NOÇÕES DE FILOSOFIA – Padre Leonel Franca (1918).
V PARTE –
QUINTA ÉPOCA — FILOSOFIA MODERNA
105. CARACTERES GERAIS — A. O caráter mais saliente da filosofia moderna é a independência excessiva de qualquer autoridade, o menosprezo completo da tradição científica. Inaugurada por Descartes, pouco depois que a reforma protestante proclamara o livre exame e a autonomia absoluta em matéria religiosa, num tempo em que os ataques da Renascença haviam desprestigiado as teorias tradicionais, a filosofia moderna rompeu definitivamente com o passado. Os seus representantes julgaram-se no dever de construir desde os alicerces sistemas inteiramente novos. A instauratio magna ab imis jundamentis de Bacon tem sido a aspiração de quase todos os filósofos posteriores.
Β. Quanto ao conteúdo doutrinai, são as questões metodológicas e psicológicas as que mais preocupam os pensadores. Depois de Kant a criteriologia assume excepcional importância. O aspecto filosófico dos problemas sociais é também objeto de largos estudos.
C. Distingue-se ainda a filosofia moderna da escolástica: a) pela sua separação completa (não mais simples distinção) da teologia, à qual muitas vezes é abertamente hostil: b) pelo uso das línguas vulgares, que, aos poucos, substituem a latina, usada ainda pelos primeiros reformadores; c) pela multiplicação extraordinária dos centros de cultura, com a quebra da unidade doutrinai. A França, a Inglaterra e a Alemanha são os focos principais donde irradia o pensamento moderno.
106. DIVISÃO — Pela extrema variedade de sistemas e larga difusão das idéias não é possível dar da época moderna uma divisão tão rigorosa e objetiva como das anteriores. Na divergência dos autores, inspirados muitas vezes em critérios diferentes, preferimos seguir os que distinguem, nesta época, dois grandes períodos:
- I. PERÍODO ANTERIOR A KANT — (De Descartes a Kant).
- II. PERÍODO POSTERIOR A KANT — (De Kant até nossos dias).
BIBLIOGRAFIA
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CAPITULO I
PRIMEIRO PERÍODO — (1600-1770)
107. CARACTERES GERAIS. As correntes intelectuais que predominam neste período são determinadas pelos dois grandes reformadores: Descartes e Bacon. O primeiro inaugura o racionalis-mo (106) do qual derivam vários outros sistemas; o segundo professa o empirismo cedo degenerado em sensismo e materialismo. As duas tendências filosóficas chocam-se com sorte vária nos diferentes países. Nos séculos XVII, triunfa o cartesianismo. No século XVIII, com Locke e Condillac assume o sensismo a preponderância na Inglaterra e na França ao passo que na Alemanha o racionalismo é ainda valorosamente defendido por Leibniz.
Na evolução destes sistemas o caráter dominante é o dogmatis-mo em oposição ao período seguinte que é, sobretudo, crítico.
108. DIVISÃO — Dividiremos naturalmente este capítulo em quatro artigos. Nos dois primeiros, estudaremos os reformadores, Descartes e Bacon, nos dois seguintes, a evolução dos sistemas por eles formados.
ARTIGO I
DESCARTES (1596-1650)
109. VIDA Ε OBRAS DE DESCARTES— Renato Descartes, latinamente Cartésio. nasceu em La Have, na Turena. em 1596. Educado no colégio dos jesuítas de La Flèche, veio aos 19 anos para Paris, continuando por algum tempo os estudos de física e matemática para os quais mostrara notável inclinação. De 1617 a 1629 percorreu quase toda a Europa já em viagens de instrução, já combatendo, como soldado sob a bandeira do duque de Nassau e mais tarde do Duque de Baviera.
Depois desta vida agitada, retirou-se para a Holanda, onde, num recolhimento de 20 anos, se entregou de todo à meditação, ao estudo e à composição de suas obras. Convidado em 1649 pela rainha Cristina da Suécia, partiu para Stockolmo, mas não resistindo às inclemências do frio faleceu poucos meses* depois, em 1650, com apenas 54 anos de idade.
(106) Em teologia, racionalismo significa negação de toda verdade revelada, em filosofia quer dizer sistema que, além dos sentidos, admite a razão como fonte distinta do conhecimento e faculdade essencialmente superior à sensibilidade.
E’ neste sentido que empregamos o termo.
Suas principais obras filosóficas são: Discours de la méthode (1637), Meditationes de,prima philosophia (1641), Principia philo-sophiae (1644), Traité des passions de l’âme (1650).
