Anotações de Aula do Curso de Filosofia sobre Sartre do Prof. Franklin Leopoldo e Silva. Aula 5

Anotações de aula do curso sobre Sartre ministrado pelo professor dr. Franklin Leopoldo e Silva na FFLCH-USP


Material Enviado por José de Medeiros Machado Jr.

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A
relação entre subjetividade e conduta supõe o problema da reflexão, e este por
sua vez está ligado à questão da posição da consciência no processo de
conhecimento e de ação. Procuremos compreender como Sartre rearticula estes
elementos. A reflexão é atividade subjetiva e este ponto não pode ser ignorado
mesmo nas teorias mais objetivistas do conhecimento, se entendermos que este é
uma relação entre dos termos, sujeito e objeto, qualquer que seja o peso
relativo que se venha a atribuir a cada um. O conhecimento é uma conduta humana
que possui uma determinada forma de expressão. Esclarecer a função da
subjetividade no conhecimento é compreender seu modo de presença na conduta
cognitiva. Tal conduta consiste no estabelecimento de um vínculo entre três elementos:
sujeito, objeto e verdade: a relação entre os dois primeiros deve ensejar o
aparecimento do terceiro na forma do desvelamento, sobre o qual
falaremos mais adiante. Como deve ser pensado o vínculo entre a relação
sujeito/objeto e a verdade? Habitualmente a verdade é vista como o resultado
da relação sujeito/objeto estabelecida a partir de regras formais e de uma
determinação do conteúdo. O modelo kantiano, por ex., prescreve estas regras e
este modo de determinação, instituindo um certo equilíbrio entre a estrutura
formal e o conteúdo de realidade, e este equilíbrio, como depende do conhecimento
de razão
, tem seu fundamento na concepção apriorística do conhecimento, na
qual se revela o trabalho da subjetividade transcendental.

Na
concepção do conhecimento como conduta, a diferença entre as instâncias
subjetiva e objetiva deve ser feita no plano da realidade, pois a conduta do
sujeito não pode ser reduzida à forma de apreensão, nem o objeto pode estar
formalmente constituído no nível do a priori, ou seja, a conduta cognitiva
supõe a relação entre um sujeito real e uma realidade objetiva. Reencontramos
aqui a idéia da dupla realidade ou da reciprocidade das efetividades: a
realidade efetiva e a subjetividade efetiva. Isto significa que não pode haver
atividade constituinte, nem em sentido metafísico, nem em sentido
transcendental. Dito de outro modo, a posição da consciência na relação
de conhecimento não pode ser vista como constituinte, a menos que consideremos
a realidade extra-subjetiva como amorfa e inefetiva. Conseqüentemente, a
verdade não pode ser um resultado, se por essa expressão entendemos algo
constituído apenas a partir da relação sujeito/objeto. A concepção da verdade
como resultado é solidária da definição do objeto como relativo ao sujeito, ou
como constituído no âmbito da subjetividade, seja em termos de correspondência
e causalidade, seja como estruturação formal. Se quisermos falar em
relatividade, ela tem que ser pensada como uma via de mão dupla: o objeto é
relativo ao sujeito tanto quanto o sujeito é relativo ao objeto, porque o
processo de relação supõe modificações em ambas as instâncias.

Vistas
as coisas dessa maneira, temos como nos afastar da concepção idealista da
reflexão, solidária de uma autonomia abstrata da subjetividade. Não se trata de
afirmar uma relação de imanência entre subjetividade e reflexão como necessária
à independência do sujeito porque, sendo este atividade, a sua
realidade, e o que nela possa haver de autonomia, define-se na relação com o
não-subjetivo. Neste sentido, a verdade não pode ser concebida como invenção do
sujeito. Dir-se-á que a verdade somente nasce graças à relação sujeito/objeto.
Admitindo que assim seja, isto significa que a verdade nasce na relação,
muito mais do que da relação. A dupla efetividade (mundo objetivo e
sujeito) supõe processo e produção; mas, justamente, trata-se da produção do
verdadeiro a partir da relação, em que participam tanto a realidade dos objetos
quanto a realidade do sujeito. É preciso portanto abandonar o sentido tradicional
de transcendência do sujeito em relação ao objeto, na medida em que isto
significa anterioridade absoluta e puro apriorismo.

