Anotações de Aula do Curso de Filosofia sobre Sartre do Prof. Franklin Leopoldo e Silva – 1

Anotações de aula do curso sobre Sartre ministrado pelo professor dr. Franklin Leopoldo e Silva na FFLCH-USP


Material Enviado por José de Medeiros Machado Jr.

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[J.P.
Sartre. O Existencialismo é um Humanismo]

 

É lugar-comum nos comentários feitos à obra de Sartre assinalar as
promessas não cumpridas, isto é, os livros anunciados e não escritos que
correspondem aos temas cuja importância é enfatizada, mas que não são tratados.
Nas últimas páginas de O Ser e o Nada, por exemplo, é formulada uma
série de questões de ordem moral, decorrentes da reflexão ontofenomenológica
levada a efeito no livro, e a última frase prevê de maneira direta uma próxima
obra que seria totalmente dedicada a essa investigação. O teor das perguntas
que aparecem no trecho final do tratado de ontologia pode ser descrito de
maneira geral como a relação entre liberdade e valor; mas como o que está
imbricado nessa relação é o sentido absoluto da escolha pela qual o sujeito se
constitui, podemos dizer que o tema relevante nessa breve antecipação da
problemática moral é a presença da subjetividade na condição ética que
caracteriza a realidade humana.

Ora,
ainda que o problema moral tenha sido apenas anunciado e não efetivamente
tratado por Sartre no livro de 1943, parece que foram as questões éticas
aquelas que apareceram de modo mais significativo nas críticas feitas ao perfil
de sua concepção existencial. Tudo indica que o que está mais presente nessas
críticas seriam considerações acerca das conseqüências éticas das teses
ontológicas, sobretudo a solidão e a angústia decorrentes da definição da
consciência como liberdade originária de escolher e de se escolher. É esse o
motivo pelo qual Sartre abre a conferência O Existencialismo é um Humanismo,
declarando que seu objetivo é defender “o existencialismo de uma série de
críticas que lhe foram feitas” (Pensadores, pg. 3). É interessante observar o
viés que assume o debate, por duas razões. Em primeiro lugar há de se destacar
o fato de que os aspectos mais originais da ontologia fenomenológica de Sartre
não aparecem nessas críticas considerados com um rigor de análise
correspondente à reflexão desenvolvida no livro. Para-si, Em-si, liberdade,
alteridade, projeto, contingência, existência, negatividade, niilização,
temporalidade, transcendência e outras noções exaustivamente tratadas por
Sartre, algumas vezes por via de análises extremamente complexas e difíceis,
necessárias para separá-las da sedimentação tradicional e reelaborá-las na
perspectiva da filosofia existencial, aparecem nas críticas de maneira muito
transversal, e apenas como pretexto para que se possa apontar o aspecto ético
que nelas estaria inscrito. É possível que isso se deva à dificuldade do
texto. Por outro lado, não é gratuito que prevaleça a atenção à dimensão ética,
primeiramente porque ela se encontra implicada no procedimento sartriano, uma
análise ontológica pautada pela fenomenologia, e que dessa maneira visa
condutas de uma subjetividade intencional, o único “método” que se entende como
adequado a uma abordagem existencial. Em segundo lugar, e estreitamente ligado
a esse primeiro ponto, as noções que fornecem a compreensão existencial das
condutas estão ligadas aos modos de ação do sujeito: o fazer-se a si próprio a
partir da escolhas livres que definem projetos entendidos como modos pelos
quais a subjetividade antecipa a efetuação da existência. A ação de existir
como projeção contínua de si a partir das opções do sujeito leva, talvez
inevitavelmente, à questão ética dos critérios de auto-constituição do sujeito.

Assim
não é surpreendente que os críticos de Sartre coloquem o debate no terreno da
ética, e que ele tenha que responder nessa direção. Ao mesmo tempo, como não
existe uma ética constituída na linha das questões formuladas ao final de O
Ser e o Nada
, o debate não pode acontecer a partir de temas e teses
claramente definidos. Essa é a razão pela qual responder as críticas significa,
em grande parte, desfazer equívocos e destacar a nova maneira de situar as
questões referentes à ordem humana, já que uma parcela das objeções é feita a
partir de uma visão que a própria filosofia existencial pretenderia
ultrapassar. É o caso de noções centrais como liberdade, ação e subjetividade,
motivo pelo qual as considerações de Sartre deverão retomá-las de modo
especial. Isso significa privilegiar o viés ético, não apenas para responder
mais diretamente aos opositores mas também devido à impossibilidade de repor a
discussão ontológica nos limites de uma conferência.