110. DOUTRINAS FILOSÓFICAS. Descartes pode justamente ser considerado como o pai da filosofia moderna. É inquestionavelmente o pensador do séc. XVII que mais profunda influência exerceu nos filósofos posteriores. Sua atitude é a de um reformador convicto.
MÉTODO — Ao método concerne a primeira inovação cartesia-na. Espírito matemático, afeito à exatidão das demonstrações geométricas, Descartes aspira a reconstruir a filosofia, aplicando-lhe o método dedutivo a cujo rigor devem, em grande parte, a sua certeza as ciências abstratas da extensão. Com este fito, começa por duvidar metòdicamente de tudo. "Je déracinais de mon esprit toutes les erreurs qui s’y étaient pu glisser auparavant. Non que j’imitasse pour cela les sceptiques que ne doutent que pour douter et affectent d’être toujours irrésolus (107) car, au contraire tout mon dessein ne tendait qu’à m’assurer et à rejeter la terre mouvante et le sable pour trouver le roc ou l’argile" (108). Depois de ter assim posto em dúvida as afirmações do senso comum, os argumentos de «autoridade, o testemunho dos sentidos, as informações da consciência, as verdades deduzidas pelo raciocínio e os próprios princípios imediatos, detém-se diante da existência do próprio pensamento (109) Se eu duvido, penso, se penso, existo. Cogito ergo sum é, pois, a única verdade de que se não pode duvidar, e que, portanto, constitui o fundamento, o aliquid inconcussum, o ponto de partida de qualquer construção filosófica. Ε por que não se pode duvidar desta verdade? Porque é evidente, porque nós a concebemos clara e distintamente. Daí a conclusão: "les choses que nous concevons très clairement et fort distinctement sont toutes vraies". — Uma intuição: a existência do ser que pensa; um critério: a evidência — eis o donde parte Descartes para reconstruir a filosofia.
Saindo do próprio eu, a primeira existência exterior por êle provada é a de Deus e a primeira parte da filosofia a ser reconstruída, a teodicéia.
(107) A dúvida metódica, como se sabe, é uma dúvida voluntária, fictícia, pro_ visória, limitada, cujo fim é tornar mais motivada e inconcussa a adesão à verdade de que se duvida, submetendo-a a uma nova contraprova. A dúvida cética, pelo contrário, é uma dúvida real, universal e definitiva, que não chega Jamais a um Juízo certo. A primeira — suspensio judicii indagatoria (Kant) é legítima, racional e necessária ao progresso científico; a outra, suspensio judicii sceptica, é absurda e contrária à natureza da inteligência e por isso fisicamente impossível. A dúvida de Descartes é, na sua intenção, metódica, de fato, sendo universal é, por isso mesmo, cética. Dúvida metódica e universal sâo termos que se excluem.
(108) Discours de la Méthode, 3ème partie.
(109) Neste naufrágio geral de toda certeza sobrenadaram apenas no espírito de Descartes as verdades de fé: "après m’être ainsi assuré de ces maximes (concernentes à moral) et les avoir mises à part avec les vérités de la foi, qui ont toujours été les premières en ma créance je jugeai que pour le reste de mes opinions je pourrais librement entreprendre de m’en defaire". Discours de la Méth., VI. Deste lugar se serve Mercier como confirmação de que a dúvida cartesiana era real e não somente fictícia-Cfr. Mercier, Critêriologie*, p. 17 e sege.
TEODICÉIA — A. Existência de Deus. Descartes prova a existência de Deus a priori e a posteriori. A priori, da idéia de perfeição. (Médit. 5ème; discours de la méth. 4ème partie). Na análise do próprio pensamento, que é dúvida, êle se percebe como um ente imperfeito, mas ao mesmo tempo reconhece em si a idéia de um ser imensamente perfeito. Ora, sendo a existência uma perfeição, tal ser necessariamente existe — é Deus. Desta prova "’geométrica", visivelmente decalcada sobre o argumento ontológico de S. Anselmo diz alhures o seu autor: "La démonstration qui prouve 1’éxistence de Dieu est beaucoup plus simple et plus évidente que celle qui démontre que la somme des angles d’un triangle est égale à deux droits" (110). A segunda prova chamada a posteriori porque nela se faz uso do princípio de causalidade (aqui ilògicamente assumido por Descartes) parte da idéia do infinito. (Princ. philosoph., I, n. 18, Médit. 3ème). A existência desta idéia na nossa inteligência é um fato psicológico indiscutível. Qual, porém, a sua causa? Os seres externos? Mas são todos finitos. A própria inteligência? Mas dum ser finito e imperfeito não pode provir a* idéia do infinito e do perfeito, visto como "il doit y avoir pour le moins autant de réalité dans la cause efficiente et totale que dans son effet" (111). Só resta que realmente uma causa infinita nos tenha infundido a idéia do infinito. Esta causa, portanto, existe, é Deus. "C’est Dieu qui, en me créant a mis cette idée en moi pour être comme la marque de l’ouvrier empreinte sur son ouvrage" (112).