Com
isto elimina-se também a idéia de produção subjetiva da verdade, na acepção
constituinte. A verdade pode ser pensada como desvelamento: a revelação
de algo que já estava aí e no qual nós mesmos já estávamos. Esta
revelação supõe um processo de interrogação, mas a resposta a esta interrogação
não constitui a verdade, e sim a desvela, provocando o aparecimento do que já
lá estava. Pois se há uma identificação entre a verdade e o ser, se a
consciência constituísse a verdade ela teria que constituir o ser. Num texto
escrito em 1948, mas publicado postumamente, “Verdade e Existência”, lemos: “O
que nos faz crer que a verdade se identifica com o Ser é que, com efeito, tudo
que é para a realidade humana é na forma da verdade (essas árvores, essas
mesas, essas janelas, esses livros que me rodeiam são verdades) porque tudo que
é para o homem surgiu na forma desse ‘há’. O mundo é verdadeiro. Vivo no
verdadeiro e no falso. Os seres que se manifestam diante de mim se oferecem
como verdadeiros, e às vezes, depois se revelam como falsos. O para-si vive na
verdade como o peixe na água.”[1]
A verdade consiste em haver coisas, em haver mundo, e a relação entre o ser das
coisas e o sujeito é de constante revelação, que propicia ao sujeito a
exploração deste “haver”. Uma manifestação primária, que é tão pouco
constituída pelo sujeito quanto este nem sequer pode recusá-la; manifestação
cuja espontaneidade não implica sempre certeza do sujeito, pois como a
revelação depende também da atividade do sujeito, este pode enganar-se na
identificação do que se revela ou do que ele desvela. O significado do
enunciado: o mundo é verdadeiro indica este caráter originário da
verdade: haver coisas.

Por
isso Sartre descreve a verdade como o elemento no qual se vive: o
para-si vive na verdade como o peixe na água. Que não nos iluda o aparente
otimismo epistemológico; pois a água não é dada ao peixe para que ele a
contemple; mas ela se revela a ele ao exigir seu movimento, que ela também
facilita e impede ao mesmo tempo. O peixe está no seu elemento enquanto nele
vive a age. Assim, também não estamos rodeados de verdade no sentido aurático,
ela não nos envolve como uma nuvem repousante. Temos de corresponder com nossa
interrogação a este “haver” que se revela e nisto consiste o procedimento de
desvelamento do ser inerente á condição humana. Por ser ativamente reveladora,
a realidade objetiva é processo de ser e de revelar-se; estamos na verdade na
forma do ente que a interroga, que deseja saber onde está, o que é este mundo
que é verdadeiro na medida em que há coisas que me rodeiam, e com as quais me
relaciono conhecendo-as e agindo sobre elas ao mesmo tempo. Esse movimento de
conhecer e agir é histórico, ou é a história. “Assim, a verdade não é uma
organização lógica e universal de ‘verdades’ abstratas: é a totalidade do Ser
na medida em que se manifesta como um na historialização da realidade
humana.”[2]
O que Sartre quer dizer é que não há um quadro de verdades diante de nós que se
defina pela forma lógica da sua apresentação. Há uma totalidade que se
manifesta e cuja revelação apreendemos na medida em que nos historializamos,
isto é, que nos movemos e nos fazemos realidade humana neste elemento. Assim a
pergunta pela posição da consciência diante da verdade é respondida
quando compreendemos a posição do sujeito diante da realidade, desse
que é a instância originária da revelação do ser. E como nos movemos e nos
fazemos sujeitos da verdade no elemento histórico em que vivemos, a verdade é
uma questão de experiência histórica, na qual a realidade se revela e nós nos
revelamos a nós mesmos no processo de historialização. Há uma relação entre
verdade e existência na medida em que há uma relação entre verdade e
historicidade. Observemos que à ressonância heidegeriana do texto de Sartre se
contrapõe a ênfase na compreensão do Dasein como experiência histórica
concreta.