Ainda
é preciso acentuar também que o título da conferência já é uma resposta a um
certo teor geral das críticas, que consistiria em ver na filosofia existencial
de Sartre um anti-humanismo. É importante observar quanto a esse ponto tanto as
críticas quanto a resposta de Sartre, porque evidentemente não se trata apenas
de reafirmar o humanismo a partir de seus pressupostos tradicionais,
notadamente cristãos e cartesianos, nem de aceitar pura e simplesmente a
rearticulação histórica do humanismo implicada no marxismo. Nesse sentido
Sartre terá que responder a dois tipos de crítica: um primeiro tipo que se
poderia classificar, de forma muito geral, como uma espécie de espiritualismo
difuso e que se conjugam compromissos com o racionalismo essencialista de matiz
cartesiano e kantiano, e com uma certa metafísica do cristianismo incorporada
em algumas vertentes da tradição. Um segundo tipo de crítica aponta, ao
contrário desse primeiro, a inscrição do existencialismo na vertente tradicional
da das filosofias da subjetividade, herança a que se teria acrescido fatores
pessimistas e niilistas trazidos pelas crises históricas da contemporaneidade.
Em ambos, aponta-se como a diferença do existencialismo a exacerbação do
solipsismo implicado na afirmação do cogito, do que resultaria como
conseqüência mais relevante algo como o paradoxo contido na relação entre a
liberdade ilimitada e a inevitável gratuidade das ações. O solipsismo extremado
impediria tanto a vinculação da subjetividade a valores transcendentes que
conferem sentido à liberdade e às ações quanto a inscrição dessa subjetividade
como parte integrante de uma totalidade histórica unicamente da qual o sujeito
poderia retirar o sentido determinado de suas ações.

Sartre
teria recusado assim a solidariedade moral de uma república dos espíritos
governada por critérios transcendentes à contingência mundana e a solidariedade
possível no plano da construção da comunidade histórica a partir da consciência
determinada que cada indivíduo teria de sua pertinência à totalidade. O
humanismo vinculado à transcendência metafísica e o humanismo vinculado à
condição histórica teriam sido igualmente negados. Daí o niilismo ou o
conformismo burguês aparecerem como as opções reais da nova filosofia. É
preciso acrescentar também que parte dessa querela passa pelo existencialismo
cristão (sobretudo Gabriel Marcel) que reivindica a herança kierkegaardiana.
Como nesse existencialismo há um compromisso com a metafísica do cristianismo,
estabelecem-se inevitavelmente oposições, entre as quais talvez a mais
significativa refira-se ao sentido de transcendência.

A
definição geral do existencialismo, que vale tanto para o cristão quanto para o
ateu, é que “a existência precede a essência, ou se se preferir, que é
necessário partir da subjetividade.” (Pensadores, p.5) Talvez não seja
supérfluo enfatizar que não se trata apenas de definir o existencialismo, mas
também, e nas circunstâncias, sobretudo, de estabelecer com essa definição um
patamar a partir do qual se possam refutar as críticas a que já nos referimos,
já que o objetivo da conferência é defender o existencialismo das críticas. É
provavelmente por isso que Sartre considera equivalente as duas afirmações: “a
existência precede a essência” e “é necessário partir da subjetividade”. Mas a
equivalência não é tão clara, e a prova disso não poderia ser mais “clássica”:
Descartes partiu da subjetividade e construiu uma filosofia essencialista
porque discerniu na subjetividade uma essência capaz de definir o homem, que
não tem sua origem nele mesmo, mas em Deus. Essa ambigüidade, aliás, de algum
modo serve a Sartre para cobrar a coerência do existencialismo cristão: como se
pode conceber um Deus criador e ao mesmo tempo a existência como ponto de
partida? “Deus, quando cria, sabe precisamente o que está criando.” Há
portanto uma anterioridade do saber, a inteligência divina, em relação à
criatura, ou a qualquer obra de Deus que se siga do que é concebido na sua
inteligência. Trata-se da anterioridade do conceito em relação à coisa ou da
essência em relação à existência.

Assim,
o homem só pode ser designado como o ser em que a existência precede a
essência na perspectiva do existencialismo ateu, uma vez que somente nesse
caso o homem poderá ser definido como aquilo que a posteriori fizer de si
mesmo. “Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si
mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, só não é passível
de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma
coisa, e será aquilo que fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana
porque não existe um Deus para concebe-la.” (Pensadores, p.6).