Descartes prova ainda a existência de Deus, partindo do fato da existência própria. Um ser contingente reclama imperiosamente a existência dum ser necessário. "Il faut donc conclure que de cela seul que j’existe, et que l’idée d’un être souverainement parfait, c’est-à-dire, de Dieu, est en moi, l’existence de Dieu est très évidemment démontrée (113).
Pela urdidura do próprio sistema não pode Descartes alegar os argumentos de ordem física. O conhecimento da natureza sensível está, para êle, dependente da existência de Deus.
2. Natureza de Deus. Da idéia de perfeição derivam-se facilmente todos os atributos de Deus. Dentre estes, dois desempenham na filosofia cartesiana papel mais importante: a liberdade de que faz Descartes depender a lei moral e a possibilidade das coisas com todas as verdades lógicas e metafísicas (tese de Ockham) e a bondade da qual infere a veracidade das nossas faculdades cognoscitivas, e, portanto, a existência do nosso próprio corpo e do mundo exterior por elas irrefragàvelmente atestada. A veracidade divina, em última análise, é a garantia do critério da evidência e assegura a sua legitimidade. Um Deus sumamente bom e veraz não poderia permitir que a nossa inteligência errasse quando percebe o seu objeto clara e distintamente. "Je dois donc rejetter les doutes de ces jours passés comme hyperboliques et ridicules: car de ce que Dieu n’est point trompeur, il s’ensuit que je ne puis être trompé" (114). "Je reconnais parfaitement que la certitude et la vérité de toute science dépend de la connaissance du vrai Dieu, en sorte qu’il faut le connaître avant de connaître rien autre chose" (115).
(110) Rep. à la 4ème object.
(111) Médit., 3ème.
(112) Médit., 3ème.
(113) Ibid.
COSMOLOGIA — O mundo, portanto, existe. Mas que é o mundo? Matéria e movimento, responde Descartes. Com efeito, diz êle, luz, calor e som só existem como sensações; em si, são simples movimentos. As distâncias e as figuras dos corpos reduzem–se a relações e limites da extensão com a qual essencialmente se identifica a matéria. "Dai-me a extensão e o movimento, eu vos construirei o mundo" Com estes dois elementos explicam-se todos os fenômenos do universo, não excluindo os fenômenos vitais das plantas e dos brutos que não passam de meros autômatos, destituídos de sensibilidade, verdadeiras máquinas, um pouco mais complexas que as fabricadas pela indústria humana. Destarte, a física, a química, a biologia e a própria psicologia animal ficam reduzidas a outros tantos capítulos de mecânica. Sem admitir os átomos propriamente ditos, o inovador francês rejuvenesce, na sua expressão mais radical, o mecanismo de Demócrito e Leucipo. Dele, porém, se afasta na questão da origem do universo. A matéria não é eterna, como sonharam os atomistas gregos. Foi primitivamente criada por Deus como uma massa homogênea e essencialmente inerte. A esta massa comunicou o Primeiro Motor certa quantidade de movimento, que através das mais variadas transformações permanece constante e é causa de todos os fenômenos naturais (116).
PSICOLOGIA — O ponto de partida da psicologia cartesiana é a existência do pensamento. Penso, logo existo. Se cessasse totalmente de pensar, cessaria totalmente de existir. O pensamento é, pois, a essência da alma, sum igitur praecise tantum res cogitans. Por pensamento entende-se não só a representação intelectual, mas tudo quanto cai sob o domínio da consciência — fenômenos sensitivos e afetivos, intelectivos e volitivos. Aplicando ao pensamento assim considerado a introspecção ou observação interna — único método possível na sua psicologia, conclui Descartes a espiritualidade da alma. G principal argumento desta tese é, para êle, a idéia clara e distinta da irredutibilidade absoluta entre o pensamento e o movimento, da incompatibilidade irreconciliável entre os atributos da coisa extensa e da coisa pensante.
