Fase Seiscentista – escritor Manuel de Sousa Coutinho ou Frei Luís de Sousa

CAPÍTULO 3

FASE SEISCENTISTA

(Século XVII)

ESCRITORES PORTUGUESES E BRASILEIROS

FR. LUÍS DE SOUSA (Santarém, 1555-1630) chamou-se no século Manuel de Sousa Coutinho. Tendo noviciado na Ordem de Malta, esteve cativo em Argel, onde, aliás, sem maior fundamento, se disse que contraíra «amizade com Cekvantes. Casou com a viúva de D. João de Portugal e estava em Almada com a patente de coronel, quando incendiou a casa por negar hospedagem aos governadores espanhóis do reino.

Depois da morte de uma filha entrou para o claustro, no que o intitou sua mulher, D. Madalena de Vilhena. Sobre isto se arquitetou uma lenda: que voltara vivo da África o primeiro marido de D. Madalena — romântica peripécia de que Garrett fêz um belo drama.

Obras: Vida de D. Fr. Bartolomeu dos Mártires; História de São Domingos; Anais de D. João III. A primeira é um dos monumentos da língua pela venustade de frasear e pelas excelências do estilo descritivo.

O Arcebispo e o Pastorinho

Passava um dia de inverno o Arcebispo com sua comitiva e serra de Gerez, por caminhos ásperos e fragosos; salteou-os uma chuva fria e importuna, que os não largou na mor parte da jornada, e corria um vento agudo e desabrigado, que os congelava. Tinha-se adiantado o Arcebispo, segundo o seu costume, que era caminhar quase sempre só, para se ocupar (349) com mais liberdade em suas contemplações; e ia fazendo matéria de tudo quanto via no campo e na serra para louvar a Deus; ofereceu-se-lhe à vista, não longe do caminho, posto sobre um penedo alto e descoberto ao vento e à chuva, um menino pobre e bem mal reparado de roupa, que vigiava umas ovelhinhas, que ao longe andavam pastando. Notou o Arcebispo a estância, o (empo, a idade, o vestido, a paciência do pobrezinho; e viu juntamente que ao pé do penedo se abria uma lapa que podia ser bastante abrigo para o tempo; movido de piedade parou, chamou-o e disse-lhe "que se descesse abaixo para a lapa e fugisse da chuva, pois não tinha roupa bastante para a esperar".

— Isso não, respondeu o pastorinho, que, em deixando de estar alerta e com o olho aberto, vem logo o lobo e leva-me a ovelha, ou vem a raposa e mata-me o cordeiro.

—- E que vai nisso? (350) disse o Arcebispo.

— A mim me vai muito, tornou êle, que tenho pai em casa que pelejará comigo, e tão bom dia se não forem mais que brados; eu vigio o gado, e êle me vigia a mim; mais vale sofrer a chuva.

Não quis o Arcebispo dar mais passo; esperou que chegassem os da sua companhia, contou-lhes o que se passara com o menino e acrescentou:

— E este esfarrapadinho inocente ensina a frei Bartolomeu a ser arcebispo! Este me avisa que não deixe de acudir e visitar minhas ovelhas, por mais tempestades que fulmine o céu; que se este, com tão pouco remédio para as passar, todavia não foge delas, respeitando o mandado de seu pai mais do que o seu descanso, que razão poderei eu dar, se, por medo de adoecer ou padecer um pouco de frio, desamparar as ovelhas cujo cuidado e vigia Cristo fiou de mim, (351) quando me fêz pastor delas?

(Vida do Arcebispo, liv. 1.°).

Caridade do Arcebispo

Defendia-lhe o vento e honrava a entrada da câmara ou cela em que sempre residia o Arcebispo, um pano azul com o título de guarda-porta, o qual nem era fino, nem muito de estimar, (352) e nele se resolviam todas as tapeçarias daquele palácio pontifical; entrou a desoras (353) uma pobre velha tão mal euroupada que, sem falar palavra, falava por ela a idade, o tempo e a necessidade, e pedia socorro apressado; estava o Arcebispo só, não tinha homem de quem se valer; lançou olhos pela casa, não viu coisa que dar, e viu-se obrigado a acudir; levanta-se, arrasta com suas mãos uma arca; subindo nela, despregou o guarda-porta, dobrou-o, entregou-o à velha, e mandou–lhe que se fosse depressa. E é de notar que, provida a porta de nova guarda e novo pano, logo proveu (354) com êle outro pobre, que se lhe pôs diante necessitado de roupa; e desde então ficou para sempre desarmada.

(Ibid.).

Fome em Portugal

Padecia nesse tempo o reino de Portugal calamitoso aperto de fome; porque, quanto mais corria o ano de 22 em que vamos, tanto maior era o trabalho. Crescia a falta, gastando e comendo o povo esse pouco pão que havia. (355). Castela não podia ajudar, porque a esterilidade do ano de 21 fora igual nela. De França não vinha nada, respeito das guerras que trazia com o imperador. Os pobres do reino acudiam todos a Lisboa, arrastando consigo suas tristes famílias, persuadidos da força da necessidade (356) que poderiam achar remédio onde estavam o rei e os grandes. Mas aconteciam casos lastimosos. Muitos caíam e ficavam mortos sem sepultura pelos caminhos, de fracos e desalentados. Os que chegavam a Lisboa pareciam desenterrados: pálidos nos semblantes, débiles e sem forças nos membros. Dinheiro não aceitavam de esmola, porque não achavam que comprar com êle. Só pão queriam, e este não havia quem o desse. Porque algum que às escondidas se vendia, (357) era a 450 réis o alqueire; o centeio a 200 réis, o milho a 150 réis, que para aquele tempo era como um prodígio. Viu-se que era açoute do céu, em que, correndo muitos navios às ilhas dos Açores, onde as novidades haviam sido mui floridas, uns se perderam, tornando, à vista da barra de Lisboa, outros forçados de tormenta alijaram ao mar o trigo (358) por salvarem as vidas.