Será
necessário ressaltar que estar na verdade não significa saber tudo?
O que dissemos acerca da revelação como experiência histórica deveria ser
suficiente para esclarecer a questão. Entretanto, podemos mencionar também a
alusão de Sartre à atitude socrática. “Quando Sócrates diz ‘só sei que nada sei’
essa modéstia é ao mesmo tempo a afirmação mais radical do homem, pois supõe
que tudo está por saber. Assim, a ignorância não provém de uma
recusa por parte do mundo, que me ocultaria seus segredos: pelo contrário, todo
o Ser está presente a mim desde minha aparição …”[3]
A superioridade de Sócrates frente a seus interlocutores deriva de que saber
“que nada sei” significa saber que “tudo está por saber”. A
essência da verdade é a liberdade, como diz Heidegger, porque todo o ser está
presente à minha liberdade, e a assunção da ignorância é condição da
interrogação. Mas esta ignorância guarda em si um projeto autêntico de saber,
de vir a saber o que há para saber, isto é, a verdade implicada em haver
um mundo verdadeiro, a presença das coisas em que meu agir e meu saber
acontecerão historicamente. Haveria assim, na atitude socrática, uma relação
entre ignorância e liberdade, na medida em que a liberdade de saber depende de
assumir a ignorância como projeto de saber. É a essa projeção livre do saber
que Sartre designa, em Sócrates, como “a afirmação mais radical do homem”. A
ignorância, no sentido socrático, não é neutralidade ou inocência; ela
significa que a verdade de si e das coisas se revela na experiência das
possibilidades do que nos é dado ser e saber.

Neste
processo, que função desempenha a atividade subjetiva a que chamamos reflexão?
“O princípio metodológico, que faz começar a certeza com a reflexão, não
contradiz de maneira alguma o princípio antropológico, que define a
pessoa concreta pela sua materialidade. A reflexão, para nós, não se reduz à
simples imanência do subjetivismo idealista: só é um início que nos lança
imediatamente entre as coisas e os homens.”[4]
O movimento da reflexão envolve o ato pelo qual a consciência se põe na posição
de refletir e o “tema imediato” da reflexão, o campo antropológico que
delineia a auto-constituição do sujeito nas condições da existência histórica
situada. Por ser um movimento que se dá no elemento da verdade, a reflexão não
pode deter-se no seu ato inicial e encerrar-se no plano subjetivo; ela deve
alcançar as coisas que rodeiam o sujeito, o que para conhecer: as
coisas e os homens. Assim, o ato reflexivo do sujeito o lança “imediatamente”
para fora de si, e a reflexão, movimento que se inicia no sujeito, tem que se
completar fora dele. Trata-se de um só movimento em que sujeito e objeto não
podem ficar absolutamente separados, já que o conhecimento é relação. O
próprio sentido da distinção entre os termos é a relação que os une. Daí a
menção da característica do conhecimento na microfísica: “o experimentador faz
parte do sistema experimental.”[5]
A alusão favorece o argumento sartreano, pois, longe de significar que sujeito
e objeto são o mesmo, ou que um é o simples reflexo do outro, aponta para a interferência
do sujeito no objeto e para a reciprocidade referencial. Associa-se também à
instância originária do mundo verdadeiro em que se dá o movimento do conhecer,
“o homem real no meio do mundo real”.

Sendo
assim, a reflexão é começo, ponto de partida, mas a consciência não é fonte
nem de conhecimento nem de ação, o que significa que a consciência que procede
ao desvelamento não é a sua origem: “o desvelamento de uma situação é feito na
e pela práxis que a modifica.”[6]
A realidade humana, como já vimos, tem todo o Ser diante de si, da sua
liberdade, como o que há para saber. E como estar na verdade não
significa dominá-la completamente, este elemento em que o homem vive revela-ser
para ele na historicidade dos conhecimentos situados, nas situações a partir
das quais o conhecimento acontece no processo de totalização da práxis. O
sujeito não constitui nem ilumina a ação: a realização da ação é o seu próprio
processo de esclarecimento, pois “a ação se dá em curso de realização de
suas próprias luzes.”[7]
Mas assim como o desvelamento se dá na e pela práxis, as luzes que esclarecem a
ação aparecem na e pela consciência, o que significa que é pela tomada de
consciência que o ser se revela ao sujeito como desvelamento prático de uma
situação. Por isso o que se requer é uma teoria da consciência dos agentes,
isto é, dos sujeitos da ação. O que quer dizer que uma teoria da consciência
não precisa começar e terminar no interior da subjetividade; pelo contrário, a
compreensão da consciência agente a supõe sempre lançada no meio das coisas e
dos homens. O que Sartre quer marcar é que a consideração da consciência não é
por si mesma contrária ao materialismo e pode ser mesmo necessária para
fundamentá-lo; ao passo que a omissão da consciência do agente introduz na compreensão
da ação dificuldades tais que podem levar ou a aporias ou a um monismo
idealista.

