. Pois o que se trata de elucidar é justamente a
relação entre condições materiais e criação histórica; e a revolução
metodológica proposta por Marx consiste em que se deve passar a ver nessa
relação, assim constituída, a verdade do que até então se tentava compreender
como a questão da correspondência entre objetividade e subjetividade. A
novidade consiste precisamente em que devemos abandonar tanto a visão
conceitual de cada uma dessas instâncias quanto a construção conceitual da
relação. Essa postura metodológica implica tanto a recusa do paradigma de uma
inteligibilidade puramente ideal quanto a recusa do materialismo naturalista
que consideraria o agir humano nos mesmos moldes da fabricação de uma coisa.
Toda a questão estaria pois em compreender a significação complexa presente
tanto na necessidade que pesa sobre os homens quanto no trabalho
pelo qual ele responde a essa necessidade. Entre as condições materiais da ação
e os resultados materiais dessa ação situa-se a mediação do agente que
em si mesma não pode ser sublimada numa subjetividade ideal ou reduzida à pura
materialidade da coisa. É neste sentido que se pode dizer que o aporte da
intencionalidade para a elucidação da prática humana é importante, desde que
sigamos a recomendação que Sartre faz na Transcendência do Ego: não supor uma
entidade transcendental no interior da consciência, mas vê-la projetando-se no
mundo e nele construindo a subjetividade, ao vivê-la.
Sartre
expressa a expectativa da compreensão dessa relação ao relatar aquilo que a sua
geração buscava ao abandonar o idealismo espiritualista: “estávamos convencidos
ao mesmo tempo de que o materialismo histórico fornecia a única
interpretação válida da história e de que o existencialismo permanecia a única
abordagem concreta da realidade. Não pretendo negar as contradições desta
atitude.”[1]
Ora, se uma tal contradição resultou do abandono do idealismo, a razão pode
estar vinculada ao que dissemos antes acerca do materialismo como opção
metafísico-doutrinária e, dessa forma, se não abstrata, pelo menos
insuficientemente concreta para abarcar a sinuosidade efetiva da realidade.
Isto significa que não basta uma interpretação materialista da história na sua
generalidade; é preciso que uma tal interpretação se organize, se construa ou
se explicite por via de elucidações das mediações situadas entre a generalidade
da história e as ações dos sujeitos considerados a partir da existência
concreta. Há portanto duas questões a responder. Primeiramente: é possível
conciliar teoricamente a exigência de interpretação materialista da
história com a exigência da compreensão do caráter existencialmente singular da
ação individual? Em segundo lugar: essa contradição, aparente ou real, em todo
caso esta dificuldade, não deve ser entendida como a condição para que a
interpretação materialista da história não recaia numa opção metafísica pelo
materialismo como pressuposto ontológico e como critério geral de
inteligibilidade?
Quanto
à primeira pergunta, é necessário postergar a resposta porque ela talvez
dependa de um exame da segunda questão, já que nesta aparece de modo mais
nítido a tensão entre as duas exigências. O abandono do idealismo não
foi a adesão plena ao marxismo porque este se havia cristalizado numa doutrina
rígida, que no limite não aceitava perguntas para as quais não tivesse
respostas prontas. As circunstâncias teriam gerado um paradoxo: o marxismo, em
determinado período de recolhimento e refluxo, teve que proteger a doutrina da
experiência histórica na qual ela deveria viver e da qual deveria alimentar-se,
para que o devir da verdade, ao qual é inerente o risco, não viesse quebrar a
unidade doutrinária e política. Teve de cristalizar-se para não correr o
risco de enfraquecer-se. A dogmatização e a rigidez institucional, em suma, a
paralisação do movimento das idéias, teria sido necessária para preservar a
unidade, concentrar as forças e assim sobreviver. Disso teria resultado a
separação entre teoria e prática, precisamente (e paradoxalmente) no caso em
que a nova teoria se diferenciava das tradicionais por ter de realimentar-se
constantemente da práxis. Tal divórcio gera necessariamente um certo idealismo,
que o contexto político logo transformou num autoritarismo idealista e, no
limite, em violência decorrente de uma posição idealista.