Foi a origem deste mal não acudir o céu com água em todo o ano de 21. (359). Estavam os campos tão secos que, como em outro tempo se despovoou Espanha por lhe faltarem as chuvas ordinárias, parecia que tornava semelhante desventura. As terras delgadas desfaziam-se em cinza, as grossas se apertavam e abriam em fendas até ao centro. Assim em geral, nem no Alentejo, nem no Algarve, nem na Extremadura chegaram as searas a formar espiga. Em erva secaram e se perderam todas. Em Lisboa padecia-se tanto no outubro de 21, que aconteceu passarem muitos homens oito dias sem tocar pão, comendo só carnes e fruitas. E por janeiro e fevereiro do ano de 22, em que vamos, se averiguou morrerem muitos pobres (360) à pura fome pelas ruas e alpendres de Lisboa.

Abalavam estas misérias as entranhas d’El-Rei. Mandou fazer com tempo grandes diligências para que descesse de Entre Douro e Minho e da Beira tudo que se achasse de centeio e milho. E, não contente com isto, que todavia foi de muita importância, despachou navios, à custa de sua fazenda, com letras e dinheiro, que fossem carregar (361) de trigo à França e Flandres.

(Anais de D. João III, parte, I, liv. I, cap. XI).

Notas de Gramática

(349) ou para ocupar-se… (V. n. 200) em suas contemplações. — O verbo ocupar, quando pronominado, rege-se com as preposições de, com, em: "Deste assunto me ocuparei em separado, a seu tempo". (Rui, Répl., 218); "Ocupara-me eu… com os neologismos"… (Ibiã., 243, in princ); "não é minha condição ocupar-me em edifícios que o tempo gasta". (Fr. Luís de Sousa, apud Laudelino e Campos, Dicion. sub. você).
(350) E que vai nisso? = que importa isso? que [mal] que [inconveniente] vai nisso? Esse verbo, de largo e variado emprego, significa, aí importar, valer, interessar. Em Morais, Dicion., o seguinte exemplo: "Já que a fortaleza dei rei está segura, morra eu muito embora, que pouco vai na minha vida e não quero mais honrada morte, — dizia um pobre soldado na índia -— serrando-se-lhe a perna". (Couto, Décadas).
(351) fiou de mim = me confiou; pastor delas, predicativo do obj. dir. me.
(352) muito de estimar = de ser muito estimado. O verbo está na voz passiva, embora sob a forma da voz ativa. Esse fato só se verifica com o infinitivo verbal. Em Rui: "Mais para logo se desiludiu a opinião, vendo assinar pelo seu sucessor o audacíssimo contrato"… (Queda do Imp., I, p. 235).
(353)
a desoras = fora de horas; o negativo des junto a horas. A raiz de hora encontra-se, alterada, em relógio (horologium) e no are. eramâ, eremâ, aramá (deturpação de em hora má), encontradiço em Gil Vicente; e nos vocábulos ora, embora, agora e outrora, sem o — h — inicial. V. n. 563.
(354) Os verbos compostos conjugam-se pelas formas dos componentes; alguns, contudo, aberram dessa norma, como
prover, que, composto do irregular ver, não se lhe ajusta em todas as formas; enquanto se diz reviu, antevisse, previu, entrevisto, conjuga-se proveu, e, conseqüentemente, provera, provesse, o futuro prover e o part. provido.
(355) que havia — que, pron. relat., referente a pão, é objetivo direto do verbo impessoal haver; do mesmo modo que, doze linhas adiante, a oração quem o desse è também complemento direto do verbo haver, aí novamente usado como impessoal.
(356)
da força da necessidade — agente da voz passiva do verbo persuadir, de que é objeto indireto a oração: [de] que poderiam achar remédio"…
(357) se vendia — se apassivador, porque o verbo é transitivo e o sujeito que não está efetuando, mas sofrendo a ação verbal.
(358)
alijaram ao mar o trigo — V. transitivo — lançar fora [a carga, de uma embarcação] para aliviá-la, para a tornar mais leve. Alijar e aliviar parecem cognatos, oriundos do lat. alleviare (de levis). "Nos grupos — bi — e — vi (diz J. J. Nunes) a consoante cai em alguns casos e a semivogal toma o seu costumado som consonantico; é o que se nota em ligeiro, alijar, provenientes de leviariu- e alleviare." (Gram. Hist., p. 140).
(359) Nesse período, a expressão —
a origem deste mal — tanto pode ser sujeito do verbo ser e a esse sujeito ligar-se, como predicativo, a segunda oração, como pode aceitar-se que esta infinitiva seja o sujeito e aquela expressão o predicativo.
(360) averiguou-se morrerem muitos pobres — a oração infinitiva que se inicia em morrerem, é sujeito do verbo averiguar, que está apassivado pelo pronome se…
(361) que = para que, como em Os Lusíadas (I, 5: "que se espalhe’1; I, 6: "que todo o mande"; III, 129: "que refrigério sejam da mãe triste"; II, 49: "Que quem vai contra os vossos claro veja / que, se resiste, contra si peleja". Sempre com o verbo no subjuntivo.


Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte: Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.

 

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