É
bem verdade que Marx pretendia um “olhar objetivo” que fosse além da
subjetividade. Mas entenderia ele por isso um olhar que não partisse da
subjetividade e que se realizasse inteiramente no plano da objetividade? Lênin
certamente o compreendeu assim, pois postula uma consciência que é “no melhor
dos casos, um reflexo aproximadamente exato” da realidade objetiva. Ora, mesmo
para considerara consciência um reflexo, ainda é preciso a consciência; é
preciso pelo menos tomar consciência do caráter absolutamente negativo da
consciência. Marx pretende um universo em que a objetivação supere a
subjetividade; Lênin postula pretende negá-la numa instância aquém de seu
próprio nascimento. Talvez Sartre esteja aqui apontando para a inexorabilidade
do cogito: só posso negá-lo num ato que consiste na sua afirmação.

Essas
dificuldades poderiam ser contornadas se evitássemos as dicotomias metafísicas.
Esquematicamente se pode dizer que o idealismo postula a consciência constituinte
e o materialismo a consciência constituída. De um lado está o dogma da
soberania do sujeito, de outro o dogma da materialidade sensível como única
realidade. Sabemos da complexidade do materialismo antigo e do idealismo
clássico. Mas pode-se dizer que ambos degeneraram, chegando às suas
respectivas versões vulgares. E certamente Sartre vê na teoria do reflexo, em
que a consciência é completamente constituída, um materialismo vulgar. Mas
este não é o problema principal. Para Sartre, o mais importante é que se trata
de duas versões do idealismo vulgar: uma que dissolve a subjetividade na
objetividade e outra que dissolve a objetividade na subjetividade. Nos dois
casos temos o vezo idealista que se expressa na pretensão de uma racionalidade
constituinte: ou a subjetividade constitui a objetividade ou a objetividade
constitui a subjetividade.

Mais
uma vez trata-se de reivindicar que o marxismo seja fiel ao caráter histórico
do seu materialismo, que não pode ser um dogma metafísico. A dupla efetividade
já deveria ser suficiente para mostrar que nem a realidade deve seu ser a uma
constituição subjetiva, nem a subjetividade empresta sua realidade de uma
objetividade que a constituiria. Ambas são ativas, efetivas. A realidade, sendo
histórica, não é dada nem constituída: é produzida pela atividade recíproca da
história sobre o sujeito e do sujeito sobre a história. O que o marxismo trouxe
de novo foi justamente a possibilidade de superar tanto o essencialismo naturalista
e empiricista quanto o essencialismo idealista. O homem produz historicamente o
homem. Neste sentido, pensa-lo como um aparato psicofisiológico inteiramente
determinado pelas leis naturais é tão abstrato quanto concebê-lo como puro
espírito aprisionado num corpo.[8]
Não pode haver abordagem concreta do homem além ou aquém da história. Assim, um
materialismo que se quer histórico não pode supor no que o âmbito do
físico-natural considerado em si mesmo seja a origem dos dados imediatos a
partir dos quais se possa reconhecer o homem. O imediato é a ação, é a
efetividade, que são fatores de transformação, e não de regularidade natural.
Se a história não se dá ao acaso, se há leis que podem ser discernidas no devir
dos acontecimentos, temos aí um conhecimento que envolve tanto a realidade do
objeto quanto a realidade objetiva do sujeito. “O experimentador faz parte do
sistema experimental” significa: não há teoria pura do real – do objeto ou do
sujeito – , porque não há objeto ou sujeito isolados na pureza de seu ser, e
neste sentido supor um mundo exclusivamente de objetos é pensar o objeto
abstratamente, porque só há representações históricas produzidas em regime de
interação. Quando se enfatizam as condições materiais é porque, na inexistência
de uma teoria pura, prevalecem as relações materiais historicamente definidas
nos diferentes momentos da práxis.

