Marx e Nietzsche: um diálogo possível

Marx e Nietzsche: um diálogo
possível

Michel Aires de Souza
http://filosofonet.wordpress.com/

Será que é possível aproximar as
filosofias de Marx e Nietzsche? Suas teorias são completamente diferentes, pois
um filosofa sobre a escassez e o outro sobre a superabundância; um filosofa
para os trabalhadores, pobres e oprimidos e o outro para os fortes e poderosos;
um filosofa sobre a política e a economia e o outro sobre o poder e a
moral.   

Marx criou uma teoria política que
explica a história humana como a história da luta de classes. Ele postulou o
fim da sociedade capitalista a partir de contradições internas, que culminaria
com a revolução proletária, que tomaria o poder. Seu principal livro é o “Capital
que contém uma interpretação sócio-econômica da histórica, conhecida como
materialismo-histórico. Também escreveu a “Ideologia Alemã”,
onde desvelou os mecanismos de dominação da minoria mais rica sobre o resto da
população. Através do seu conceito de ideologia nos mostrou que a consciência
que o sujeito tem de si e do mundo é uma falsa consciência, mantendo-os
alienados de si mesmo e dos modos de produção. A filosofia de Marx é uma
tentativa de transformar a sociedade e libertar o ser humano da repressão e da
alienação através de uma mudança revolucionária. 

       
Nietzsche ao contrário de Marx tem horror às massas e aos trabalhadores, é o
filósofo do poder, da vontade de potência, da dominação.  Enquanto Marx
tornou-se o filósofo dos proletários, excluídos e miseráveis, Nietzsche rendeu
homenagens aos valores dos fortes, ricos e poderosos, tornando-se inimigo do
“amolecimento moderno dos sentimentos” e condenando o homem moral, fraco e
religioso. Com isso, propôs-se a si mesmo fazer uma crítica dos valores morais,
colocando em questão o próprio valor desses valores. Ele também é considerado o
grande crítico da civilização ocidental racionalista, sua crítica está na raiz
do que chamamos hoje de “crise da modernidade”.  Nietzsche identificou a
razão e a racionalidade com a decadência e o ódio aos instintos. A
racionalidade, desde o nascimento da filosofia, tornou a razão (logos) o
paradigma para o mundo ocidental, fundamentado nas categorias éticas que têm
orientado os homens ao longo da história, reprimindo os instintos de vida
celebrados pela tragédia grega, em nome de uma vida ética, consciente, sem
instinto. Para ele o “logos” subjugou os instintos criadores. O homem trágico
que age guiado pelos instintos foi substituído pelo homem racional. A vida foi
subjugada pela razão. A filosofia de Nietzsche é uma filosofia dos afetos, das
paixões e desejos, que contempla o individualismo, a força, a abundância e os
instintos de vida.   

         
Apesar das ressalvas que podemos fazer às filosofias de Marx e Nietzsche, é
possível um diálogo entre esses dois pensadores, pois ambos respondem a uma
mesma experiência histórica, ambos representam uma mudança decisiva no modo de
compreender o homem, a cultura, a sociedade e o poder. Mas o que há de mais
peculiar é que ambos possuem uma mesma perspectiva quanto à gênese do sujeito e
do pensamento. Ambos concordam que o ser humano não é algo acabado, pronto,
estável, não existe uma natureza humana já definida. O sujeito não é uma
idealidade auto-suficiente e incondicionada. Para Marx o sujeito é determinado
por aquilo que ele faz. O sujeito é determinado pelo seu “ser social”. É o
comportamento material que fomenta suas representações e pensamento. Marx nos
ensinou que, se examinarmos a maneira pelas quais os homens produzem os bens
necessários à vida, é possível compreender as formas de seu pensamento, tais
como sua moral, religião e filosofia. “A produção de idéias, de representações
e da consciência está em primeiro lugar direta e intimamente ligada à atividade
material e ao comércio material dos homens (…)” (Marx, 1976, p.25). 
Nietzsche não pensa diferente. Enquanto Marx valoriza os modos de produção na
gênese do sujeito e do pensamento, Nietzsche valoriza o comércio como valor
civilizador e formador da consciência. Em seu livro “Genealogia da
Moral
” Nietzsche se opõe à idéia de origem do sujeito e passa a compreender
este através de uma genealogia, que o concebe emergindo através de relações de
poder, através de um turbilhão de forças que o atinge. Não existe uma
identidade metafísica, o ser humano não é um átomo, uma mônada. O sujeito se
constitui no terreno dos acontecimentos históricos, das contradições, das
relações de força e poder. O conceito de genealogia concebe o sujeito enquanto
ser no mundo, onde o corpo se torna visível e um efeito dos embates de
forças.  Tal como em Marx, as formas de consciência como a filosofia, a
moral, a cultura e as leis emergem em Nietzsche através das condições materiais
de existência. O sujeito como ser racional e moral surge através das relações
de troca e intercâmbio material entre os homens. Com Nietzsche aprendemos que
“estabelecer preços, medir valores, imaginar equivalência, trocar – isso ocupou
de tal maneira o mais antigo pensamento do homem que num certo sentido
constituiu o pensamento: aí se cultivou a mais velha perspicácia, aí se poderia
situar o primeiro impulso do orgulho humano, seu sentimento de primazia frente
aos outros animais” (Nietzsche, 1988, p.73).  São através desses dois
livros, a “Ideologia Alemã” e a “Genealogia da moral
que Marx e Nietzsche se reconciliam.    