A
precedência da existência em relação à essência significa, no âmbito de um
conhecimento antropológico-filosófico, a recusa da noção de natureza humana.
Essa expressão pode ser relacionada com duas outras: ser e essência. Se o homem
possuísse uma natureza própria, ele deveria ser concebido como um ser dotado de
uma essência, isto é, uma realidade com conteúdo previamente definido e acerca
da qual poderíamos distinguir uma propriedade substancial (o homem propriamente
homem) e propriedades acidentais, mutáveis. A substancialidade é aquilo que
define algo como uma realidade considerada plenamente si mesma ou idêntica a
si. No homem a ausência de natureza é que nos faz definir o seu ser como o
existir, isto é, em vez da plenitude identitária, o constante processo de
vir-a-ser que nunca se consolida como ser. Do ponto de vista do conhecimento
isso significa que não há, acerca do homem, uma inteligibilidade a priori que
condicione universalmente tudo que pudemos vir a saber sobre ele. Assim, tanto
no que se refere ao ser quanto no que concerne ao conhecer, o existir como
processo configura o que Sartre chamará de condição. O homem não é
universalmente condicionado a priori porque ele é a própria condição imanente
do que possa vir a ser.

É
essa precedência da existência que nos faz entender a radicalidade com que o
homem deve ser considerado sujeito. O ponto de partida na subjetividade
não é apenas uma exigência metódica, como em Descartes, mas é conseqüência da
prioridade da existência como consciência ou para-si. Isso significa que o
homem não deve a qualquer outra instância a sua condição de sujeito. E, na medida
em que essa condição não lhe foi outorgada, ele tem que constantemente repô-la:
a condição de sujeito tem de ser sempre reiterada no seu exercício efetivo,
precisamente por não ser essência, isto é, por não ser a subjetividade o
sinônimo ou a prerrogativa essencial da alma. Assim o fato de não haver nada
anterior ao sujeito que o condicione, não faz da subjetividade o fundamento ou
a condição incondicionada: a subjetividade é a realidade humana tomada na sua
inteira contingência.

Ora,
o exercício da subjetividade na contingência é a liberdade: o homem reitera sua
condição subjetiva optando continuamente por aquilo que há de ser, e que deverá
fazer-se de si. Nesse sentido o exercício da subjetividade é anterior ao
exercício da vontade, porque o projeto de ser tem prioridade sobre as
manifestações da vontade, que dele, aliás, decorrem. Dessa forma a liberdade,
não sendo liberdade da vontade, deixa de estar subordinada a uma psicologia, ou
mesmo a uma teoria das faculdades. É a descrição ontológica que acede à
liberdade ao elucidar a consciência. Dessa forma, é preciso compreender todo o
peso do caráter originário da liberdade. Se recusarmos o Deus criador, a origem
do homem é o próprio homem, isto é, a liberdade. Assim, origem aqui
não deve ser entendida como designação de causa, mas como a indeterminação
originária que é a única descrição que convém á liberdade. A identificação
entre subjetividade e liberdade é, pois, completa.

É
dessa identificação que decorre outra característica do existente ou realidade
humana: o desamparo (délaissement). Não dependendo de um ser que o tenha
criado nem de uma inteligibilidade que o defina, o homem está lançado no mundo
e abandonado a si, isto é, à sua liberdade. O desamparo é condição originária
constitutiva da existência, pois jamais houve uma outra condição, ou seja,
jamais o homem teve em que se amparar. Ele não foi,portanto abandonado: é a sua
condição que assim se define, razão pela qual o desamparo não se define
negativamente pelo seu contrário, mas unicamente pela falta daquilo que
seria a contrapartida positiva do abandono. Nada havendo que possa amparar a si
ou à sua liberdade, o homem está inteiramente entregue a si, à sua liberdade e
á sua responsabilidade. Uma das características que opõe a filosofia de Sartre
á metafísica tradicional e também ao existencialismo cristão, já o dissemos, é
o sentido da transcendência. Não transcendência no sentido de algo
que transcenda o homem, isto é, exista antes de lê ou acima dele. A
transcendência ocorre também como uma ação humana: é o homem que se transcende
quando projeta no futuro aquilo que tem de ser, ou o que há de fazer de si
mesmo. Se a transcendência pode ser representada como o além do homem, é no
entanto o próprio homem que se lança para além de si, por via do que projeta
ser. O caráter originário da liberdade e o caráter não outorgado da
subjetividade fazem com que não haja propriamente nem limites nem transgressão.
Essa ausência de valores pré-estabelecidos é vivida como o estado de desamparo
da realidade humana. Não havendo coisa alguma que preceda a existência, todas
as possibilidades são instituídas no âmbito da realidade humana pelo sujeito.
Não há possibilidades anteriores a mim que eu deve tentar realizar; só posso
contar com o que eu mesmo projetar como possível. Assim não há nada fora da
realidade humana à cuja altura ela se possa elevar para enaltecer-se atingindo
um objetivo maior do que ela mesma, ou pelo menos orgulhar-se de tentá-lo. O
homem será sempre unicamente o que tiver feito de si.