Disso
decorre que ser realista não é optar decidida e exclusivamente pelo objeto, e
fazer com que a verdade resida somente nele. O realismo de Marx, segundo
Sartre, consiste simplesmente na concepção prática da verdade. “No movimento
das ‘análises’ marxistas e sobretudo no processo de totalização, assim como nas
observações de Marx sobre o aspecto prático da verdade e sobre as
relações gerais entre a teoria e a prática, seria fácil encontrar os elementos
de uma epistemologia realista que jamais foi desenvolvida.”[9]
Para isso seria talvez adequado articular: a praxis como contexto condicionante
da ação; o sujeito agente que responde a este contexto de forma ativa e não
exclusivamente determinada; e a produção prática da verdade a partir das
situações em que essa práxis se constitui por obra da realidade efetiva e da
efetividade do sujeito agente. A racionalidade é ao mesmo tempo objetiva e
subjetiva. Por isso é preciso distinguir metodologicamente o ato reflexivo da
consciência no início de seu movimento para fora de si, e a interação prática
entre consciência e realidade no âmbito da ação histórica.

Agora
vejamos o que diz Marx acerca da ação histórica na primeira página do 18
Brumário
: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como
querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que
se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de
todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.”[10]
Não é a minha consciência, nem a de qualquer outro sujeito individual, que
constitui a realidade histórica na qual devo agir. Não posso escolher as
circunstâncias porque elas foram historicamente constituídas, eu as herdei e me
defronto com elas. Este elemento de conflito entre minhas ações e o meio
histórico em que elas ocorrem é constitutivo da relação entre os sujeitos e a
realidade. O presente traz o lastro da tradição e ambos se confundem no peso
que nos oprime, e que se constitui em boa parte da inércia da morte, ou dos
mortos que habitaram o passado, no movimento presente da vida. O passado, este
tempo e esta realidade definitivamente constituídos e a partir dos quais temos
de agir, limita nossas possibilidades. A configuração do presente, a história
que havemos de fazer, nascerá do confronto entre nossas escolhas e aquilo que
não escolhemos. A partir do passado, da configuração do presente pelo passado,
operamos nossas escolhas, que portanto se situam entre nossa herança e nossa
iniciativa, entre o que reconhecemos e do que nos apropriamos desse passado, e
do que projetamos como tarefa construtiva do presente.

Isto
significa que a análise de situação deve produzir um conhecimento que
incorpore todos estes elementos: que leva em conta o passado constituído, o
presente em vias de constituição, a herança das condições consolidadas e a
presença daquelas que a própria atualidade vai engendrando na dupla efetividade
a que nos referimos. Mas nada é estático e completamente determinante, nem
mesmo o passado constituído, já que ele depende da maneira pela qual o presente
o entenderá como referência. Assim a análise supõe um movimento de idéias que
produz o conceito ao mesmo tempo em que o uso heurístico deste instrumento
produz conhecimento.

Observe-se
por exemplo o movimento pelo qual a análise de Marx, no 18 Brumário,
visa a realidade histórica do campesinato francês em dois momentos.

1)     
A revolução de 1789 derruba o feudalismo, acabando assim com a relação
senhor/servo, bem como com as grandes propriedades fundiárias, e a terra é
distribuída. O camponês, que antes era servo, torna-se proprietário, mas de uma
pequena propriedade na qual pratica a agricultura de subsistência. No império,
Napoleão consolida a pequena propriedade como parte da estratégia da
centralização do poder, evitando assim uma eventual disputa com grandes
proprietários rurais. Os camponeses entendem que esta política os protege e os
preserva de um retorno à servidão, habituando-se a associar a segurança da
propriedade a um governo absoluto. Ademais, as conquistas de Napoleão abrem os
mercados europeus à produção agrícola francesa.