     Para Marx o mundo não
é uma manifestação das idéias. A história universal não é uma manifestação da
razão. Marx em seu texto “Ideologia Alemã” constrói uma
ciência da história e toma o materialismo como objeto dessa ciência. Com isso
não é mais o desenvolvimento geral do espírito humano que explica a vida social
como postulava o idealismo. Para Marx o pensamento é o reflexo do
desenvolvimento material objetivo da história. O postulado básico de toda
história humana são os indivíduos reais, a sua ação e suas condições reais de
sobrevivência. O papel do historiador é o de entender a realidade partindo das
condições materiais de existência dos indivíduos, assim deve entender os fios
que reconstituem a trama histórica. Busca compreender a conexão e formas de
intercâmbio que vão se delineando como uma história universal. Na opinião de
Marx, são as formas específicas de produção que determinam as idéias dos homens
e as configurações culturais. As idéias religiosas, jurídicas, morais são
reflexos das relações econômicas.  Decorre disso, que o próprio homem é
determinado pelo seu “ser social”. É o comportamento material que fomenta suas
representações e pensamento. “A forma como os indivíduos manifestam a sua vida,
refletem muito exatamente aquilo que são. O que são, coincide, portanto, com a
sua produção, isto é, tanto com aquilo que produzem como a forma como produzem.
Aquilo que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de sua
produção” (Marx, 1976, p.19).  

        Em
Nietzsche a gênese do sujeito e do pensamento surge a partir das relações de
intercâmbio material entre os homens, uma relação entre credor e devedor. Essa
tese é mostrada na segunda dissertação do seu livro “Genealogia da Moral”.
Segundo sua tese a relação entre credor e devedor tem um caráter civilizador,
foi esta experiência cruel que estabeleceu a consciência e os valores morais na
espécie humana. O indivíduo que não pagava uma divida ou não cumpria um
contrato deveria sofrer uma experiência cruel na mão do seu credor. Não pagar
uma divida poderia significar perder uma parte do seu corpo, ser fervido em
óleo quente, ser comido por formigas ou perder sua mulher. Para que o
homem adquirisse consciência foi preciso muitas mutilações, castrações,
penhores e sacrifícios. “Pense-se nos velhos castigos alemães, como a apedrejamento
(-a lenda já fazia cair à pedra sobre a cabeça do culpado) a roda (a mais
característica invenção, a especialidade do gênio alemão no reino dos
castigos!), o empalamento, o dilaceramento ou pisoteamento por cavalos (o
‘esquaterjamento’), a fervura do criminoso em óleo ou vinho (ainda nos séculos
quatorze e quinze), o popular esfolamento (‘corte de tiras’), a excisão da
carne do peito; e também a prática de cobrir o mal-feitor de mel e deixá-lo às
moscas, sob o sol ardente. Com a ajuda de tais imagens e procedimentos,
termina-se por reter na memória cinco ou seis ‘não-quero’, com as quais se fez
uma promessa, a fim de viver entre os benefícios da sociedade – e realmente!
com a ajuda dessa espécie de memória chegou-se finalmente a ‘razão’!” (Nietzsche,
1988,  p.63).  Foi por meio desta experiência cruel que surgiu a
faculdade que julga, discerne, compara. A razão tornou-se relação calculada
entre meios e fins, tornou-se cálculo, operação e procedimento eficaz. O
pensamento surgiu por meio cruéis e terríveis. O homem aprendeu “a distinguir o
acontecimento casual do necessário, a pensar de maneira casual, a ver e
antecipar a coisa distante como sendo presente, a estabelecer com segurança o
fim e os meios para o fim, a calcular, contar, confiar – para isto, quanto não
precisou antes se tornar ele próprio confiável, constante, necessário…”
(Nietzsche, 1988,  p.59).