O
diagnóstico de Sartre, no qual reconhecemos o estalinismo, deve ser visto sob
dois aspectos. O primeiro diz respeito ao prejuízo que a separação entre teoria
e prática acarreta a um movimento de idéias cuja peculiaridade é exatamente não
poder transformar-se em doutrina sem perder o seu perfil e a sua eficácia. O
caráter heurístico do marxismo, ao qual já nos referimos, só se pode manter,
com efeito, por via de um permanente intercâmbio entre as idéias e a
experiência histórica, já que o sentido da teoria está justamente na
incorporação dessa experiência ao pensamento. É nesse sentido que Sartre fala
da verdade em devir, isto é, nunca entendida como aquisição definitiva,
jamais fixada em doutrina. Todas as idéias devem ser consideradas reguladoras
porque o alcance objetivo de cada uma delas é medido pelo poder de incorporar o
movimento real da história, gerando uma compreensão que venha obrigatoriamente
a acompanhar este processo. Se as idéias fixam-se num corpo doutrinário
estabelecido, não temos mais a relação dinâmica possibilitada pela heurística,
mas sim uma representação definida pelo viés idealista. Num segundo aspecto
devemos considerar o fator circunstancial, ou a necessidade política de
fixar uma verdade teórica para preservar a unidade considerada ao mesmo
tempo como diretriz de ação histórica voltada para a consolidação de
transformações sociais. Desta perspectiva, a cristalização do marxismo em
doutrina serve a um objetivo prático. Trata-se de uma relação entre
teoria e prática que ocorre num contexto histórico-político no qual ela se
manifesta realmente como separação. Este tipo de divórcio faz da
teoria um conjunto de princípios independentes e, por isso mesmo, faz
da prática um empirismo sem princípios. Deixa de haver a relação dialética
entre os princípios da prática e a prática dos princípios numa totalidade em
devir que seria a experiência histórica, orientada por princípios e orientando
a formulação deles. “O pensamento concreto deve nascer da praxis e
voltar-se sobre ela para iluminá-la: não ao acaso e sem regras, mas – como em
todas as ciências e todas as técnicas – em conformidade com princípios.”[2]
Princípios e regras esclarecem a praxis na medida em que esta os põe em questão:
assim não existem condições de elucidação da realidade histórica que não surjam
das próprias condições históricas, o que provoca uma relação entre método e
realidade que está sempre em devir ou em vias de se constituir, característica
que deveria ser portanto a do conhecimento.
A
explicação das circunstâncias em que teria ocorrido a cristalização do marxismo
não se constitui numa justificativa do procedimento, até porque a
universalização da doutrina e do método, tal como de fato se realizou,
coloca-nos diante da ambigüidade que se desenha no fato de que o dogmatismo e o
idealismo tornados violência poderem ser considerados tanto uma resposta à
conjuntura adversa de hostilidade ao socialismo quanto um meio de controle
político-burocrático da sociedade. Isso pelo menos nos mostra que mesmo uma
recusa radical da possível equivocidade da experiência não anula de todo a reciprocidade
entre teoria e prática.
O
que nos interessa no entanto é o significado e o alcance da totalização que,
repita-se, tem que (se) objetivar a (em) totalidade concreta. A função
heurística e reguladora do conceito provém da dinâmica histórica que ele deve
permitir conhecer. Ao contrário do que poderia parecer, não há circularidade
entre conceito e realidade porque não se trata da relação entre categoria e
fatos empíricos. Kant mostrou que a generalidade conceitual nunca poderia
nascer da observação empírica porque não se pode passar da ampliação das
constatações de fato ao conhecimento que se pretende logicamente universal.
Mas, precisamente, estamos aqui diante de uma perspectiva exclusivamente
determinante e não heurística ou reguladora. Exatamente porque a ação histórica
não é susceptível de uma determinação exata, estamos num plano em que a
regularidade possível convive com a contingência. Neste sentido o conceito
nunca opera exclusivamente a partir de uma instância formal produtora de
determinação real, mas de modo imanente à configuração concreta da realidade
histórica a ser elucidada. Sendo assim, necessita-se de uma mediação entre as
possibilidades cognitivas do conceito e a realidade histórica considerada nos
limites que configuram a sua singularidade. Essa mediação aparece no
procedimento essencial do conhecimento histórico concreto: a análise de
situação. Nela, o alcance da compreensão conceitual é medido pelos limites
de uma situação histórica concretamente definida – uma realidade dada, da qual
se trata de apreender o sentido, de tal modo que o conceito esclareça o
conteúdo de realidade histórica daquela situação e ao mesmo tempo a situação
real rebata no alcance cognitivo do instrumento. Pois seria idealismo pensar
que a realidade reflete o conceito assim como seria mecanicismo pensar que o
conceito reflete a situação.