2)     
A partir de 1830, a fragmentação da terra mostra seu lado negativo. Sem
os mercados compulsoriamente abertos por Napoleão, a agricultura definha. A
burguesia enriquecida pelo desenvolvimento urbano e pela atividade financeira
encontra na falência da agricultura ocasião de lucro fácil através de
empréstimos e hipotecas, aos quais os pequenos agricultores têm de se submeter.
A exploração é acentuada na medida em que a fragmentação da propriedade gerou a
fragmentação dos indivíduos, que como donos de terras não se reconhecem como
classe e não se organizam. A subordinação ao capital corrói a autonomia conquistada
na Revolução, e os camponeses regridem à condição de dependência, agora de
banqueiros e financistas. A ausência de organização deixa os camponeses fora do
jogo de poder, que se constitui como conflito de várias facções e de vários
interesses.

3)     
A situação se agrava com o advento da república em 1848, na qual
prossegue a situação política de compromissos amplos entre tendências variadas,
mas com perfil dominante da burguesia urbana enriquecida pela especulação
financeira. A agricultura enfraquecida é alvo fácil de políticas fiscais
particularmente vorazes, facilitadas pela máquina do estado centralizada,
herança de Napoleão. Os camponeses, desorganizados, não conseguem se opor. A
burguesia consolida seu domínio esmagando o proletariado na revolução de 48.
Nenhuma das tendências que dividem o parlamento republicano contempla as
necessidades dos camponeses.

4)     
O descontentamento, que até então não possuía canal de expressão, é
canalizado por Luiz Bonaparte na presidência da república. Acirrando os
conflitos entre o poder executivo e legislativo, sugere a idéia de que
reformas que venham a beneficiar os camponeses seriam mais eficientemente
implementadas num governo forte, em que as iniciativas não tivessem que ser
filtradas pelos interesses da Assembléia Nacional. A mesma tática é aplicada ao
grande contingente de desempregados e de lumpens que vivem à margem do
sistema. Mas é importante considerar o modo como o camponês pode chegar a ver em Luiz Napoleão o governo forte que defenderia seus interesses assim como o fizera o primeiro
Napoleão. E isto explica como a demagogia e a aventura política foram os meios
pelos quais se restaurou na França o império e como uma figura medíocre veio a
tornar-se o imperador Napoleão III.

Esta análise está baseada na visão do movimento histórico que permite
diferenciar o camponês da época da Revolução e do império napoleônico do
camponês de 1848, em termos de situação econômica, isto é, a partir das
condições que deverão ser traduzidas em posições políticas. O que permite entender
o tipo de repetição da história de que fala Marx: “Hegel observa em uma
de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na
história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de
acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Causedière por
Danton, Luís Blanc por Robespierre, a Montanha de 1845-1851 pela Montanha de
1793-1795, o sobrinho pelo tio.” A compreensão do movimento histórico que vai
do império de Napoleão à sua paródia é explicada pelo movimento que vai do
camponês revolucionário ao camponês reacionário.

 

 


[1]
SARTRE, J-P. Verdad y Existência. Tradução espanhola, ed. Paidos, México, 1996,
pg. 52. Grifos do autor.

[2]
Idem, ibidem, pg. 55.

[3]
Idem, ibidem, pg. 79.

[4]
SARTRE, J-P. Questão de Método. Ob. Cit., pg. 125 – nota 14.

[5]
Idem, ibidem.

[6]
Idem, ibidem.

[7]
Idem, ibidem, grifos do autor.

[8]
No entanto, poder-se-ia dizer, há realidades materiais inquestionavelmente
dadas, corpos físicos e orgânicos existentes fora do homem, e todos os
aspectos naturais que constituem o homem do ponto de vista fisiológico, por ex.
Mas há que se levar em conta que o homem atribui significação a tudo que está
nele e fora dele, significações que se produzem também a partir de situações
diferenciadas, e tanto do ponto de vista do indivíduo quanto da coletividade. A
montanha pode ser sagrada para os índios, desafio esportivo para o alpinista,
meio de subsistência para o agricultor, etc. Meu corpo não é apenas uma
estrutura física, mas algo que me agrada ou desagrada, algo com que convivo
indiferentemente na saúde e que se torna uma carga pesada na doença. A cidade
em que vivo, o sítio rural que habito, são mais do que objetos naturais: estão
integrados significativamente na minha prática.

[9]
SARTRE, J-P. Questão de Método. Ob. Cit., pg. 125 – nota 14.

[10]
MARX, K. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Tradução brasileira da editora Nova
Cultural (coleção Pensadores), São Paulo, 1988, pg. 7.

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