     Esse sistema de
crueldade não foi somente responsável por erigir a razão enquanto a
faculdade que calcula e relaciona os meios com os fins, mas também como
faculdade moral que compara entre o certo e o errado, entre o útil e
prejudicial.  Nas relações práticas de comércio a memória foi treinada
para a recordação dos deveres, das obrigações, dos contratos e compromissos. O
não comprimento dos deveres criou a memória da má consciência, da culpa e do
pecado. Na análise nitzscheana, o conceito moral de culpa teve origem no
conceito concreto de “dívida”. Ele previu a origem da justiça e da moralidade
dos costumes nas relações contratuais entre credor e devedor. A culpa não surge
ligada à autonomia da vontade ou ao pecado religioso. Ela surge das relações de
comércio e troca de bens e dinheiro. Ela surge da dívida. Através do medo e do
terror das penalidades se fomentou a culpa na espécie humana. O não pagamento
da dívida produz o castigo e a consciência do castigo produz a culpa. O
indivíduo se sente culpado. Ele sabe que sua falta pode lhe causar o prejuízo
de uma parte de seu corpo ou a perda de sua mulher. Foi assim que surgiu o
homem responsável capaz de cumprir promessas.    

         O
diagnóstico de Nietzsche mostrou que o sentimento de culpa e obrigação pessoal
surge da relação entre comprador e vendedor, credor e devedor. Esse foi o
primeiro momento em que o homem aprendeu a comparar uma pessoa com a outra, a
medir uma pessoa com outra. O homem é o único animal que tem valores, Nietzsche
o chamou de “animal avaliador”.  Comprar e vender passou a fazer parte da
constituição psíquica dos indivíduos. O sentimento de troca, contrato, débito,
direito, obrigação, compensação na medida em que começaram a fazer parte das
práticas sociais, criou o hábito no homem de comparar, medir, calcular. A
partir daí surgiu à razão e a consciência moral. “Ah, a razão, a seriedade, o
domínio sobre os afetos, toda essa coisa sóbria que se chama reflexão, todos
esses privilégios e adereços do homem: como foi alto o seu preço! Quanto sangue
e quanto horror há no fundo de todas as ‘coisas boas’”. (Nietzsche, 1988, 
p.63).        

  
      Do nosso ponto de vista, portanto, Marx e
Nietzsche possuem uma mesma perspectiva quanto à gênese do sujeito e do
pensamento. As formas de ser e pensar do ser humano foram determinados por
aquilo que ele faz. O que o homem sempre fez em toda a história da civilização
foi produzir e fazer comércio. Isso acabou por se impor a sua estrutura
psíquica formando seus modos de ser, pensar, agir e valorizar. A racionalidade
da produção e do comércio entendida como relação calculada entre meios e fins,
definindo-se pela eficiência e pela capacidade de classificar, ordenar, dispor
os objetos e os homens formou a razão como a faculdade de classificação,
inferência e dedução, ou seja, como a faculdade que possibilita o funcionamento
abstrato do mecanismo de pensamento. Da mesma forma através das relações de
troca surgiram os valores, regras e normas do convívio social que fomentou a
moralidade dos costumes.  Foram os modos de produção e o comércio material
entre os homens que construíram todas as instituições democráticas que
conhecemos hoje. A produção e o comércio são produtos e ingredientes de nossa
civilização.    

BIBLIOGRAFIA 

MARX, K & ENGELS, F. Ideologia Alemã.
Lisboa. Editorial Presença, 1976. 

NIETZSCHE,F.W. Genealogia da Moral. Trad. Paulo
César Souza. São Paulo, Brasiliense, 1988. 

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