Observe-se que não há razões para enaltecer o Eu porque não sou apenas o
depositário de minha subjetividade, pela qual Deus seria o verdadeiro
responsável: estou de posse de mim e sou inteira e unicamente o responsável por
mim mesmo. Nesse sentido, a célebre frase de Dostoiewski citada por Sartre – se
Deus não existe então tudo é permitido – é menos uma proclamação do gozo da
liberdade do que uma atestação de que a liberdade é um fardo. Tudo é permitido
significa que cada um escolhe o que lhe é permitido fazer, sem critérios
previamente definidos, e assume a responsabilidade pela escolha. Tudo é
permitido porque não existe um ser superior a mim em discernimento e junto ao
qual poderia colher os critérios do que me seria permitido fazer. A condição
humana é portanto a condição de total responsabilidade por ser a condição de
liberdade total. Uma das maiores dificuldades que o existencialismo sartriano
enfrentou de início foi essa espécie de reversão do valor da subjetividade.
Diante de séculos em que a subjetividade foi enaltecida como emancipação,
liberação, maioridade, como fazer compreender que a subjetividade só pode
atingir a realidade e a radicalidade de seu significado se associada ao peso da
liberdade ilimitada e da responsabilidade absoluta que o sujeito finito deve
carregar? A própria noção de absoluto perde a positividade da sua
grandiloqüência se entendemos que a liberdade absoluta significa que o homem
livre está absolutamente abandonado à sua liberdade e à responsabilidade que
daí decorre.

E o alcance dessa responsabilidade subjetiva se mede pelo alcance
universalmente humano de que ela reveste os atos individuais. Pois não havendo
critérios superiores aos que o homem puder criar, que estejam antes, depois ou
acima dele, o homem cria o valor e sua universalidade. Nunca será uma
universalidade logicamente a priori, e nenhum valor adotado possuirá uma
universalidade formal e abstrata. Na esfera da existência não se pode contar
com a generalidade neutra e vazia das formas porque só temos as opções limitadas
e concretas das opções da subjetividade finita. E é por isso que, não dispondo
de universais a priori, tornamos universais as nossas opções, e assim cada um
escolhe por todos a cada vez que escolhe para si mesmo. Não se trata de elevar
o particular ao universal porque não se trata de transmutar categorias. A
essência não precede a existência significa que a humanidade não precede o
homem. É por isso que cada homem, encarnação concreta e singular da humanidade,
necessariamente confere às suas opções o estatuto de universalidade:
“escolhendo-me, escolho o homem”. (Pensadores, p.7). Assim como instituo o
valor correspondente à minha escolha, instituo a universalidade desse valor.

É o alcance dessa responsabilidade, exercida no desamparo, que acarreta a
angústia como o pathos da liberdade. A angústia deriva de que cada uma das
minhas escolhas representa também uma legislação de teor universal. Como posso
estar certo de minha opção e de que ao faze-la é como se legislasse para todos?
Se obedecesse a um ser sapientíssimo ou a uma tábua de valores eternos, estaria
ausente da responsabilidade da criação. Não é fácil compreender, na filosofia
sartreana, essa relação complexa entre subjetividade e universalidade. Na
tradição, a subjetividade podia participar de uma universalidade transcendente,
que a superava e a fundava, e a subjetividade, quando entregue a si mesma, só
poderia tombar na relatividade. Em Sartre, é o contrário. Se contássemos com
uma escala transcendente de valores, nossas escolhas se dariam sempre relativamente
a essa escala, e a universalidade do valor seria relativa a essa outra dimensão
na qual alienaríamos a nossa liberdade. Quando escolhemos a partir de nossa
subjetividade, escolhemos absolutamente porque de acordo com a liberdade
absoluta à qual estamos condenados. “(…) o homem, sem apoio e sem ajuda, está
condenado a inventar o homem a cada instante.” (Pensadores, p.7). Isso
significa que o homem não pode transpor os limites da subjetividade humana, e o
caráter dramático da nossa condição está em que, de dentro dessa limitação,
exercemos a liberdade ilimitada e de nossas escolhas finitas brota o universal.
A relação, assim estabelecida entre subjetividade, liberdade, responsabilidade
e angústia, mostra que o ponto de partida na subjetividade não é mero
subjetivismo no sentido de uma escolha de si mesmo no plano da particularidade
psicológica. A escolha subjetiva significa que, escolhendo-me e escolhendo para
mim, escolho uma certa imagem do homem. O profundo sentido ético da escolha
existencial consiste em que ela é um juízo: a cada vez que escolho, julgo e, de
acordo com a responsabilidade inerente a esse julgamento, enuncio um juízo
universal.