É
portanto a análise de situação que impede dois tipos de enrijecimento dos
conceitos: a logicização da realidade a partir da matriz idealista do
instrumental cognitivo; e mecanização do conhecimento a partir de uma visão
diretamente reflexa do campo nocional. Mas é necessário notar que há um sentido
de idealismo que recobre as duas possibilidades, pois em ambas o
conceito está separado da realidade histórica: numa, porque já proveio da
rigidez lógica do formalismo e do apriorismo; noutra, porque ganhou, a
posteriori, uma rigidez que imobiliza a realidade que originalmente o inspirou.
É dessa maneira que o marxismo pode fetichizar suas próprias noções,
transformando-as “para falar como Kant” em “conceitos constitutivos da
experiência.”[3]
A historicidade do conhecimento deveria alertar contra a eternização do “saber
passado”, mas a preservação do teor constitutivo do conceito estabelece a
continuidade intemporal do “saber objetivo”. Ora, será que o drama humano que
motivou o repúdio do espiritualismo idealista não terá sido suficiente para
mostrar que a experiência histórica não cabe nos limites de qualquer saber
constituído?
Elementos
para uma compreensão mais ampla da questão talvez possam ser encontrados na
problematização da relação materialismo/idealismo, feita por Marx na Tese 1 das
Teses sobre Feuerbach. “A falha principal, até aqui, de todos os
materialismos (incluindo o de Feuerbach) é que o objeto (Gegenstand), a realidade
efetiva, a sensibilidade, só é percebido sob a forma do objeto (Objekt) ou
da intuição; mas não como atividade sensivelmente humana, como prática,
e não de maneira subjetiva.”[4]
Não se trata apenas de opor a percepção do objeto entendido como realidade
efetiva à forma do objeto apreendida na intuição. Mais relevante seria talvez
entender o que está implicado em cada uma das posições, ou o que significa
abordar o objeto como realidade efetiva ou como forma pensada. Partimos, é
claro, do princípio de que só o materialismo pode fornecer uma visão adequada
do objeto: e Marx está criticando diretamente o materialismo de Feuerbach, a
sua “falha principal”. Ora, se o materialismo é a posição correta, por que ele
não consegue atingir o objeto? Por duas razões que no fundo são uma só: esse
materialismo falhado não vê o objeto como “atividade sensivelmente humana” e
não entende o processo de sua apreensão como essa mesma atividade. A diferença
entre as palavras alemãs nos ajuda a compreender a falha: Gegenstand
significa o objeto para o sujeito, e assim o termo aparece em Kant para denotar
o objeto definido dentro dos limites do entendimento a partir das formas
transcendentais. Objekt significa o objeto pensado em toda a sua
generalidade, o que em Kant refere-se a um objeto fora dos limites da estrutura
transcendental do entendimento, e que por isso não pode ser conhecido. Não é o
caso de transplantar pura e simplesmente essa diferença para o contexto de
Marx, mas podemos no entanto nos valer dela para entender o enunciado da
diferença que Marx quer propriamente ressaltar.
Esta
aparece na maneira pela qual o autor define objeto na sua primeira
menção, como Gegenstand: “realidade efetiva, sensibilidade”. A primeira
expressão traduz o termo Wirklichkeit utilizado por Hegel para se referir à
realidade como processo, e assim escapar da significação platonizante, que
privilegia o ser e não o vir-a-ser. O objeto é, pois, a realidade na sua efetivação,
que, acrescenta Marx, se dá no contexto da “sensibilidade”. Este termo está
oposto à “intuição”, como para indicar que a relação entre realidade efetiva
e sensibilidade não é a mesma que se dá entre realidade e intuição no contexto
da tradição, principalmente pré-hegeliana. Percebemos isto ao observar a
maneira pela qual Marx reitera a expressão “atividade sensivelmente humana”
explicitando-lhe o significado: “prática”. A efetividade da
realidade no seu processo de ser, ou de vir-a-ser, só pode ser apreendida pela atividade
humana, já que o próprio processo, a própria efetivação, é em si mesmo uma
atividade. Esta “atividade sensivelmente humana” define-se como “prática”
primeiramente num sentido muito específico: ela não pode ser considerada subjetiva
num sentido que atribuiria à subjetividade uma autonomia total em relação ao
objeto. A desvinculação das duas instâncias faz perder o sentido tanto de sujeito
quanto de objeto; por isso, quando falamos em atividade não
podemos entende-la como simples prerrogativa de um sujeito isolado, mas como
algo que só acontece numa relação. A expressão “sensivelmente humana”, aposta a
“atividade”, configura este significado. E é por isso que também não se
pode falar em atividade sem falar em subjetividade. Assim, o emprego de Gegenstand por Marx seria indicador dessa
relação mediada pela atividade: o objeto, na sua realidade material efetiva só
pode ser apreendido por uma atividade sensível efetiva – “humana” na acepção
total, e não uma intuição determinada por alguma distinção de faculdades, como
no caso da intuição sensível em sentido kantiano. É essa efetividade
presente tanto na realidade quanto na sua apreensão que define o domínio da prática.