Identificada destarte a essência da alma com o pensamento e posta a salvo a sua natureza espiritual, passa Descartes a estudá-la sob o duplo aspecto, passivo e ativo. No seu modo passivo, a alma é entendimento e revela-se pelas idéias que, segundo a sua origem, se classificam em inatas (117), adventícias e factícias conforme fazem parte da constituição do espírito, derivam do mundo exterior ou resultam da nossa atividade mental.
No seu modo ativo, a alma é vontade, atividade que se manifesta pelos dois atos de juízo e da decisão. Pelo primeiro, a vontade une ou separa duas idéias apresentadas pelo entendimento. Pelo segundo, escolhe livremente entre dois bens.
(114) Médit., 6ème.
(115) Médit., 5ème".
(116) Leibniz corrigiu-o mais tarde demonstrando a invariabllidade não da mv2/2 quantidade de movimento, mv como dissera Descartes, mas da força viva — — Não entramos aqui em mais pormenores, porque só estudamos em Descartes o filósofo. Como matemático, são bem conhecidos os merecimentos do fundador da geometria analítica. Como físico, cabe-lhe a glória de haver deixado vários trabalhos notáveis sobre ótica, formulando, entre outras, a lei dos senos acerca dos fenômenos de refração e de ter entrevisto, na sua lei de conservação do movimento, o grande princípio que, depois dos trabalhos de Carnot, Meyer e Helmholtz, é apresentado sob uma fórmula mais exata e completa com o nome de princípio de conservaçfio da energia e domina toda a, física moderna. Não convém, ainda assim, exagerar o valor de Descartes como físico. O seu apriorismo desdenhoso de qualquer verificação experimental, Inspira-lhe um método que é diametralmente oposto ao método das ciências de observação. "Toda a minha física, diz êle, não passa de uma geometria… Em física não admito princípios que não sejam também recebidos em matemática a fim de poder provar com demonstração tudo o que deles deduzo. Princip. Philosoph., P. II, η. β4, Sobre a física de Descartes, cfr. um valioso artigo de A. Poulain, La Physique de Descartes, Études, Septembre, 1892: J. Bertrand, Journal des savants, Sept. 1893; E. Naville, La physique moderne, pp. 77-115.
ANTROPOLOGIA DE DESCARTES — Ê fácil agora entender a nova antropologia. O homem é composto de alma e corpo. A alma é puro espírito, sede de todos os fenômenos conscientes. O corpo, com todas as funções vitais inconscientes é uma máquina, inteiramente sujeita às leis da mecânica. Como explicar então a união destas duas substâncias completas na unidade de uma só natureza? Difícil problema para Descartes. Nos apuros em que o entalou a sua psicologia ultra-espiritualista recorre a uma espécie de mediador plástico — os espíritos animais, fluido sutilíssimo, análogo ao fogo. É por meio destes espíritos que a alma, cuja sede é a glândula pineal, recebe as impressões internas (passio) e influi no corpo, modificando-lhe os movimentos (actio). Como se vê, a unidade substancial do homem fica seriamente comprometida e o problema antropológico permanece insoluto. Numa longa correspondência epistolar com Isabel, princesa platina, que lhe pedia esclarecimentos sobre a árdua questão, Descartes esforça-se por lhe resolver as dificuldades, declara inconcebível tal espécie de união e termina por confessar ingenuamente: "Je serais trop présomptueux, si j’osais penser que ma réponse doive entièrement satisfaire Votre Altesse". A nós tão pouco não satisfaz.
Em moral, Descartes não chegou a formular um sistema completo e original. Não oferece por isso, neste ponto, nenhum interesse particular.
(117) De outros lugares se colige que, para Descartes, mais que a idéia é inata na faculdade a disposição de a formar sem nenhum influxo externo.
111. JUÍZO SOBRE DESCARTES — A. O principal merecimento de Descartes foi ter compreendido a necessidade de uma reforma filosófica, de ter restaurado a dúvida metódica (118), pondo assim cobro aos sistemas intempérantes da Renascença e de ter chamado de novo a atenção sobre a evidência como critério da verdade (119).
B. Na sua parte construtiva foi menos feliz. Menosprezando a tradição (120 ) recaiu em vários erros que com um estudo menos superficial dos antigos houvera podido evitar. Começa por desnatu rar a dúvida metódica transformando-a em dúvida universal, de cujo círculo férreo logicamente nunca houvera podido sair. Comete depois um ilogismo evidente ao passar do estado de dúvida à primeira certeza, admitindo então como garantia da verdade de sua intuição primitiva — cogito, ergo sum — a mesma evidência que não fora suficiente para salvar da dúvida as verdades matemáticas e os primeiros princípios. Não tinha porventura Descartes idéia clara e distinta de que dois e dois são quatro?