Assim, o desamparo e a angústia que se associam à liberdade subjetiva,
justificam-se filosoficamente pelo necessário ponto de partida na
subjetividade. “Como ponto de partida, não pode existir outra verdade que não
esta: penso, logo existo; é a verdade absoluta da consciência que apreende a si
mesma.(…) Portanto, para que haja uma verdade qualquer, é necessário que haja
uma verdade absoluta; e esta é simples e fácil de entender; está ao alcance de
todo mundo; consiste no fato de eu me apreender a mim mesmo,sem intermediário.”
(Pensadores, p.7) Observe-se que o sujeito não se compraz na sua subjetividade,
porque a liberdade subjetiva não é um atributo, é a própria condição humana. É
preciso compreender bem isso para diferenciar a subjetividade sartreana da
subjetividade clássica. Neste caso, há uma substância dotada de atributos,
entre os quais uma vontade livre, que pode associar-se, ou submeter-se a outros
atributos, como por ex., o intelecto, configurando assim uma articulação ou uma
hierarquia. A liberdade aparece então como algo que o sujeito tem. A
identificação entre subjetividade e liberdade faz com que o sujeito não tenha
a liberdade, não desfrute dela, nem mesmo seja livre: faz com que o
sujeito seja a liberdade. Ao mesmo tempo, a liberdade é sempre subjetiva, o que
evita que a interpretemos como um absoluto de que o sujeito participaria.

Se voltarmos agora às críticas mencionadas no início, podemos tentar uma
primeira aproximação do que Sartre estaria propondo como humanismo
existencialista. “Na perspectiva cristã, somos acusados de negar a realidade e
a seriedade dos empreendimentos humanos já que, suprimindo os mandamentos de
Deus e os valores inscritos na eternidade, resta apenas a pura gratuidade.” A
crítica dos marxistas: “(…) acusaram-nos de incitar as pessoas a permanecerem
no imobilismo do desespero; todos os caminhos estando vedados, seria necessário
concluir que a ação é totalmente impossível neste mundo; tal consideração
desembocaria, portanto, numa filosofia contemplativa – o que, aliás, nos
reconduz a uma filosofia burguesa, visto que a contemplação é um luxo.”
(Pensadores, p.3) Poderíamos talvez fazer convergir de forma geral essas
críticas, associando as noções de gratuidade e contemplação. A gratuidade
significa o caráter igualmente vão de todos os empreendimentos humanos, uma vez
que se nega a fonte do sentido que poderiam ter: Deus ou os valores
transcendentes. A contemplação seria a conseqüência da inanidade de toda e
qualquer ação, já que no fundo todas se equivalem. Restaria portanto p
individualismo solitário e paralisante, talvez desesperador, mas sobretudo
niilista num caso e conformista no outro.

Depois do que expusemos acerca de algumas noções gerais do
existencialismo, talvez não seja difícil perceber que ambas as críticas não
apenas convergem mas partem de pelo menos um pressuposto comum: para que vida
e ações humanas façam sentido, é preciso que sejam relacionadas a
possibilidades exteriores à mera subjetividade. É assim que o cristão vê tais
possibilidades em mandamentos e valores transcendentes, e o marxista em
diretrizes de ação que configurem a via adequada à tarefa de transformação
histórica. De fato, o existencialismo recusa qualquer parâmetro extrínseco à
existência efetiva ou, se se quiser, à subjetividade. A raiz dessa recusa, mais
do que uma opção ética, está antes na descrição ontológica da consciência como
liberdade, corolário da precedência da existência. Dito de outra forma, a vida
humana tem de ser possível a partir dela mesma: “toda verdade e toda ação
implicam um meio e uma subjetividade humana.” Assim, o que se procura superar
é a dicotomia de alguma maneira presente nas duas críticas: de um lado um certo
espiritualismo (metafísica cristã) que privilegia a interioridade, ou a visão
da transcendência a partir da interioridade; de outro lado, o privilégio da
exterioridade como natureza e história exercendo função condicionante sobre a
subjetividade. Assim, recusa-se tanto uma interioridade subjetiva que se defina
como dependente de Deus que a determinaria, quanto uma subjetividade
exteriorizada no reflexo da história que também a determinaria. O que o existencialismo
recusa, como risco de alienação, é a identificação extrínseca do existente,
seja numa metafísica do absoluto, seja numa metafísica da
história.

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