Sendo
assim, não se pode desvincular essa dupla efetividade da subjetividade. É por
isso que Marx aponta que Feuerbach não teria definido a apreensão do objeto
como prática, ou “de maneira subjetiva”. Esta “maneira” decorre da concepção da
realidade como efetiva, e da concepção da percepção da realidade como ativa.
Não significa de forma alguma que se deva conhecer o objeto apenas a partir do
sujeito, no sentido de torná-lo constituinte da realidade, encerrando-a em si
mesmo, de acordo com um sentido subjetivista de representação. O que
transparece do texto é, pelo contrário, que tanto sujeito quanto objeto devem
ser apreciados pelo viés da atividade que a ambos caracteriza. Atividade
concreta de um sujeito histórico que se exerce em relação à efetividade
concreta da realidade sensível e material. A realidade objetiva, muito
simplesmente, não faz sentido fora da relação sujeito/objeto. E Marx considera
a apreensão subjetiva como “prática” exatamente para mostrar que o sujeito,
nessa relação, é ativo e não contemplativo. A relação é dialética porque supõe
o “trabalho” nas duas instâncias: a realidade, por ser efetiva, age sobre o
sujeito; este por ser atividade, age sobre a realidade e a transforma. Isto
significa que não pode haver uma percepção objetiva do mundo que não implique a
“maneira subjetiva” pela qual ela se dá.
A
crítica de Marx a Feuerbach está bem expressa no comentário de Labica: “O subjetivo
é o corolário do objetivo; ele leva diretamente à consideração do ‘aspecto
ativo’. Sua desconsideração deixa qualquer materialismo desarmado diante do
idealismo.”[5]
A insuficiência do materialismo de Feuerbach mostra-se diante do recurso
idealista de invocar uma atividade abstrata que distinguiria o sujeito do
objeto. Quando o materialista ignora a atividade do sujeito na percepção do
objeto, ele permite ao idealista argumentar com uma oposição simples: o objeto
se define pela passividade e o sujeito pela atividade. A apreensão do mundo se
constitui quando o sujeito ativo defronta-se com a realidade inerte. Ora, se a
realidade não é efetiva, posso supor que ela está diante do sujeito
simplesmente como objeto de intuição; para conhecê-la não é preciso interferir
nela, não é preciso acompanhá-la no seu processo. Desaparece a necessidade da
contraposição dialética de duas forças ativas. Daí o predomínio da postura
teórica e a definição do conhecimento como atividade teórica, atividade
do espírito, ou, finalmente, subjetividade abstrata.
Se o
materialista não define a subjetividade como atividade prática, ele permanece
prisioneiro da separação entre teoria e prática, como acontece com Feuerbach.