Um paralogismo flagrante vicia ainda o método cartesiano. A existência de Deus nele representa o importante papel de fundamento lógico de toda certeza. Ora, Descartes prova a existência de Deus pressupondo a veracidade de suas faculdades e prova a veracidade destas mesmas faculdades pela bondade divina. O círculo vicioso é manifesto e constitui um exemplo típico de teoria circular da certeza. Muito fundada, pois, é a crítica de Leibniz: "Ille (Cartesius) dupliciter peccavit, nimium dubitando et nimium facile a dubitatione recedendo".
C. A sua teodicéia encerra uma afirmação vigorosa da existência de Deus, e.é uma das partes mais importantes e fundamentais de toda a sua filosofia. Fora, porém, para desejar que lhe cimentasse o grandioso edifício em mais sólidos e profundos alicerces. A prova ontológica já a rejeitara S. Tomás como ilegítima.
D. A psicologia é ultra-espiritualista e, por isso, frágil. Espiritualizar toda a atividade consciente até os fenômenos de sensibilidade é oferecer ao matericlismo ansa de uma refutação fácil e parcialmente vitoriosa.
(118) A dúvida metódica não ê, com efeito, como pensam alguns, uma criação do filósofo francês. Foi inculcada e praticada por Aristóteles, S. Agostinho, S. Tomaz e os grandes escolásticos. Aristóteles: "Antes de empreender a solução dum problema, convém começar por bem duvidar e investigar todas as dificuldades que o envolvem". Metaphy., ΠΙ. S. Agostinho põe nos lábios de Evódio estas palavras: "Quanquam haec inconcusse fide teneam, tarnen quia coçnitione {scilicet scientlfica) nondum teneo ita quaeramus quasi omnia incerta sint" De lib. arb., L. II, c. II. E’ sabido como S. Tomaz propõe sempre as questões em forma dubitativa: utrum Deus sit, utrum anima humana slt incorruptibilis, e, antes de as resolver, lhes enumera escrupulosamente as principais dificuldades. Cfr. S. Theol.
(119) S. Tomaz: "Certitudo quae est in intellectu est ex ipsa evidentia eorum, Quae certa esse dicuntur" III Sent., D. 23. q. 2 a. 2 Cfr. De Verit. q. 16, a. 2: q. 11, a. 1; S. Theol., I p. q. 82, a. 2. Ad cujus evidentiam etc, repete êle a cada passo em suas obras.
(120) A. Gassendi declara Descartes "qu’il ne s’inquiète pas même de savolr s’il y a eu des hommes avant lui et qu’il va philosopher comme s’il était seul au monde". Ao que ponderadamente acrescenta Lahr: "Le châtiment ordinaire de ceux qui ne veulent rien répéter de ce qui a été dit avant eux, est de dire ce que personne ne répétera après eux. C’est la loi du talion". O estado de decadência em que então se achava a escolástica, se atenua a culpa de Descartes, não lh’a redime de todo. Os gênios são águias que enxergam mais longe e mais profundo que o vulgo. Cumpria-lhe desembaraçar o ouro da ganga que o envolvia e não desherdar o espírito humano do precioso tesouro de verdades que lhe haviam legado as gerações passadas.
Ε. Mais diretamente levam ao materialism© as suas doutrinas cosmológicas, que reduzem as mais elevadas manifestações da vida animal a simples fenômenos mecânicos explicáveis pela matéria e movimento. O único baluarte que Descartes opõe à irrupção completa do materialismo mais radical é a espiritualidade da alma humana.
F. O erro capital, porém, que vicia toda a filosofia do grande reformador francês foi um êrro de método: o apriorismo exagerado com evidente menosprezo da observação e da experiência, a pretensão ridícula de aplicar ao estudo concreto da natureza o método das ciências abstratas. Com as três idéias de perfeição, pensamento e extensão julga êle poder construir dedutivamente a teodicéia, a psicologia e a cosmologia como, com as primeiras noções de espaço, se constrói toda a ciência geométrica. Ε o matemático a dominar e absorver por toda a parte o filósofo. Teve razão V. Cousin quando escreveu: "Le démon de la géométrie fut le mauvais génie de Descartes".
Contudo, apesar dêstes graves defeitos, a obra filosófica de Descartes é trabalho de um gênio de incontestável valor, e lhe há de assegurar para sempre um lugar de honra na galeria dos grandes pensadores da humanidade.
BIBLIOGRAFIA
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Fonte: Livraria Agir Editora. 20ª edição.
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