“A visão prática é uma visão suja maculada de egoísmo, pois nela só me
refiro a uma coisa em vista de mim mesmo.(…) A visão teórica, ao contrário, é
alegre, feliz, satisfeita em si mesma, pois para ela seu objeto é objeto de amor
e de admiração (…) a visão teórica é estética, a visão prática
é inestética.”[6]
Observe-se que, embora Feuerbach procure sair do idealismo, colocando-se
diante da realidade sensível dos objetos, ele não a atinge concretamente por
lhe faltar a visão concreta da relação sujeito/objeto pautada na efetividade do
real e na atividade do objeto. “Feuerbach procurou objetos sensíveis –
realmente distintos dos objetos pensados: porém não captou a própria atividade
humana como atividade objetiva.”[7]
A falha do materialismo de Feuerbach consistiu em não compreender todo o
alcance do objeto na sua significação de Gegenstand, e de manter ainda a
forma objetiva geral do Objekt e assim, mesmo entendendo-o como sensível
e não apenas pensado, não logrou compreendê-lo como efetivamente
sensível e sua percepção como também dotada da mesma efetividade. Neste sentido
o materialismo feuerbachiano ainda padece de abstração, como será mostrado na Ideologia
Alemã. O mundo não é constituído por coisas definitivamente
estabelecidas: enquanto pensarmos assim, mesmo a certeza sensível terá
algo de intemporal, ou pelo menos aparecerá como dependente de um conhecimento
que só se completaria no plano da essência. O homem só conhece aquilo com que
ele entra em relação, e esta supõe um trabalho, uma atividade que
é inseparável do conhecimento. Feuerbach compreendeu que tudo está na realidade
sensível, mas não entendeu a relação que a partir daí se estabelece entre
sujeito e objeto, a dupla transformação inerente ao processo de realidade e ao
processo de conhecimento. Como a compreensão desse duplo processo depende da
aceitação do caráter prático da atividade subjetiva, coisa que não acontece em
Feuerbach, ele manteve a separação e a hierarquia entre a teoria e a prática.
Existe
portanto uma “chave” para perseguir a totalização e aproximar-se do sentido da
atividade humana: é a própria atividade compreendida como correspondência entre
efetividade do processo real e conduta ativa do sujeito. Não se trata de uma
correspondência pré-estabelecida ou de uma harmonia a priori. É necessário
construí-la em cada passo do duplo processo: nisto mesmo consiste a atividade
de conhecer, nisto consiste a imanência do conhecimento à prática que se trata
de elucidar. Assim, quando Marx afirma que Feuerbach “não captou a própria
atividade humana como atividade objetiva”, devemos entender que esta
atividade não teria sido concretamente considerada como relação em que
tanto o objeto quanto o sujeito têm de ser vistos no interior da práxis,
contexto em que as duas instâncias aparecem como diferenciadas e
interdependentes, ou se quisermos, como diferenciação e interdependências
contínuas. Podemos então, neste sentido, entender a afirmação de Sartre acerca
da verdade devinda: “Para nós, a verdade torna-se, ela é e será
devinda. É uma totalização que se totaliza sem cessar.”[8]
Tornar-se, devir, são expressões nas quais se deve observar a inseparabilidade
entre efetividade, atividade e verdade. O conhecimento consiste em
relacioná-las por via da inteligibilidade dialética, motivo pelo qual os meios
de conhecimento de que o marxismo dispõe nunca poderão fixar-se num conjunto de
padrões rígidos. Para conhecer a totalidade histórica,o conhecimento tem que
“viver com ela”.[9]
Assim
Sartre pode reivindicar para a sua perspectiva a célebre frase de Engels: “Não
é, pois (a história), – como querem acreditar alguns por mera comodidade – um
efeito automático da situação econômica, são ao contrário, os homens, eles
próprios, que fazem a história; mas o fazem em um meio dado que os condiciona,
sobre a base de condições reais anteriores, entre as quais as econômicas (…)”[10]
Neste fazer a partir de condições anteriores, nesta
relação, é que se deve procurar a atividade e a efetividade tais como aparecem
no mundo histórico – e, segundo Sartre, a compreensão dialética, da
realidade dessa relação supõe a articulação mediatizada dos seus
termos.
[1]
SARTRE, J-P. Questão de Método. Ob. Cit., pg. 120.
[2]
Idem, ibidem, pg. 121.
[3]
Idem, ibidem, pg. 123.
[4]
MARX, K. Teses sobre Feuerbach,. Edição de Jorge Labica, contendo o texto do
manuscrito de Marx e a transcrição de Engels, com comentários. Tradução de
Arnaldo Marques, revisão técnica de João Quartim de Moraes. Jorge Zahar Editor,
Rio de Janeiro, 1990, pg. 30.
[5]
Idem, ibidem, pg. 66.
[6]
FEUERBACH, L. A Essência do Cristianismo. Apud Labica, G.,
ob. Cit., pg. 49.
[7]
MARX, K. Teses sobre Feuerbach. Ed. Cit., Tese 1, pg. 30.
[8]
Idem, ibidem, pg. 124.
[9]
Idem, ibidem, pg. 124.
[10]
ENGELS, F. apud SARTRE, ob. Cit., pg. 124.
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